sábado, 30 de julho de 2022

AS FORÇAS VIVAS DA SOCIEDADE SE MANIFESTAM

Iniciado processo de redemocratização do país, durante a ditadura empresarial-militar, a Linha Dura do regime se voltou contra os seus próprios companheiros de farda que articulavam a reabertura. Além das bombas que os terroristas oficiais colocavam, ameaças eram feitas até a militares governistas. Um dos ameaçados pela tigrada foi o General Golbery do Couto e Silva, inteligência do regime.

Ainda durante a vigência do AI-5, no dia 11 de agosto de 1977, na comemoração dos 150 anos da instituição dos cursos jurídicos no Brasil, na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, o jurista Goffredo Silva Telles leu um manifesto intitulado Carta aos Brasileiros. A Carta rompia com o silêncio imposto pela intimidação e pela censura e exigia o retorno ao Estado de Direito. Tratou-se do documento mais importantes da história contemporânea do Brasil. O manifesto foi ousado para tempos sombrios e declarou ilegítimos os governos fundados na força, bem como a Constituição outorgada pelos militares, nominados por Ulisses Guimarães de Três Patetas, e não por uma Assembleia Constituinte.

O mestre dos mestres da Faculdade de Direito, Goffredo Telles, já havia se pronunciado num curto discurso no pátio da faculdade por ocasião do fechamento do Congresso Nacional pelo general-presidente Ernesto Geisel, quando em abril daquele ano outorgou uma emenda à Constituição, chamada de ‘Pacote de Abril’. Inexistia Estado de Direito e a vontade dos ditadores era a lei. O arbítrio imperava. Quando a Constituição não lhes autorizava o que desejavam, fechavam o Congresso e alteravam a Constituição por decreto. A sociedade venceu, elegemos uma Assembleia Constituinte em 1986 e tivemos uma Constituição promulgada pela vontade popular em 1988.

Atualmente, diante da ameaça do presidente da República às instituições, com convocação de ato para o dia 07 de setembro, as forças vivas da sociedade reagem e organizam um manifesto a ser lido no dia 11 de agosto, no mesmo lugar onde foi lida a Carta aos Brasileiros há 45 anos. Além do que já foi apropriado em ‘rachadinhas’ e ‘cota de combustível’ em postos de gasolina na Barra da Tijuca, enquanto o veículo oficial a ser abastecido estava em Brasília, conforme reiteradamente afirma um ex-governador e ex-ministro de Estado, o presidente da República pretende se apropriar do bicentenário da independência, subtraindo a possibilidade de que todos os brasileiros comemorem o Grito do Ipiranga de D. Pedro I. Mas não o faz visando à efetiva independência do país, mas por motivo eleitoreiro e subordinação do Brasil ao capital internacional, mediante venda das empresas construídas com o suor do povo brasileiro, dentre as quais a Petrobrás.

A "Nova Carta aos brasileiros" trará uma defesa da ordem democrática e do Estado de Direito. O texto, inicialmente subscrito por ex-alunos da Faculdade de Direito e juristas ganhou a adesão da sociedade e já conta com meio milhão de assinantes, de diversos campos da sociedade. O documento, disponível para subscrição, está disponibilizado no site da Faculdade de Direito da USP.

A Nova Carta faz expressa referência à de 1977 e afirma que aquela semente plantada rendeu frutos, pois o Brasil superou a ditadura militar e a Assembleia Nacional Constituinte resgatou a legitimidade de nossas instituições, restabelecendo o Estado Democrático de Direito com a prevalência do respeito aos direitos fundamentais. “Temos os poderes da República, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, todos independentes, autônomos e com o compromisso de respeitar e zelar pela observância do pacto maior, a Constituição Federal”, consta do texto.

A Nova Carta igualmente aborda a questão das profundas desigualdades sociais, com carências em serviços públicos essenciais, como saúde, educação, habitação e segurança pública, o que propicia a exploração da credulidade pela demagogia, bem como propicia arroubos autoritários incapazes de dar solução aos problemas reais.

