quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Agora, o tom vitimizado



“Com a redemocratização do país os militares voltaram aos quartéis, deixando suas práticas para as instituições estaduais”.



Com a redemocratização do país os militares voltaram aos quartéis, deixando suas práticas para as instituições estaduais. A truculência do Estado atuou sobre os corpos, produzindo tortura, morte e desaparecimentos, e sobre as mentes, produzindo o espanto e o temor. As políticas públicas refletiram tais concepções repressivas. Conceberam-se programas de tolerâncias zero, choques de ordem, secretarias de ordem, UPPs militarizadas e até empresas de vigilância em forma de guardas municipais militarizadas. Não houve quem não temesse abusos diante de uma blitz, abreviatura da palavra alemã blitzkrieg e que durante o nazismo expressava abordagem surpresa ou ‘guerra relâmpago’. Autoridades de segurança, do alto de seus fuzis, determinavam comportamentos à sociedade, por vezes incensados por setores da mídia. 

A sociedade viu que a guerra era do Estado contra ela e reagiu. As manifestações em todo o país deram o tom do descontentamento. Em resposta, aprofundou-se a repressão. Demais instituições fizeram coro. Estudantes, trabalhadores e moradores de rua foram ‘conduzidos’ para delegacias como integrantes de organizações criminosas. Pessoas que nunca antes haviam se visto foram consideradas associadas para a prática de crimes. Delegados foram admoestados por seus superiores para lavrarem autos de prisão em flagrante sem ocorrências concretas que os justificassem. Autoridade policial é delegado de polícia. Chefes de polícia não poderiam legalmente intervir em suas atribuições. 

Mas, a arrogância do Estado Policial cedeu. Autoridades de segurança estão falando baixinho e em tom lamentoso por uma ou outra ocorrência anômala apontada pela mídia, dentre milhares que são apenas números. As políticas de segurança não mudaram. Mas, já se muda o jeito com o qual autoridades — em tom vitimizado — lamentam os fatos por elas mesmas determinados.


 
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 27/11/2013, pag. 20. Disponível no link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2013-11-27/joao-batista-damasceno-agora-o-tom-vitimizado.html

 

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Republicanos ressentidos

“O professor Carlos Henrique Aguiar Serra, da Universidade Federal Fluminense, proferiu palestra na Escola da Magistratura onde abordou a cultura punitiva no Brasil. Diante da truculência policial contra manifestantes e professores do Rio de Janeiro tratou das políticas de segurança e da preparação dos agentes do Estado para tais práticas, mas não deixou de analisar o componente sádico da conduta de alguns deles”.

O professor Carlos Henrique Aguiar Serra, da Universidade Federal Fluminense, proferiu palestra na Escola da Magistratura onde abordou a cultura punitiva no Brasil. Diante da truculência policial contra manifestantes e professores do Rio de Janeiro tratou das políticas de segurança e da preparação dos agentes do Estado para tais práticas, mas não deixou de analisar o componente sádico da conduta de alguns deles.

A recente morte cerebral e as queimaduras em dezenas de recrutas da Polícia Militar podem ser indicativos da preparação para a desumanização e satisfação com a dor e sofrimento alheio, por instrutores que haveriam de se preparar para a uma política humanizada de segurança. Tal sadismo, fundado numa concepção punitiva, igualmente se verifica no prazer de telespectadores diante de julgamentos midiáticos, no regozijo com as condenações criminais e até mesmo com as execuções daqueles que são tratados como indignos de viver. Daí é que as políticas públicas de segurança violadoras dos direitos das pessoas encontram legitimidade nos piores sentimentos de específicos grupos sociais. 

As comemorações pelas prisões dos réus condenados à prisão na ação penal 470 do STF, processo do mensalão, no Dia da República, nos dão a dimensão do regozijo com o mal alheio. A ética da responsabilidade há de compensar os indivíduos por suas condutas. Ainda que o sistema penal atue como vingança estatal e não tenha qualquer proveito para nenhum dos membros da sociedade, continuamos a adotá-lo. Mas, nenhuma condenação há de ser motivo para comemoração.

