sábado, 28 de janeiro de 2023

Direitos Humanos em uma carta da periferia

 

As fotografias dos Yanomamis vitimados por uma política genocida revelam um Brasil que alguns ignoram e outros negam existir, tal como se fazem com os moradores das periferias cujas vidas são também precarizadas e invisibilizadas. Dos debates que se estabeleceram ao longo do ano de 2022 sobre princípios de convivência social versus barbárie um texto da jornalista mineira Natália Andrade me impactou.

Nos debates, uns defendiam o retorno à “normalidade democrática” e outros se opunham com ódio xingando-os de “abortistas”, “ateus”, “defensores das drogas” e outros adjetivos. Tratou-se do diálogo do desentendimento, pois não havia debate efetivo. Nas defesas de pautas humanitárias - em contraposição aos defensores da barbárie – sobraram opiniões de quem nunca perdeu o sono pensando com o que se alimentar no dia seguinte, mas convictos na defesa de valores abstratos.

Foi neste contexto que a mensagem da Natália caiu como uma bomba. Eu pedi a ela autorização para publicar partes de sua carta. Ela começa dizendo de onde fala: “Vou falar do meu lugar de pobre, favelada e que convive de verdade com o povão. (...). Não dá pra falar de orçamento secreto, Centrão, compra de apoio, AGORA! Educação a gente faz a longo prazo e a gente não tem prazo. Não adianta falar de orçamento secreto pra quem tá ouvindo que (...) vai ter que assar o próprio cachorro e vai ter a casa invadida por sem-teto. A gente tá numa disputa extremamente suja e se quiser ganhar é descer do salto e enfiar a mão na lama. Vídeo de artista (...) na frente da mansão não convence quem tá sem dormir por causa do aluguel atrasado. Passou da hora de sair da bolha, da academia e parar de pregar pra convertido. Tem milhões de outras realidades à nossa volta, as pessoas têm fome e quem tem fome tem fome agora, não é amanhã, não é quando o programa de governo for aprovado. Essas discussões são importantíssimas, mas não são pra agora. Já deu de ficar nessa bolha de que nós somos inteligentes e especiais e estamos fazendo pelo bem da humanidade. A gente tá fazendo por nós mesmos, mas é do lado de cá que a corda arrebenta. Já deu de fazer campanha com sambinha fora da realidade, isso não cola, não convence e muitas vezes nem chega em quem mais precisa”.

Natália ressalta sua vivência e escreveu que é preciso falar a partir das necessidades dos favelados e periféricos, considerando suas demandas concretas e as brutalidades a que estão cotidianamente submetidos e falou daqueles que “não falam mais com o povão”. E fez proposição: “O mundo não é Rio e São Paulo. Quer falar com favelado? Pega o Poze, a Ludmila, os Racionais. Coloca pessoas com quem as pessoas reais se identifiquem”.

Ela falou de suas opções eleitorais nas eleições passadas, mas disse que sua escolha não era “por causa do investimento em pasta X ou Y, por causa de democracia ...”, pois com ou sem a eleição de quem votaria “a polícia sobe favela e atira primeiro pra perguntar depois”.

Ainda que a democracia seja o regime que melhor sirva para a defesa dos interesses do povo, não foi pela sua benquerença abstrata a razão da escolha eleitoral da Natália, mas os bens vitais indispensáveis à sua vida. Ela o explicitou: “...Foi com o bolsa família que eu não passei fome, com cota que eu entrei na universidade, com farmácia popular que minha irmã teve acesso às medicações que ela precisa pra sobreviver. Não é questão de defender democracia, isso é abstrato demais. É defender sobrevivência. Não adianta fazer discurso abstrato; é pegar a realidade das pessoas. E, também não é pregar mundo mágico de Oz porque não existe. Eu sou a primeira da minha família que formou e ainda passo os mesmos apertos, ainda vejo que cota vale na faculdade, mas não vale no mercado de trabalho, que os mesmos sobrenomes que escravizaram meus antepassados dominam o mercado onde eu não consigo entrar. A vida não vai ser linda quando (meu candidato) ganhar não, mas as pessoas merecem ao menos a oportunidade de que ela seja menos difícil”.

O texto de Natália me afetou. Ela retratou as agruras dos periféricos e disse que “onde eu moro posso contar quantas vezes polícia entrou lá em casa, quantas vezes acordei e tinha gente armada na laje sem mandado, sem porra nenhuma”. Sequer falou do que no Rio de Janeiro chamamos de “Tróia”, invasão de domicílio e tomada de famílias como reféns, por agentes do Estado, para de dentro de suas casas alvejar indesejáveis ao sistema.

Não basta dizermos abstratamente sobre as vidas que importam, sem nos ocuparmos das violações concretas aos direitos humanos. Não podemos nos calar diante da política de extermínio, nem admitir milícias ou seus apoiadores em cargos de direção do Estado. Precisamos, efetivamente, agir em prol das pessoas concretas que vivenciam cotidianamente as injustiças e mazelas institucionais.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA em 28/01/2023, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/01/6564016-joao-batista-damasceno-direitos-humanos-em-uma-carta-da-periferia.html

 


sábado, 14 de janeiro de 2023

Não foi vandalismo, foi terrorismo!