Apesar das ameaças à normalidade democrática, risco às instituições da República e insinuações de desacato ao resultado das eleições, já manifestados com ataques infundados e desacompanhados de provas, a sociedade não se intimidou e reage para demonstrar que todo o poder emana do povo e é exercido diretamente ou por representantes eleitos em processo eleitoral duramente conquistado depois de anos de trevas.

As ameaças aos demais poderes, à setores da sociedade civil e a incitação à violência e à ruptura da ordem constitucional são inadmissíveis e intoleráveis e haverá de ser objeto de atuação por parte das forças democráticas no processo de concretização da transição democrática, inconclusa.

Em 1977 o brado do mestre Goffredo Telles foi “Estado de Direito já!”. No dia 11 de agosto próximo o brado a ser repetido será: “Estado Democrático de Direito Sempre!” . Não passarão! As forças vivas da sociedade insistirão em viver, mesmo diante de arroubos genocidas.


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 30/07/2022, pag. 14. 


 

domingo, 17 de julho de 2022

Tigrada na jaula, mas com porta aberta

 



Ao fim da ditadura empresarial-militar foi difícil recolocar a tigrada na jaula. Todo o esforço de parcela da sociedade por um pacto civilizatório não eliminou as ameaças à democracia, porque a porta da jaula ficou aberta. Neste momento a tigrada ruge, incomodando a ordem democrática. No seio do regime empresarial-militar havia, dentre outros, os oriundos do movimento tenentista de 1922, socializados para o convívio com a parcela não fardada da sociedade e com melhor formação intelectual, e a Linha Dura, amestrados para a truculência. A disputa entre estes dois grupos foi analisada com maestria por Paulo Mercadante, no livro ‘Militares e Civis: A Ética e o Compromisso’.

A derrota, em 1974, do partido que apoiava o regime propiciou que os militares, estrategicamente, iniciassem o processo de volta aos quartéis antes que fossem apeados do poder. Isto enfureceu a Linha Dura que passou a sabotar o próprio regime que compunha. Em 12 de outubro de 1977 o general-presidente Ernesto Geisel exonerou o todo poderoso ministro do Exército Sylvio Frota, antes que este desse um golpe. O general Augusto Heleno, então capitão, era o ajudante de ordens do ministro golpista. O general Hugo de Abreu participou da articulação para exonerar Sylvio Frota. Exonerar um ministro é banal numa democracia. Mas não numa ditadura. Dois meses depois Hugo de Abreu foi defenestrado do governo e escreveu um livro, narrando o infortúnio de ser oposicionista numa ditadura, intitulado ‘O Outro Lado do Poder’. Sylvio Frota também escreveu livro narrando as bandalheiras do poder militar: ‘Ideais Traídos’.

O general-presidente Ernesto Geisel tentou racionalizar os crimes do regime, implantado o Projeto Radar, com lista de pessoas do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que deveriam ser mortas para que a redemocratização lenta, gradual e segura acontecesse sem abrir a possibilidade de influência dos comunistas no meio operário. A Linha Dura queria endurecer ainda mais um regime que sequestrava, torturava, matava, desaparecia com pessoas e roubava os bens de suas vítimas. Afastada do poder a tigrada não se aquietou. Ao contrário, passou a colocar bombas em instituições públicas e residências de articuladores da reabertura. Foram colocadas bombas na Câmara de vereadores do Rio de Janeiro, na ABI, na OAB, na casa do advogado Marcelo Cerqueira, na casa de Roberto Marinho e em bancas que vendiam jornais alternativos e de oposição.

