quinta-feira, 26 de setembro de 2013

‘CARTÓRIO’ E PATRIMONIALISMO


Cartório ou cartorialismo é apenas um dos aspectos do patrimonialismo, fenômeno social onde os interesses público e privado se confundem, em prejuízo daquele.
Nada é menos republicano que uma sociedade na qual a elite dirigente é patrimonialista.


quarta-feira, 25 de setembro de 2013

DIREITOS DO POVO

Sob o fundamento de que o prédio do antigo Museu do Índio era da União e que ameaçava desabar, o estado requereu a suspensão da eficácia das liminares deferidas aos índios que o ocupavam desde 2006. A possessória era movida contra o estado, ameaçador do esbulho. Por se ‘achar’ que o prédio era da União, foi determinada a remessa dos processos para a Justiça Federal.

O cartório do 11º RGI, sob a matrícula 62.610, atesta a propriedade, e laudo do Crea assegurava a solidez da estrutura. Foi vã a tentativa de mostrar que o prédio era de uma pessoa jurídica de direito privado e que tinha estrutura sólida. A realocação dos índios nele, no presente momento, o demonstra. Somente é possível convencer, com razão e Direito, aqueles que não tenham convicção formada e que se disponham a conhecer a realidade.

Estive na Aldeia Maracanã no dia da desocupação violenta pela Tropa de Choque e fui à delegacia para onde os estudantes presos foram levados. Fotografei os objetos apreendidos com os índios e tratados como suficientes para lavratura de um auto de apreensão de armas. Eram artesanatos: arcos, flechas, zarabatanas, cocares, chocalhos etc... O estado aprendeu o ‘caminho curto’ da criminalização de estudantes e manifestantes. Um deles esteve preso por 15 dias porque em sua mochila tinha um bombinha do tipo cabeça de negro, artefato comum entre crianças nas festas juninas e que se pode encontrar em qualquer loja de fogos de artifício. Alegava-se posse de material explosivo. Mas fósforo também o é.

Quando da ocupação do Complexo do Alemão e dos abusos que nele se praticaram, protocolei ofício na presidência do tribunal sugerindo a instalação de um ônibus da Justiça Itinerante por lá, a fim de exercer controle de legalidade sobre as prisões que eram efetuadas. Disponibilizei-me a atuar nele. Nem resposta! Mas no Rock in Rio não faltou a Justiça Itinerante. Não para garantir direitos. Mas para possibilitar a prisão preventiva de pessoa acusada de crime que, se condenada, terá o direito ao cumprimento da pena em regime aberto.

Publicado originalmente publicado no jornal O DIA, em 22/09/2013, pag. 22.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

PROJETO 'SOMOS TODOS AMARILDOS' VAI ANGARIAR RECURSOS PARA COMPRAR UMA CASA PARA A FAMÍLIA DO PEDREIRO
 
· Além de jantar de adesão e leilão, organizadores vão realizar um show em que artistas e plateia usarão máscaras retratando o operário

