As fotografias
dos Yanomamis vitimados por uma política genocida revelam um Brasil que alguns
ignoram e outros negam existir, tal como se fazem com os moradores das
periferias cujas vidas são também precarizadas e invisibilizadas. Dos debates
que se estabeleceram ao longo do ano de 2022 sobre princípios de convivência
social versus barbárie um texto da jornalista mineira Natália Andrade me
impactou.
Nos debates,
uns defendiam o retorno à “normalidade democrática” e outros se opunham com
ódio xingando-os de “abortistas”, “ateus”, “defensores das drogas” e outros
adjetivos. Tratou-se do diálogo do desentendimento, pois não havia debate
efetivo. Nas defesas de pautas humanitárias - em contraposição aos defensores
da barbárie – sobraram opiniões de quem nunca perdeu o sono pensando com o que
se alimentar no dia seguinte, mas convictos na defesa de valores abstratos.
Foi neste
contexto que a mensagem da Natália caiu como uma bomba. Eu pedi a ela
autorização para publicar partes de sua carta. Ela começa dizendo de onde fala:
“Vou falar do meu lugar de pobre, favelada e que convive de verdade com o
povão. (...). Não dá pra falar de orçamento secreto, Centrão, compra de apoio,
AGORA! Educação a gente faz a longo prazo e a gente não tem prazo. Não adianta falar
de orçamento secreto pra quem tá ouvindo que (...) vai ter que assar o próprio
cachorro e vai ter a casa invadida por sem-teto. A gente tá numa disputa
extremamente suja e se quiser ganhar é descer do salto e enfiar a mão na lama.
Vídeo de artista (...) na frente da mansão não convence quem tá sem dormir por
causa do aluguel atrasado. Passou da hora de sair da bolha, da academia e parar
de pregar pra convertido. Tem milhões de outras realidades à nossa volta, as
pessoas têm fome e quem tem fome tem fome agora, não é amanhã, não é quando o
programa de governo for aprovado. Essas discussões são importantíssimas, mas
não são pra agora. Já deu de ficar nessa bolha de que nós somos inteligentes e
especiais e estamos fazendo pelo bem da humanidade. A gente tá fazendo por nós
mesmos, mas é do lado de cá que a corda arrebenta. Já deu de fazer campanha com
sambinha fora da realidade, isso não cola, não convence e muitas vezes nem
chega em quem mais precisa”.
Natália
ressalta sua vivência e escreveu que é preciso falar a partir das necessidades
dos favelados e periféricos, considerando suas demandas concretas e as
brutalidades a que estão cotidianamente submetidos e falou daqueles que “não
falam mais com o povão”. E fez proposição: “O mundo não é Rio e São Paulo. Quer
falar com favelado? Pega o Poze, a Ludmila, os Racionais. Coloca pessoas com
quem as pessoas reais se identifiquem”.
Ela falou de
suas opções eleitorais nas eleições passadas, mas disse que sua escolha não era
“por causa do investimento em pasta X ou Y, por causa de democracia ...”, pois
com ou sem a eleição de quem votaria “a polícia sobe favela e atira primeiro
pra perguntar depois”.
Ainda que a
democracia seja o regime que melhor sirva para a defesa dos interesses do povo,
não foi pela sua benquerença abstrata a razão da escolha eleitoral da Natália,
mas os bens vitais indispensáveis à sua vida. Ela o explicitou: “...Foi com o
bolsa família que eu não passei fome, com cota que eu entrei na universidade,
com farmácia popular que minha irmã teve acesso às medicações que ela precisa
pra sobreviver. Não é questão de defender democracia, isso é abstrato demais. É
defender sobrevivência. Não adianta fazer discurso abstrato; é pegar a
realidade das pessoas. E, também não é pregar mundo mágico de Oz porque não
existe. Eu sou a primeira da minha família que formou e ainda passo os mesmos
apertos, ainda vejo que cota vale na faculdade, mas não vale no mercado de
trabalho, que os mesmos sobrenomes que escravizaram meus antepassados dominam o
mercado onde eu não consigo entrar. A vida não vai ser linda quando (meu
candidato) ganhar não, mas as pessoas merecem ao menos a oportunidade de que
ela seja menos difícil”.
O texto de
Natália me afetou. Ela retratou as agruras dos periféricos e disse que “onde eu
moro posso contar quantas vezes polícia entrou lá em casa, quantas vezes
acordei e tinha gente armada na laje sem mandado, sem porra nenhuma”. Sequer
falou do que no Rio de Janeiro chamamos de “Tróia”, invasão de domicílio e
tomada de famílias como reféns, por agentes do Estado, para de dentro de suas
casas alvejar indesejáveis ao sistema.
Não basta
dizermos abstratamente sobre as vidas que importam, sem nos ocuparmos das
violações concretas aos direitos humanos. Não podemos nos calar diante da
política de extermínio, nem admitir milícias ou seus apoiadores em cargos de
direção do Estado. Precisamos, efetivamente, agir em prol das pessoas concretas
que vivenciam cotidianamente as injustiças e mazelas institucionais.
Publicado
originariamente no jornal O DIA em 28/01/2023, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/01/6564016-joao-batista-damasceno-direitos-humanos-em-uma-carta-da-periferia.html