A lei de agosto de 1979, que anistiou presos políticos que se opuseram ao regime, igualmente anistiou os agentes do Estado e grupos paramilitares. Mas muitas das bombas foram colocadas pela ‘direita explosiva’, depois da lei que anistiou fatos passados. A última bomba foi a do Riocentro que explodiu em 30 de abril de 1981 no colo dos terroristas oficiais. O sargento Rosário morreu em serviço e o Capitão Machado sobreviveu, seguiu carreira e foi reformado no posto de coronel. O Exército protegeu o terrorista, segundo relato do Almirante Bierrenbach, ex-ministro do Superior Tribunal Militar.

As ameaças e assassinatos que estão sendo realizados pela direita arruaceira no presente momento não é resultado da polarização eleitoral. Todas as eleições diretas após a redemocratização foram polarizadas. Mas o único atentado efetivamente ocorrido foi em 2010 quando uma bolinha de papel acertou a cabeça do candidato José Serra, jogada pelos mata-mosquitos da SUCAM, que haviam perdido os empregos. Não é a polarização política nem as armas as responsáveis pelos assassinatos. Quem mata são pessoas e estas são as responsáveis. Igualmente tem responsabilidade política quem incentiva este tipo de incivilidade.

O assassinato de Marcelo Arruda, em Foz do Iguaçu, enquanto comemorava seu aniversário, é expressão do que é capaz a tigrada, que tem sido incentivada a tais comportamentos, tal como Donald Trump incentivou a barbárie no Capitólio. O arranjo institucional que possibilitou a redemocratização do país conteve a tigrada quando foi pega com a bomba no colo no Riocentro, a mandou de volta aos quartéis e a enjaulou. Mas deixou a porta aberta, o que a deixa à vontade para nos mostrar os dentes. Se a Lei da Anistia tivesse sido revista, porque o Estado não se pode anistiar por seus atos; se os autores de atos terroristas posteriores à Lei da Anistia tivessem sido responsabilizados e se não tivesse havido tolerância com as pregações contra a democracia e apologia à tortura, inclusive no âmbito do Congresso Nacional, a tigrada saberia o seu lugar. Mas ainda é tempo de rever a Lei da Anistia e impor responsabilização aos algozes das liberdades, com cessação das remunerações e pensionamentos indevidamente pagos aos que deveriam ter sido destituídos de seus postos, por indignidade para a função.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 16/07/2022, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2022/07/6443452-joao-batista-damasceno-tigrada-na-jaula-mas-com-porta-aberta.html


sábado, 2 de julho de 2022

Parem de matar! Parem de pilhagem

 

A jornalista paraense Cristina Serra, em artigo no jornal 'Folha de S. Paulo', escreveu que “Bruno e Dom foram mortos por todos os que incentivam o crime contra os povos indígenas, suas terras, a floresta, suas águas, bichos e plantas. Por aqueles que enfraqueceram os órgãos de fiscalização nos últimos anos”. Nenhuma análise poderia ser mais precisa.

No campo e nas cidades a incivilidade permeia as relações sociais e institucionais e torna o Brasil um dos países com maior número de mortes proporcionalmente ao número de habitantes do mundo. Nem mesmo algumas guerras matam tanto quanto se mata por aqui, embora continuemos a promover o autoengano do “país abençoado por Deus” e da cordialidade do brasileiro.

A estória de que somos cordiais foi primeiramente lançada pelo “Imperador Carlos Maximiliano” em carta ao seu primo D. Pedro II, numa tentativa de conseguir apoio para governar, no México, o império que nunca existiu de fato. Carlos Maximiliano era um fantoche de Napoleão III na América, num tempo em que as potências disputavam a hegemonia sobre nós. Foi a França quem inventou a expressão “América Latina” e quis, na metade do século XIX, que a América do Sul e Central estivessem sob sua zona de influência, em contraposição aos interesses dos EUA. O embusteiro Napoleão III acreditou que contrariando os interesses dos EUA poderia fundar um império favorável à França no México.

