segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Segregação dos pobres em plena luz do dia


A atuação da PM no fim de semana passado, ao impedir a chegada de centenas de jovens pobres da periferia às praias da Zona Sul, demanda responsabilização dos autores da atrocidade e de toda a cadeia de comando que a ordenou ou compactuou. Trata-se violação ao direito constitucional de ir e vir, a denotar a responsabilização até do governador.

Ao contrário da retratação esperada, diante de abuso de autoridade, a PM afirmou, em nota, que “as ações preventivas têm por objetivo encaminhar para os abrigos da prefeitura crianças e adolescentes em situação de risco. Muitos desses jovens, além de estar nas ruas sem dinheiro para alimentação e transporte, apresentam condição de extrema vulnerabilidade pela ausência de familiares ou responsáveis”.

No Centro Integrado de Atendimento à Criança e ao Adolescente, para onde foram levados em micro-ônibus da PM, os jovens pobres que iam à praia foram mantidos durante todo o dia sem água e comida até a chegada dos responsáveis; foram preenchidas fichas com seus dados pessoais e obrigados a responder a perguntas sobre drogas e destinos. A Secretaria de Desenvolvimento Social limitou-se a dizer que “quem define os critérios ou quem será levado é a PM”.

Se não há motivo para decretação de prisão, o direito de ir e vir é pleno e não pode ser cerceado. A prisão somente se autoriza em flagrante de delito ou ordem escrita de autoridade judicial competente. Inexiste no Direito brasileiro condução para averiguação. Esta espécie de abuso cometida contra Amarildo não ensinou nada ao comando da PM, nem aos governantes que deveriam ditar-lhe o modo de funcionamento. As praias são bem de uso comum do povo, e uma pessoa não pode ser impedida de nela ter lazer, por ser negra ou pobre.

O fato representa grave violação aos direitos constitucionais. Mas o governador Pezão não criticou a ação da polícia e afirmou que foi realizada para evitar arrastões e outros crimes cometidos nas praias por adolescentes. E mais, que a polícia “tem visto e mapeado com inteligência toda essa movimentação de menores, desde o embarque nos ônibus”. Se à luz do dia policiais podem impedir jovens pobres de ir à praia, o que não podem fazer se os encontrar à noite num beco escuro na periferia?

 


 

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Pezão, professora e a ‘guerra pelo tráfico’


“Em entrevista, o governador Pezão disse que “enquanto houver consumo, as pessoas procurando, se viciando, vai ter guerra pelo tráfico” e que “boca de fumo dá muito dinheiro”. O governador finalizou dizendo que o Rio não está preparado para discutir a legalização das drogas.
“A questão não é de preparo, mas de interesse. Governantes e empresários não estão preparados para o não encarceramento, pois estão ávidos pela privatização do sistema prisional. A descriminalização e regulamentação da produção, comércio e consumo de drogas poderá frustrar as expectativas de quem pretende lucrar com a guarda de presos, transformando a liberdade alheia em mercadoria. A afirmativa do governador sobre a “guerra pelo tráfico” coincide com a da professora que disse que as UPPs sufocaram a facção Comando Vermelho e, com isso, a rival ADA ganhou mais espaço e dinheiro”.
 
A entrevista no DIA do domingo passado com Elizabeth de Lima Gil, que foi professora de Celso Pinheiro Pimenta, o Playboy, morto pela polícia, deveria ser lida e refletida por todos os que se ocupam ou se preocupam com o sistema de justiça.
A professora trabalhou no sistema prisional por sete anos e abordou suas mazelas. Ao falar do ex-aluno, disse que ele começou a usar drogas e depois a roubar para sustentar o vício; que a proibição o levou ao tráfico e depois para as armas; que as UPPs sufocaram a facção Comando Vermelho e, com isso, a rival ADA ganhou mais espaço e dinheiro para negociar armas; que dentro do presídio tem tráfico de drogas; que a droga para o tráfico não entra pelas mulheres em dia de visita; que numa ala do presídio o cheiro de maconha é insuportável; que, no presídio, Playboy consumia mais do que aqui fora e que há uniforme, mas ele usava roupa de marca.
Elizabeth fez propostas. Disse achar importante discutir o problema da descriminalização; da necessidade de equipe de assistente social, psicólogo e médico para ajudar na recuperação; mostrou-se contrária à redução da maioridade penal, pois o ECA já prevê medidas socioeducativas a partir dos 12 anos; que é preciso qualificar as instituições prisionais e melhorar a formação profissional para agentes e detentos e que a prisão não elimina o problema, pois o preso sai e poderá voltar pior para as ruas.
Em entrevista, o governador Pezão disse que “enquanto houver consumo, as pessoas procurando, se viciando, vai ter guerra pelo tráfico” e que “boca de fumo dá muito dinheiro”. O governador finalizou dizendo que o Rio não está preparado para discutir a legalização das drogas.
A questão não é de preparo, mas de interesse. Governantes e empresários não estão preparados para o não encarceramento, pois estão ávidos pela privatização do sistema prisional. A descriminalização e regulamentação da produção, comércio e consumo de drogas poderá frustrar as expectativas de quem pretende lucrar com a guarda de presos, transformando a liberdade alheia em mercadoria. A afirmativa do governador sobre a “guerra pelo tráfico” coincide com a da professora que disse que as UPPs sufocaram a facção Comando Vermelho e, com isso, a rival ADA ganhou mais espaço e dinheiro.
 