SÉRGIO RAMALHO

O ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Souza, de 42 anos, está desaparecido desde o dia 14 de julho
RIO - Há 72 dias sem uma resposta sobre o paradeiro do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, visto pela última vez na noite de 14 de julho ao ser levado por policiais à sede da UPP da Rocinha, um grupo heterogêneo — músicos, artistas plásticos, atrizes, advogados e integrantes do judiciário —, capitaneado por Paula Lavigne, vai se mascarar em prol da família do operário. Além de organizar um jantar de adesão, conforme revelou a coluna de Ancelmo Gois, eles planejam realizar um show onde artistas e a plateia vão receber máscaras de Amarildo. O dinheiro angariado será usado para dar um lar à família do pedreiro.
A mulher, Elizabete, e os filhos de Amarildo dividem espaço num casebre de apenas um cômodo e desde o desaparecimento do ajudante de pedreiro enfrentam dificuldades. Paula Lavigne espera reunir o dinheiro, cerca de R$ 60 mil, para comprar uma casa na Rocinha durante o jantar de adesão, cujo o valor é R$ 500 por lugar à mesa. O evento esta marcado para acontecer no próximo dia 8, quando também será realizado um leilão. Entre as peças que serão oferecidas estão um manuscrito da música “Perdeu”, de Caetano Veloso, um instrumento musical de Marisa Monte e um quadro do artista plástico Carlos Latuff, que retrata um negro crucificado sendo baleado por um policial.
O projeto “Somos todos Amarildos” também prevê a realização de um show no Circo Voador, ainda sem data marcada, onde vão se apresentar Caetano Veloso, Marisa Monte, Emicida e outros artistas. Há ainda a proposta de formar um bloco, que vai se reunir na Pedra do Arpoador. Todos vestidos de preto e usando máscaras de Amarildo. Paula atribui parte da ideia ao desembargador Siro Darlan e ao juiz João Batista Damasceno:
— A ideia, além de ajudar a família de Amarildo, é lembrar os tantos Amarildos que estão desaparecidos ou sofrendo injustiças — diz.
Paula Lavigne acrescenta que o restante do dinheiro angariado com os eventos será revertido a ONGs voltadas à defesa dos direitos em comunidades carentes e contra a violência praticada por agentes do estado, entre elas o Tortura Nunca Mais e o Instituto de Defesa dos Direitos Humanos (IDDH).


 



segunda-feira, 23 de setembro de 2013

CASA PARA A FAMÍLIA DO AMARILDO

A política de segurança pública militarizada o eliminou e desapareceu com seu corpo. Retirou da família o direito inalienável de praticar o último gesto de despedida e desfazimento das relações estabelecidas ao longo da vida: o sepultamento. Não bastava terem torturado, matado e desaparecido com seu corpo. Tentaram criminalizá-lo, ainda que para isto fosse necessário criminalizar, também, sua esposa e mãe de seus filhos. Para os formuladores e garantidores da atual política do Estado a perversidade até então praticada era pouca. Na casa com nove metros quadrados Amarildo vivia com a mulher e os filhos. Não era uma casa. Mas, um cômodo no final de um beco, tendo ao fundo um valão. Era um beco sem saída. Um delegado, que não foi ao local, disse que a casa era rota de fuga para o tráfico. Felizmente, ainda há gente com dignidade em toda parte, inclusive nos quadros da Polícia Civil e no Ministério Público. E desta forma, Beth (viúva de Amarildo) e seus filhos poderão permanecer em liberdade; merecem uma casa. Uma imputação policial é, igualmente, um beco sem saída para aqueles que não dispõem dos meios de defesa. As agências seguintes cuidam apenas de homologar o que consta do inquérito ou auto de prisão. E adeus liberdade!
O delegado Orlando Zaccone, que impediu a truculência, e a promotora, Marisa Paiva, que não embarcou na versão fantasiosa que criminalizava inocentes e possibilitava o encobrimento da política que se executa nos territórios ocupados e militarizados das UPPS, merecem nosso reconhecimento público.
 


Debate na EMERJ sob o tema A CULTURA PUNITIVA NO BRASIL, com o Professor Doutor Carlos Henrique Aguiar Serra.


quinta-feira, 19 de setembro de 2013

PODRES PODERES


Em 1981, uma bomba destinada a matar jovens num show de música no Riocentro explodiu no colo dos terroristas oficiais, e o Brasil encontrou o caminho para a redemocratização. Outras haviam explodido: na Câmara de Vereadores, na ABI, na OAB, em bancas de jornais e contra o bispo da libertação Dom Adriano Hipólito. Todas eram atribuídas a terroristas de esquerda, os vândalos da época. A bomba do Riocentro desnudou o regime tal como o desaparecimento de Amarildo desnuda a truculência do Estado e a política de segurança nas áreas militarmente ocupadas. Aquela bomba acendeu o pavio do desejo de liberdade e redemocratização.