A proclamação da República em 15 de novembro de 1889, após a abolição da escravatura em 13 de maio de 1888, contou com a adesão de última hora dos senhores de escravos, que se julgaram “expropriados no seu direito de propriedade”. Eram os “republicanos ressentidos” ou “republicanos de 13 de maio”, coronéis mandões que suprimiram os direitos na 1ª República. O ressentimento por coisas passadas é mau conselheiro dos que querem contribuir na construção do futuro.

 




Publicado originariamente no jornal O DIA, em 20/11/2013, pag. 22. Disponível no link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2013-11-20/joao-batista-damasceno-republicanos-ressentidos.html



quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Construção do medo


“A construção do medo reforça políticas de segurança desumanizadas, justifica gastos, legitima o aparato repressivo e a supressão dos direitos”.

A ocorrência no Fórum de Bangu que vitimou um policial e uma criança não se traduz em cena comum porque fantasiosa a insegurança com que nos aterrorizam autoridades e parcela da mídia. A construção do medo reforça políticas de segurança desumanizadas, justifica gastos, legitima o aparato repressivo e a supressão dos direitos. Estuda-se a instituição de videoconferência nos julgamentos, que haveria de ser uma excepcionalidade, embora – em tais casos - preferível fosse a ida do juiz ao preso.

Ônibus da Secretaria de Administração Penitenciária (SEAP) rumam para os fóruns todos os dias no mesmo horário, com dezenas de presos e agentes, em total insegurança. Com mais veículos poderiam distribuir os presos, retirando de quem tivesse a intenção do resgate a certeza de que todos estão no mesmo lugar. Os veículos da SEAP, sem condição de submissão a vistoria no Detran, expunham a vida de agentes, presos e população. O MP propôs ação civil pública para que fossem substituídos e o juízo fazendário deferiu liminar. Mas, a eficácia da liminar foi suspensa.

O Estado busca controlar a sociedade por meio de leis e truculência. Mas, nem sempre se submete à legalidade. Em plantão judicial estarreci-me com as práticas estatais alheias ao Estado de Direito. Na apuração de atos infracionais, adolescentes apreendidos em flagrante devem ser encaminhados à autoridade policial, que prontamente há de entregá-los ao responsável, se comparecer, para apresentação ao MP no mesmo dia ou dia útil seguinte. Há plantão judicial, com presença de membro do MP, à noite e nos fins de semana.

No Rio de Janeiro tem-se feito o encaminhamento ao Degase (sucessor da Funabem) e somente depois o encaminhamento ao MP. A exceção legal é a internação provisória para a garantia da segurança pessoal do adolescente. Internação definitiva só em caso de grave ameaça ou violência à pessoa, reiteração de condutas e descumprimento de medidas socioeducativas. A internação de adolescentes no Degase antes da apresentação ao MP é uma ilegalidade.

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 13/11/2013, pag. 20. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2013-11-13/joao-batista-damasceno-construcao-do-medo.html
 
 

terça-feira, 12 de novembro de 2013

PEC DA BENGALA


“Nas democracias o poder há de ser dividido e controlado. Para o controle não bastam os órgãos formais. Também é eficiente a limitação temporal nos cargos de mando. Ao invés da PEC que eterniza determinados oligarcas nas cúpulas institucionais seria mais proveitoso à cidadania uma que limitasse temporalmente a permanência nos tribunais, facultada a aposentadoria pelo tempo proporcional ou o retorno à classe inicial da carreira”.


Projeto de Emenda Constitucional pretende fixar o limite da permanência no serviço publico em 75 anos. É a PEC da bengala. Congressistas vivem sob pressão de cúpulas institucionais para a aprovação. Enquanto trabalhadores reclamam do aumento do tempo para a aposentadoria, causa estranheza o ‘desejo de servir’ por mais 5 anos após os 70. Um parlamentar relatou-me a abordagem e se disse assediado; outro, disse-me, ameaçado. Caravanas visitam o Congresso Nacional a fim de promover o ‘convencimento’. Não se tem tido o pudor de evitar o assédio a parlamentares sujeitos aos seus julgamentos. Parlamentares vivem o temor de decisões que possam causar inelegibilidades em ano pré-eleitoral. Só os que se limitaram ao gozo pela posse do poder e vivem para os cargos que ocupam, mas que julgam seus, pressionam parlamentares. Com outras razões existenciais não o fariam.