 

domingo, 16 de agosto de 2015

Os inquisidores estão previamente convencidos

Só a nomeação do ex-presidente Lula para um ministério evitará que, por motivo torpe, lhe decretem a prisão visando a extinguir seu partido. Do centro à direita o querem. E à esquerda há descontentes, desde 1980, quando o general Golbery, para desarticular os setores progressistas, ajudou a legalizá-lo em contrariedade à lei dos partidos políticos que proibia referência a classe social. Lula pode ser preso sem fato juridicamente ilícito. Um juiz não julga um fato; tão somente sua reconstituição. Um juiz intelectualmente honesto possibilita reconstituição isenta. Mas os inquisidores constroem o que querem, pois estão previamente convencidos. A conciliação com a classe dominante é transitória. 

Presidenta, radicalize! Nomeie Lula ministro. Garanta-lhe a dignidade perante o Estado Policial. Se é para cair, caia de pé! Substitua o ministro da Justiça por alguém à altura do cargo. Amigos são bons para a convivência, mas não para as funções de Estado. Igualmente o ministro da Fazenda. Não suprima direito dos trabalhadores para saciar a fome dos banqueiros internacionais, não criminalize manifestações populares nem as qualifique como terrorismo, preserve as áreas indígenas, não venda o patrimônio do povo, nem passe a cobrar pelo uso do SUS, que precisa ser melhorado. A ‘Agenda Brasil’ há de ser para os brasileiros e não para os banqueiros. A conciliação aplaca momentaneamente mas não sacia o capital, que volta mais feroz. Ouse! Proponha: Reforma Agrária, estatização dos bancos e dos serviços públicos privatizados, nacionalização do processo petrolífero, suspensão do pagamento da dívida externa até auditoria, revisão da Lei da Anistia, extinção da Justiça Militar, desmilitarização das polícias, anistia aos perseguidos das ‘jornadas de junho’, extinção do oligopólio da mídia corporativa, com adoção de legislação similar à dos EUA, restabelecimento dos direitos suprimidos dos trabalhadores e 20% do PIB para a Educação. 

Presidenta, faça como El Cid, que se fez amarrar num cavalo para depois de morto continuar inspirando sua tropa, ou como os guerreiros espanhóis, enterrados de pé para continuar a luta pela eternidade. Sem isto, será triste o seu fim, dos seus companheiros, da causa pela qual dedicou sua vida, da democracia e da eficácia da Constituição de 1988. 



terça-feira, 11 de agosto de 2015

As bombas no Riocentro e no Instituto Lula


“A redemocratização juntou opositores de primeira hora e toda a canalha descontente com o regime que ajudara a instituir. Mas o saldo foi a manutenção da estrutura do regime, inclusive o aparato repressivo. A bomba no Instituto Lula decorreu de ação de grupos que jamais foram desarticulados. E nenhuma investigação apurará a autoria. Afinal, quem apura tais crimes compõe os mesmos órgãos do Estado que os comete. A prisão de José Dirceu serviu para sepultar o assunto. Sem adequada cobertura da mídia, fica garantido o acobertamento”.

Dia 11 rememoraremos quatro anos da morte da juíza Patrícia Acioli e, no dia 22, os 39 anos da morte de Juscelino Kubitschek. O aparato repressivo do Estado aperfeiçoou-se durante a ditadura empresarial-militar, e seu pior tentáculo foi o paramilitar, integrado pela ‘linha dura’ do regime, que se notabilizou como esquadrões da morte, não desativados com a redemocratização.