O ano de 1984 foi emblemático. Em 10 de abril, um comício pelas ‘Diretas Já’ reuniu um milhão na Candelária. Em outros comícios registraram-se atos de destruição, que todos sabíamos eram praticados por agentes do regime, disfarçados de manifestantes. O filme‘Jango’, de Silvio Tendler, tendo como trilha sonora a música ‘Coração de estudante’, de Milton Nascimento, se converteu no hino da juventude. No mesmo ano Caetano Veloso nos deu a música ‘Podres poderes’, onde expressava com veemência sobre os ridículos tiranos, a estúpida retórica e os capatazes com suas burrices que fazem jorrar sangue. Concluiu dizendo que “tudo é muito mau...”, mas lembrou Oswald de Andrade, para quem nunca fomos catequizados, pois fizemos o Carnaval. Liricamente Caetano questionou se “apenas os hermetismos pascoais e os tons, os mil tons; seus sons e seus dons geniais nos salvarão dessas trevas”, numa clara referência a Hermeto Pascoal, Tom Jobim e Milton Nascimento.

Neste ano a Constituição completa 25 anos, e jovens dessa idade estão nas ruas para efetivar a democracia escrita e não efetivada. Mas os podres e mascarados poderes insistem em proibir as manifestações, criminalizar a juventude e tentar impedir a liberdade, tal como loucos que pensam poder impedir o nascer do sol usando tapa-olho. O compromisso democrático há de nos fazer querer aproximar daqueles que velam pela alegria do mundo.
Publicado originalmente publicado no jornal O DIA, em 18/09/2013, pag. 22.


quarta-feira, 18 de setembro de 2013

VANDALISMO E BLACK BLOCS



A palavra ‘vandalismo’ é uma das poucas que sabemos onde e quem a usou pela primeira vez. Padre Grégoire, deputado influente na Constituinte francesa e membro da Convenção, período da Revolução que antecedeu o Diretório e a ascensão de Napoleão Bonaparte, a escreveu em 1794. Nos relatórios, Grégoire estigmatizou “o vandalismo e a violência revolucionária do populacho que destrói patrimônio”. O termo foi usado correntemente depois da decapitação de Robespierre, a quem a alta burguesia dizia ser “vandalista que se infiltrou entre nós”. A comissão especial instituída para investigação dos atos de vandalismo, nominada de ‘Comissão dos Monumentos’ ou ‘Comissão de Instrução Pública’, tinha o objetivo de apurar e denunciar a “barbárie” e os “vândalos” como forças hostis. Além de apontar a violência dos revolucionários como nociva, inventariou “os prejuízos resultantes da venda de bens nacionais” pela aristocracia.

Ninguém se propõe a fazer apologia de destruições, mas foram os comportamentos radicais, patrióticos e cívicos dos ‘sans-culottes’, trabalhadores pobres e considerados “classe perigosa” pela grande burguesia francesa, que ensejaram as transformações políticas das quais o mundo hoje se orgulha.

O poder constituído, na defesa dos interesses que não os do povo, criminaliza os movimentos sociais. Em ‘Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio’, Maquiavel escreveu que “Os que criticam as contínuas dissensões entre os aristocratas e o povo parecem desaprovar justamente as causas que asseguraram fosse conservada a liberdade de Roma, prestando mais atenção aos gritos e rumores provocados por tais dissensões do que aos seus efeitos salutares. Não querem perceber que há em todos os governos duas fontes de oposição: os interesses do povo e os da classe dominante. Todas as leis para proteger a liberdade nascem da sua desunião”.

Criminalizar os movimentos sociais é o primeiro recurso da elite dominante. Quando a ordem jurídica não o admite, o Estado o faz ilegalmente.


Texto originalmente publicado no jornal "O Dia", em 11/09/2013.