O paradigma utilizado para a defesa da PEC da bengala são os EUA onde os juízes permanecem em atividade enquanto bem servir, independentemente de idade. Mas, a cultura política e o sistema judicial estadunidense são outros. Nos EUA há juízes eleitos e nomeados pelo partido vencedor das eleições. A politização do processo de nomeação nos EUA não propicia grande interferência nos julgamentos, ante o sistema do precedente, pelo qual um julgamento vincula os pronunciamentos posteriores. O pronunciamento de um juiz sobre um tema o vincula e ao órgão que titulariza; o julgamento de tribunal o vincula, assim como a todos os juízos a ele ligados. No Brasil cada órgão judicial tem seu entendimento e o julgamento de um caso não é paradigma para julgamento posterior; a mesma matéria pode receber interpretações diferentes, para destinatários distintos, ainda que emanada do mesmo órgão judicante.

A atividade da função pública enquanto se vivesse era um pressuposto das monarquias hereditárias, assim como a concepção de que o rei não errava. Deste pressuposto decorria a presunção de veracidade dos atos daqueles que atuavam em seu nome. Mas, o Estado democrático e republicano tem outros fundamentos. Nas democracias o poder há de ser dividido e controlado. Para o controle não bastam os órgãos formais. Também é eficiente a limitação temporal nos cargos de mando. Ao invés da PEC que eterniza determinados oligarcas nas cúpulas institucionais seria mais proveitoso à cidadania uma que limitasse temporalmente a permanência nos tribunais, facultada a aposentadoria pelo tempo proporcional ou o retorno à classe inicial da carreira. Teríamos a horizontalização da magistratura, que não há de ser hierarquizada. Quem deseja bem servir o faz em qualquer lugar e não apenas nas cúpulas que encastelam e afastam da realidade.
 
Publicado originariamente na Tribuna do Advogado, Ano XLII, número 532, nov. 2013.
 

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Prisioneiro Político


os crimes são desatendimentos a comandos jurídicos do Estado, ente político. Daí é que todo crime é político. Mas, as motivações podem ser políticas ou não. Um anarquista que vá às ruas manifestar contra o poder político tem clara motivação política e sua prisão tem esta natureza”.

Max Weber diz que há três fundamentos para o exercício do poder: mítico, tradicional e racional-legal. Quem desobedece a um preceito religioso, do poder mítico, comete pecado. Quem desatende ao pai ou ao ancião da comunidade transgride um dever tradicional. Mas, os crimes são desatendimentos a comandos jurídicos do Estado, ente político. Daí é que todo crime é político. Mas, as motivações podem ser políticas ou não. Um anarquista que vá às ruas manifestar contra o poder político tem clara motivação política e sua prisão tem esta natureza. O Brasil tem o terceiro maior contingente carcerário do mundo, proporcionalmente à sua população. Um terço aguarda julgamento.

Das centenas de milhares de decisões que proferi em 20 anos de carreira, correspondentes às minhas convicções e concepção da ordem jurídica, relembro com veemência de apenas uma: da guarda de um recém-nascido em Itaperuna, em 1994. Como andará aquela criança? A escolha do lar que fiz para ela, quando mais de um era possível, foi a mais adequada?

No último domingo eu era o juiz plantonista da Cidade do Rio. Pela manhã, recebi pedido de habeas corpus em favor de Baiano e o remeti ao Ministério Público. No meio da tarde a autora perguntou pela decisão. Fui ao cartório saber do processo. Não faltaram vozes contra o preso: que era manifestante presente em todas as passeatas, desordeiro, vândalo etc... Eu apenas queria informação sobre o paradeiro do processo. O habeas corpus questionava a legalidade da prisão em flagrante e fora impetrado contra o delegado. Mas, Baiano está preso em razão de prisão preventiva decretada judicialmente. No plantão o juiz não pode reapreciar questões já decididas. Indeferi a liminar. Não lhe pude restituir a liberdade com aquele habeas corpus.

