Iniciado processo de
redemocratização do país, durante a ditadura empresarial-militar, a Linha Dura
do regime se voltou contra os seus próprios companheiros de farda que
articulavam a reabertura. Além das bombas que os terroristas oficiais
colocavam, ameaças eram feitas até a militares governistas. Um dos ameaçados
pela tigrada foi o General Golbery do Couto e Silva, inteligência do regime.
Ainda durante a vigência do AI-5,
no dia 11 de agosto de 1977, na comemoração dos 150 anos da instituição dos
cursos jurídicos no Brasil, na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco,
em São Paulo, o jurista Goffredo Silva Telles leu um manifesto intitulado Carta
aos Brasileiros. A Carta rompia com o silêncio imposto pela intimidação e pela censura e
exigia o retorno ao Estado de Direito. Tratou-se do documento mais importantes
da história contemporânea do Brasil. O manifesto foi ousado para tempos
sombrios e declarou ilegítimos os governos fundados na força, bem como a Constituição
outorgada pelos militares, nominados por Ulisses Guimarães de Três Patetas, e
não por uma Assembleia Constituinte.
O mestre dos mestres da Faculdade
de Direito, Goffredo Telles, já havia se pronunciado num curto discurso no
pátio da faculdade por ocasião do fechamento do Congresso Nacional pelo
general-presidente Ernesto Geisel, quando em abril daquele ano outorgou uma
emenda à Constituição, chamada de ‘Pacote de Abril’. Inexistia Estado de
Direito e a vontade dos ditadores era a lei. O arbítrio imperava. Quando a
Constituição não lhes autorizava o que desejavam, fechavam o Congresso e
alteravam a Constituição por decreto. A sociedade venceu, elegemos uma
Assembleia Constituinte em 1986 e tivemos uma Constituição promulgada pela
vontade popular em 1988.
Atualmente, diante da ameaça do
presidente da República às instituições, com convocação de ato para o dia 07 de
setembro, as forças vivas da sociedade reagem e organizam um manifesto a ser
lido no dia 11 de agosto, no mesmo lugar onde foi lida a Carta aos Brasileiros
há 45 anos. Além do que já foi apropriado em ‘rachadinhas’ e ‘cota de
combustível’ em postos de gasolina na Barra da Tijuca, enquanto o veículo
oficial a ser abastecido estava em Brasília, conforme reiteradamente afirma um ex-governador
e ex-ministro de Estado, o presidente da República pretende se apropriar do
bicentenário da independência, subtraindo a possibilidade de que todos os
brasileiros comemorem o Grito do Ipiranga de D. Pedro I. Mas não o faz visando
à efetiva independência do país, mas por motivo eleitoreiro e subordinação do
Brasil ao capital internacional, mediante venda das empresas construídas com o
suor do povo brasileiro, dentre as quais a Petrobrás.
A "Nova Carta aos brasileiros" trará uma defesa da ordem democrática e do Estado de Direito. O texto, inicialmente subscrito por ex-alunos da Faculdade de Direito e juristas ganhou a adesão da sociedade e já conta com meio milhão de assinantes, de diversos campos da sociedade. O documento, disponível para subscrição, está disponibilizado no site da Faculdade de Direito da USP.
A Nova Carta faz expressa referência à de 1977 e afirma que aquela semente plantada rendeu frutos, pois o Brasil superou a ditadura militar e a Assembleia Nacional Constituinte resgatou a legitimidade de nossas instituições, restabelecendo o Estado Democrático de Direito com a prevalência do respeito aos direitos fundamentais. “Temos os poderes da República, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, todos independentes, autônomos e com o compromisso de respeitar e zelar pela observância do pacto maior, a Constituição Federal”, consta do texto.
A Nova Carta igualmente aborda a questão das profundas desigualdades sociais, com carências em serviços públicos essenciais, como saúde, educação, habitação e segurança pública, o que propicia a exploração da credulidade pela demagogia, bem como propicia arroubos autoritários incapazes de dar solução aos problemas reais.
Apesar das ameaças à normalidade democrática, risco às instituições da República e insinuações de desacato ao resultado das eleições, já manifestados com ataques infundados e desacompanhados de provas, a sociedade não se intimidou e reage para demonstrar que todo o poder emana do povo e é exercido diretamente ou por representantes eleitos em processo eleitoral duramente conquistado depois de anos de trevas.
As ameaças aos demais poderes, à setores da sociedade civil e a incitação à violência e à ruptura da ordem constitucional são inadmissíveis e intoleráveis e haverá de ser objeto de atuação por parte das forças democráticas no processo de concretização da transição democrática, inconclusa.
Em 1977 o brado do mestre Goffredo Telles foi “Estado de Direito já!”. No dia 11 de agosto próximo o brado a ser repetido será: “Estado Democrático de Direito Sempre!” . Não passarão! As forças vivas da sociedade insistirão em viver, mesmo diante de arroubos genocidas.
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 30/07/2022, pag. 14.