 

Poucas palavras têm suas origens efetivamente conhecidas. A etimologia é o estudo da origem e história das palavras, de onde surgiram e como evoluíram ao longo do tempo. E não faltam polêmicas sobre algumas. Mas de uma temos referência da primeira vez em que foi empregada. Trata-se da palavra ‘vandalismo’. Da palavra ‘vandalismo’ sabemos onde e quem usou pela primeira vez. Foi o Padre Grégoire, deputado influente na Constituinte francesa e membro da Convenção, período da Revolução Francesa que antecedeu o Diretório e a ascensão de Napoleão Bonaparte. Ele a escreveu em 1794. Em seus relatórios o Padre Grégoire estigmatizou “o vandalismo e a violência revolucionária do populacho que destrói patrimônio”.

O termo foi usado correntemente depois da decapitação de Robespierre, a quem a alta burguesia dizia ser “vandalista que se infiltrou entre nós”. Padre Grégoire compunha a “Comissão dos Monumentos” ou “Comissão de Instrução Pública”, que tinha o objetivo de apurar e denunciar a ‘barbárie’ e os ‘vândalos’ como forças hostis. Além de apontar a violência dos revolucionários como nociva, inventariou “os prejuízos resultantes da venda de bens nacionais” pela aristocracia.

A referência aos Vândalos já era estigmatizada, pois se tratava do povo que o Império Romano havia expulsado quando de sua expansão e que, ante o declínio deste, retornavam aos seus territórios. Aliás, esta é a história de todos os pejorativamente nominados como bárbaros. Bárbaro era, na ótica grega, qualquer povo que não falasse sua língua e não compartilhasse sua cultura e forma de organização social. O termo foi apropriado pelos romanos e se tornou modo de expressão pejorativa na referência aos povos estrangeiros.

Gentio era apenas quem não tinha a cidadania romana, mas bárbaro era quem - além de não ter a cidadania romana - não compartilhava os mesmos valores. Numa sociedade excludente e dividida, como é a brasileira, não é difícil compreender o que pensa a classe dominante em relação aos excluídos, tratados como bárbaros a quem não se pode garantir direitos.

A história registra como feito heroico a expansão romana. Na verdade, o que tivemos foi pilhagem, dominação e violência contra outros povos. A história que exalta a expansão romana registra como invasões bárbaras o retorno do povo espoliado aos lugares de origem dos seus ancestrais.

Os Vândalos compunham uma tribo germânica oriental que contornou o atual território da Espanha, possivelmente passando por Sevilha na Andaluzia visando à travessia do Estreito de Gibraltar. Conquistado o norte da África, criaram um Estado com capital em Cartago, onde hoje existe a Tunísia. Em 455 os Vândalos vingam-se da tomada e dominação daquele território pelos romanos, desde as Guerras Púnicas. Assim, atravessaram o Mediterrâneo e saquearam Roma. Bárbaros e Vândalos eram povos estigmatizados. Vandalismo foi palavra criada pelo Padre Grégoire.

O que aconteceu em Brasília no último dia 8 não pode ser classificado como vandalismo. Não se tratou de uma turba aloprada e desorganizada destruidora de patrimônio público. Não se tratou de um evento tal como se fosse um grupo de jovens bêbados em briga de rua na saída de um baile na madrugada. Foi muito pior e é preciso juntar as peças do quebra-cabeça para nos certificarmos do fenômeno com o qual estamos efetivamente tratando. Foi terrorismo!

Terrorismo é um método que consiste no uso de violência, física ou psicológica, por indivíduos ou grupos políticos, contra a ordem estabelecida por meio de um ataque a um grupo político, ao governo ou à população que o apóia, visando ao transtorno psicológico que transcenda ao círculo das vítimas e se estenda a todos os indivíduos do grupo ou habitantes do território.

Terrorismo é uma estratégia política e não militar levada a cabo por grupos que não são fortes o suficiente para efetuar ataques abertos, sendo utilizada em época de paz, conflito e guerra. A intenção mais comum do terrorismo é causar um estado de medo na população ou em setores específicos da população, com o objetivo de provocar num inimigo político (ou seu governo) uma mudança de comportamento.

Vandalismo é mero crime de dano. O que aconteceu foi terrorismo, pois se tentou, por meio de violência e grave ameaça, depor um governo legitimamente constituído, bem como abolir o Estado Democrático de Direito. Tratam-se de crimes contra as instituições democráticas definidos no Código Penal.
A questão que se torna necessária não é, apenas, a responsabilização dos peões do tabuleiro do xadrez já identificados. Claro que devem responder pelos atos que incidiram diretamente e pelos quais contribuíram de qualquer forma. Mas em tempo de guerra híbrida é preciso analisar a quem serviam, quem comandou e quem facilitou a atuação.

O ovo da serpente começou a ser chocado nos acampamentos tolerados, apoiados e incentivados pelos comandantes militares. As Forças Armadas estão completamente implicadas no processo. Prevaricaremos perante a história se, em nome da pacificação, não impormos responsabilizações. É hora de passarmos a história republicana a limpo, a começar pelo restabelecendo da redação original do Art. 42 da Constituição de 1988 que tratava dos servidores públicos militares, insuscetíveis de se arvorarem como poder moderador.

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 14/01/2023, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/01/6555559-joao-batista-damasceno-nao-foi-vandalismo-foi-terrorismo.html