“Quando, em 2007,
artistas e intelectuais lançaram manifesto contra a política de extermínio que
se instalava, o secretário Beltrame, por trás da lente de seus óculos, disse
que o manifesto era míope. A miopia era institucional e só enxergava o Ibope
que a matança fazia elevar. A partir da promoção da chacina do Alemão naquele
ano, iniciaram-se as ocupações militares e instalações de UPPs. Daí
desguarneceu-se o resto do Estado, e foram colocadas em risco a vida dos
moradores e a de policiais nas comunidades ‘pacificadas’.”
Milan Kundera, em ‘A insustentável
leveza do ser’, analisa o mito de Édipo e lhe dá uma interpretação muito
valiosa neste momento no qual autoridades fingem-se de vítimas das próprias
opções políticas. Os pais de Édipo, Laio e Jocasta, reis de Tebas, quando do
seu nascimento, consultaram o oráculo, e este pronunciou que o recém-nascido
haveria de matar o pai e se casar com a mãe. O rei mandou que levassem o filho
à floresta e que o matassem. Mas o emissário apenas o abandonou por lá. Achado
por um camponês, Édipo foi criado como um filho. Na idade adulta, Édipo
consultou o oráculo e, horrorizado, fugiu.
Ao tentar entrar em Tebas, um homem
tentou impedi-lo, e Édipo o matou, casando-se em seguida com a viúva — a
rainha. A desgraça se abateu sobre Tebas. E Édipo, ao descobrir que a maldição
decorria do fato de ter matado o pai e ter se casado com a própria mãe, furou
os olhos e partiu da cidade.
Kundera diz que Édipo não se
desculpou dizendo não saber que a mulher com quem casara era a mãe, não
responsabilizou os deuses que lhe reservaram tal destino nem pôs a culpa em
terceiros. Assumiu eticamente sua responsabilidade. Para não mais ser enganado
pelas aparências, furou os próprios olhos e buscou conhecer a realidade a
partir de sua essência.
Quando, em 2007, artistas e
intelectuais lançaram manifesto contra a política de extermínio que se
instalava, o secretário Beltrame, por trás da lente de seus óculos, disse que o
manifesto era míope. A miopia era institucional e só enxergava o Ibope que a
matança fazia elevar. A partir da promoção da chacina do Alemão naquele ano,
iniciaram-se as ocupações militares e instalações de UPPs. Daí desguarneceu-se
o resto do Estado, e foram colocadas em risco a vida dos moradores e a de
policiais nas comunidades ‘pacificadas’.
Incapaz de tratar a segurança com
seriedade, o Estado responsabiliza os fabricantes de facas pelos ataques com
arma branca e tenta imputar responsabilidade ao Judiciário pelas solturas
quando das prisões ilegais. O Brasil tem a terceira maior população carcerária
do mundo, proporcionalmente à população, e todos os encarcerados o são por
determinação judicial. Portanto, quem prende é o Judiciário, que tem
contribuído com o ineficaz encarceramento. Se os crimes não tivessem sendo
praticados com facas, poderiam estar sendo com tesouras, chaves de fenda ou
garrafas. Ou será que a próxima inovação da política de segurança no Rio será a
vedação de garrafas de vidro e a obrigatoriedade de envasamento de bebidas,
exclusivamente, em garrafas PET? O problema da segurança no Rio está em sua
formulação.
Publicado originariamente
no jornal O DIA, pag. E6, em 24/05/2015. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2015-05-23/joao-batista-damasceno-a-culpa-nao-e-dos-deuses.html