Em carta ao embaixador do México no Brasil, Alfonso Reys, o cônsul brasileiro na França, Ribeiro Couto, romancista autor de Cabocla, escreveu em 1931 que nossa contribuição ao mundo seria produzir o homem cordial. Esta expressão, apropriada por Sérgio Buarque de Hollanda em artigo de 1935, virou livro em 1936 e povoa o nosso imaginário. Mas, o escritor Cassiano Ricardo desancou com o pai do Chico Buarque e mostrou que cordialidade não é bondade, mas falta de racionalidade. Daí que cordial tanto pode ser o comportamento amistoso quanto raivoso.

Vivemos tempos de fúria. As instituições que deveriam ser referência de ordem e redutoras das incertezas do futuro foram tomadas por quem não lhes reconhece as atribuições. A irracionalidade pauta as tomadas de decisões. Até mesmo o conhecimento científico produzido ao longo de mais de século passou a ser deslegitimado em nome de fantasias. Há quem recuse vacina contra vírus, mas toma vermífugo cuja superdosagem pode afetar severamente a saúde, conforme advertência do próprio laboratório que o produz. A ignorância, que sempre foi astuciosa, hoje campeia com selvageria. Selva!

Mas não é apenas a irracionalidade violenta que está produzindo efeitos. Há também o cálculo daqueles que promovem o caos para, em razão dele, se locupletaram. Assim tem sido a apropriação do que ainda resta de patrimônio público, que vem sendo pilhado. A morte do indigenista Bruno Araújo e do jornalista inglês Dom Phillips é a ponta do iceberg. Enrolados na bandeira do Brasil e com do apoio do Partido Militar Brasileiro e das milícias que o orbita os saqueadores gritam frases patrióticas e se apropriam das riquezas nacionais.

E foi por oposição a este tipo de saque ao patrimônio público que as vidas de Bruno e Dom foram ceifadas. O crime só mereceu apuração porque vitimou um jornalista inglês e teve repercussão internacional. Diariamente brasileiros anônimos são executados pelas forças do Estado e por grupos armados por elas apoiados e se tornam mera estatística.

A jornalista paraense Cristina Serra, em artigo no jornal 'Folha de S. Paulo', escreveu que “Bruno e Dom foram mortos por todos os que incentivam o crime contra os povos indígenas, suas terras, a floresta, suas águas, bichos e plantas. Por aqueles que enfraqueceram os órgãos de fiscalização nos últimos anos”. Nenhuma análise poderia ser mais precisa. Há os que matam, os que ordenam, os que facilitam a execução e os que – por omissão – deixam de impedir os crimes. E quem de qualquer modo concorre para o crime há de incidir nas penas a ele cominadas. É o que dispõe o Código Penal.

As piores agruras de um agente público com visão elevada de suas funções e compromisso republicano ocorrem quando fica na contramão dos desvios de função das elites dirigentes nas instituições aparelhadas para ilicitudes. Bruno é o retrato desta ocorrência. Em todas as instituições somos capazes de encontrar situações similares. O Estado mata e deixa matar em prol de interesses escusos. Não é apenas a cultura e os povos indígenas que estão sendo eliminados. O desmando no qual estamos imersos elimina a vida humana, a cultura dos povos originários e o meio ambiente. Mas, o propósito é a apropriação dos bens públicos.

A classe dominante sempre teve projeto de pilhagem no Brasil: subtração do pau-brasil, retirada do ouro das Minas Gerais, escravidão para produzir açúcar e café e outras modalidades em ciclos econômicos posteriores.

No presente momento neoliberalismo apregoa o Estado mínimo e redução de sua capacidade de conter a pilhagem, mas com forte aparato armado para eliminar quem se oponha. Somente o Tribunal Penal Internacional (TPI) poderá responsabilizar a cadeia de comando e governantes pelos crimes contra a humanidade e genocídio que se praticam contra o povo diariamente.

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 02/07/2022, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2022/07/6434495-joao-batista-damasceno-parem-de-matar-parem-de-pilhagem.html