A abertura política não foi imposição dos grupos que se opuseram ao regime, mas dele próprio que se esgotou. Dissidentes ajudaram na transição. Para a abertura, o regime eliminou quem pudesse se opor. Daí serem emblemáticas as mortes dos três líderes da Frente Ampla no mesmo período: Juscelino em 22 de agosto de 1976; Jango em 9 de dezembro e Carlos Lacerda em 21 de maio de 1977. Há dúvidas sobre a causa de tais mortes. Somente Moniz Bandeira afirma categoricamente que Jango morreu de causa natural. Se for para fazer suposições, prefiro as que relacionam as mortes dos líderes da Frente com a ordem documentada para o extermínio da direção do Partido Comunista, visando a assegurar o controle da abertura política em forma “lenta, gradual e segura”.

O general-presidente Geisel atendia às pressões estadunidenses para abertura, mas não sem a oposição dos torturadores que no governo Médici dominaram as instalações militares. A redemocratização aconteceu sob bombas nas bancas de jornal, na ABI, na OAB e na Câmara do Rio, colocadas por membros das gloriosas Forças Armadas que a ela se opunham. A mais emblemática foi a do Riocentro, explodida no colo do terrorista oficial, mantido no Exército até o posto de coronel, no qual se reformou.

A redemocratização juntou opositores de primeira hora e toda a canalha descontente com o regime que ajudara a instituir. Mas o saldo foi a manutenção da estrutura do regime, inclusive o aparato repressivo. A bomba no Instituto Lula decorreu de ação de grupos que jamais foram desarticulados. E nenhuma investigação apurará a autoria. Afinal, quem apura tais crimes compõe os mesmos órgãos do Estado que os comete. A prisão de José Dirceu serviu para sepultar o assunto. Sem adequada cobertura da mídia, fica garantido o acobertamento.

 



 

 

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Magistratura e parentela

A lei proíbe que juízes atuem em processos em que tenham figurado como parte, testemunha, membro do MP ou perito. Igualmente proíbe que atuem em processos nos quais seus filhos, irmãos ou cônjuge sejam parte ou advogado. A formação social brasileira se deu em torno das famílias. Não foi o Estado português quem iniciou a formação nacional, mas os ‘senhores de engenho’ com suas famílias. A lavoura de café se estabeleceu em torno do ‘coronel’, apoiado por sua parentela que incluía agregados, compadres e afilhados. Séculos antes que a lei definisse parentesco por afinidade ou adoção social, a realidade brasileira conhecia formas extensivas de família e de parentalidade. As grandes empresas brasileiras são familiares. A maior empresa de comunicação do Brasil, concessionária de serviço público, é unifamiliar, assim como outras.
A concepção republicana de serviço público e a acessibilidade aos cargos públicos, pelo mérito, sofrem com estas características de nossa formação. Mesmo os cargos eletivos costumam decorrer da filiação, e não são poucos os filhos de parlamentares eleitos nos mesmos pleitos disputados pelos pais ou nos quais estes tenham desistido de concorrer.
Em notável obra na qual descreve ocorrências no Judiciário fluminense, do qual foi presidente, o desembargador Paulo Dourado de Gusmão narrou conduta de magistrado que mandara o filho para São Paulo ao terminar o curso de Direito. Ao pai não parecia lícito ter um filho advogando no mesmo Estado onde exercia a magistratura. O poder tradicional e familiar de um pai no início do século 20, que ordenava comportamento a um filho adulto, não mais subsiste. Nem o Direito o admite. Mas há de subsistir o princípio republicano que veda a pais e filhos atuar simultaneamente como advogado e juiz na mesma causa. O Estatuto da Magistratura pretende estender a proibição para os demais membros dos escritórios de advocacia nos quais os parentes do magistrado sejam sócios ou empregados. Nada mais republicano! Afinal, de nada adianta a lei proibir o juiz de atuar em processo no qual parente seja advogado e autorizar nos que atuem seu colega de escritório.
Mas a concepção republicana que proíbe a advocacia perante magistrados que sejam parentes não pode impedir o exercício profissional, tal como no exemplo do desembargador Gusmão. A entrada pela porta do Fórum do magistrado em momento concomitante ou diverso de seu parente ou cônjuge não é expressão de que rumam para o mesmo gabinete. Afinal, conchavos e ‘pedidos’ chamados de ‘embargos auriculares’ não são realizados às claras. Não é da aparição pública que decorre a suspeição, mas do que não se publiciza.
 
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 02/08/2015, pag. E6. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2015-08-01/joao-batista-damasceno-magistratura-e-parentela.html