Proclamada a independência do
Brasil, em 1822, foi convocada uma Assembleia Nacional Constituinte. O
projeto de Constituição de 1823 estabelecia limitações ao poder do
Imperador. D. Pedro I mobilizou tropas do Exército, cercou a Assembleia e
a dissolveu. Em 25 de março de 1824, outorgou uma constituição na qual dispunha
sobre os Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e Moderador. A
"Pessoa do Imperador" recebeu a qualidade de inviolável e
sagrada, não sujeito a responsabilidade alguma. Reservou-se, o Imperador,
o exercício dos poderes Executivo e Poder Moderador, pelo qual podia
intervir nos demais poderes.
Proclamada a República em
1889, por um golpe militar, foi elaborada a Constituição de 1891. Quando Rui
Barbosa apresentou o projeto de Constituição em elaboração ao Marechal
Deodoro da Fonseca, este perguntou onde estavam seus poderes para
dissolver o Parlamento. Foi com muita dificuldade que Rui Barbosa tentou
fazer-se entender dizendo que o regime mudara e que num regime de
separação de poderes um poder não pode interferir no funcionamento do
outro. Mesmo o Judiciário não concebia seus poderes para declarar uma lei
inconstitucional quando contrariava a Constituição. Isto porque durante o
Império a sanção da lei pelo Imperador removia a contradição que pudesse
existir. Assim, no Império, uma lei contrária à Constituição, depois da
sanção do Imperador, se sobrepunha a esta. No regime constitucional
republicano, a Constituição se sobrepõe à lei e, se esta for incompatível
com aquela, prevalece a Constituição e a lei deve ser declarada
inconstitucional.
Quanto ao Poder Moderador,
este deixou de existir no sistema de separação de poderes, harmônicos e
independentes. A harmonia decorre do exercício limitado às suas
atribuições exclusivas. São independentes, pois cada qual não precisa da autorização
do outro para seu funcionamento.
Proclamada a República e
instituído um regime constitucional de divisão de poderes, os conflitos
políticos e jurídicos se resolvem pelo exercício das respectivas
competências pelos poderes do Estado e pelo Sistema de Freios e
Contrapesos. Este se caracteriza pelo equilíbrio entre os três poderes
do Estado buscando a harmonia determinada constitucionalmente.
Tendo retornado aos quartéis
após a ditadura empresarial-militar instituída em 1964, os militares
continuaram a atuar nos bastidores e, durante a Assembleia Nacional
Constituinte, tiveram grande atuação visando a resguardar poder político.
O que emergiu com o golpe que destituiu a Presidenta Dilma foi a ativação do
desejo de poder que se mantinha latente na caserna. Desde o golpe que
proclamou a República nenhuma crise política deixou de ter a presença
militar, notadamente do Exército. Por vezes, as Forças Armadas eram o ator
principal das crises, tal como a crise que levou ao suicídio do Presidente
Getúlio Vargas ou a tentativa de impedir a posse do Presidente Juscelino
Kubitscheck. Mas as Forças Armadas não têm qualquer papel constitucional a
ser exercido na esfera política. Seu papel institucional é outro.
Como sempre acontece, em
momentos de crise, aparecem os conselheiros prometendo tirar leite de
pedra. Assim não faltam os que afirmam existir papel político a ser
desempenhado pelas Forças Armadas, numa interpretação enviesada do art.
142 da Constituição. Neste momento, um dos bacharéis em Direito badalados
por golpistas afirma que "as Forças Armadas são um poder de
estabilização da nação". Chega-se a falar de "regime constitucional
das crises", que teria amparo no título V da Constituição e que trata
do Estado de Defesa, Estado de Sítio, Forças Armadas e Segurança Pública.
O art. 142 da Constituição, inserido em tal capítulo, quando trata da
possibilidade de emprego das Forças Armadas para garantia da lei e da
ordem, não autoriza intervenção nos outros poderes do Estado. As Forças
Armadas não exercem poder moderador. E isto decorre da redação originária
da Constituição.
A redação original do art. 42
da Constituição dispunha que os militares das Forças Armadas são
servidores públicos militares. Servidor público é agente da Administração.
Não é exercente de poder do Estado. Não hão de ter poder político numa
sociedade civil, salvo quando usando a força usurpam o poder, executando
as próprias razões e rompendo com o primado da civilidade. Mesmo que a
Emenda à Constituição nº 18 de 1998 tenha dado redação diversa ao art. 42,
não foram as Forças Armadas convertidas em Poder Moderador. Isto porque a
Constituição, ao dispor sobre emendas à Constituição, foi expressa ao
dizer que "não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente
a abolir: a separação dos Poderes".
Pode-se alterar a
Constituição por outros fundamentos, inclusive pela força dos golpes de
Estado, como ocorreu com a Emenda Constitucional nº 01 de 1969, após a
edição do AI-5. Mas o nome a se atribuir à modificação é golpe, usurpação
de poder ou outro fundado na força. A Constituição de 1988 não foi
alterada para atribuir poder moderador às Forças Armadas. E não poderia
sê-lo por expressa proibição nela contida.
Publicado originariamente no jornal O DIA, em
23/03/2024, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/03/6814505-forcas-armadas-e-poder-moderador-uma-usurpacao.html