No plantão, deixei de conversar com assessora de um subsecretário municipal e receber ‘memorial prévio’ contra possíveis ações a serem propostas relativas ao ‘Porto Maravilha’. Não recebi porque estranho é o judiciário quando funciona fundado em razões que não sejam jurídicas.

 
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 06/11/2013,pag. 20.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Liberalismo e escravidão


O mercado editorial fala em liberdade, mas o que pretende é a apropriação da imagem e história de vida de pessoas notáveis, subtraindo do biografado o direito de uso da obra sobre ele. Trata-se de caso exemplar de transformação de pessoa em objeto ou mercadoria, sem o seu consentimento, com exclusão da possibilidade de uso da obra pelo próprio biografado a pretexto de propriedade imaterial do autor”.

O artigo "A esquerda caviar não liga para Amarildo", de Roberto Constantino, requentado e publicado no GLOBO, criticou o jantar beneficente realizado na casa da produtora Paula Lavigne, onde se arrecadou dinheiro para a aquisição de uma casa para a família de Amarildo. Foi dito que Amarildo é apenas um símbolo e se reclamou da falta de solidariedade aos policiais mortos em combate. Não se falou daqueles que ordenam a política de segurança militarizada e que pouco se importam se quem morre é um policial, trabalhador ou traficante. A tônica do artigo foi o ataque à Paula, do grupo Procure Saber. 
O jantar arrecadou recursos para a aquisição da casa e do custeio de pesquisa sobre os desaparecidos. Ano passado foram 5900. O liberal que critica a liberdade de recursos próprios nega o próprio liberalismo. Amarildo é um símbolo da violência do Estado contra os excluídos. É a expressão da política implantada nas áreas militarizadas. E tem nome. Dos outros, pouco sabemos e queremos saber. Foi a mídia alternativa e parte da sociedade civil que impediram fosse Amarildo contabilizado como número, como os demais.
Quem participou do jantar não defende a quebra de vitrines de bancos, nem qualquer destruição. Mas também não pede prisões. Menos ainda porque os dirigentes dos bancos não pediram ao Estado a defesa dos seus vidros. A apuração do crime de dano se faz com o pedido do prejudicado e o liberalismo, por princípio, não há de pretender a tutela do Estado quando não reclamada. O chavão anticomunista, do tempo da Guerra Fria, que desorientou o artigo situa os participantes do jantar do “lado errado na batalha das ideias”, porque dele também participou quem defende os direitos à intimidade, à imagem e os decorrentes da personalidade. O liberalismo dos que concebem a existência de uma “verdade” escorrega no totalitarismo. O mercado editorial fala em liberdade, mas o que pretende é a apropriação da imagem e história de vida de pessoas notáveis, subtraindo do biografado o direito de uso da obra sobre ele. Trata-se de caso exemplar de transformação de pessoa em objeto ou mercadoria, sem o seu consentimento, com exclusão da possibilidade de uso da obra pelo próprio biografado a pretexto de propriedade imaterial do autor.

Temos precedente no Brasil! O liberalismo conseguiu fazer conviver no Brasil o discurso liberal e a escravidão. O romantismo dos discursos destoava da realidade da qual se falava. Todas as rebeliões dos liberais no Brasil visaram a não pagar imposto e nenhuma teve por fundamento a liberdade. Os liberais no século XIX usaram e abusaram do discurso sobre a liberdade, justificando suas condutas de transformar pessoas em mercadoria. No presente momento, os liberais defendem a apropriação de bens imateriais alheios, dentre os quais os decorrentes da personalidade, e para os que nada têm para ser apropriado a sujeição à tortura, morte ou desaparecimento. A dignidade da pessoa humana repudia a truculência e por isso“Somos todos Amarildo”.

Publicado orginariamente no jornal O Globo, no dia 05/11/2013, pag. 19.