“O poeta morreu. Mas segue
insepulto esbravejando contra a esperança. Talvez porque não lhe avisaram do
seu falecimento. A noite nos trópicos não lhe tem sido veloz, e ele se arrasta
pela escuridão ao lado do passado, também insepulto, que insiste ser presente.
O assassinato de índios, de sem-terra e de seus advogados, pelo latifúndio, e a
morte de homens analfabetos e negros de vida curta não o sensibilizam mais. O
poeta morreu! Um clone seu passeia entre crônicas e colunas, sem querer saber
de onde vem a farinha com a qual são feitas coxinhas ou o óleo na qual são
fritas”.
Folheando livro presenteado pelo historiador Rubin
Aquino por ocasião dos 80 anos de fundação do PCB, na contracapa encontrei
poema de Ferreira Gullar, onde dizia que “eles eram poucos e nem puderam cantar
alto a Internacional naquela casa de Niterói em 1922. Mas cantaram e fundaram o
partido. O PCB não foi o maior partido do Ocidente, nem mesmo do Brasil. Mas
quem contar a história de nosso povo e seus heróis tem que falar dele. Ou
estará mentindo”. No rádio, Adriana Calcanhotto cantava ‘Vambora’ e falava da
noite veloz. Fui à estante procurar Ferreira Gullar, poeta que a inspirara. Ele
estava lá, dentro do livro.
Fui apresentado à história por Aquino. Estive no
seu funeral. Tenho saudade tanto dele quanto do poeta Ferreira Gullar, para
quem “se morro, o universo se apaga como se apagam as coisas deste quarto, se
apago a lâmpada”, e que no poema ‘Não há vagas’ disse que o preço do feijão não
cabe num poema, nem o funcionário público com seu salário de fome e sua vida
fechada em arquivos, nem o operário que esmerilha seu dia de aço e carvão nas
oficinas escuras.
Mas no mundo há muitas armadilhas capazes de matar
até um poeta. E o que é armadilha pode ser refúgio, e o que é refúgio pode ser
armadilha. E o poeta, que era homem comum de carne e memória, de osso e
esquecimento, que andava a pé, de ônibus, de taxi, de avião e tinha a vida
soprando dentro de si, pânica, feito a chama de um maçarico, perdeu a memória e
morreu. Ele escrevera que o açúcar branco adoça o café e Ipanema, sem ser
fabricado por quem o consume, vende ou pelo dono da usina. Mas, em instalações
escuras, por homens escuros de vida amarga, que não sabem ler e morrem de fome
nos canaviais aos 27 anos.
O poeta morreu. Mas segue insepulto esbravejando
contra a esperança. Talvez porque não lhe avisaram do seu falecimento. A noite
nos trópicos não lhe tem sido veloz, e ele se arrasta pela escuridão ao lado do
passado, também insepulto, que insiste ser presente. O assassinato de índios,
de sem-terra e de seus advogados, pelo latifúndio, e a morte de homens
analfabetos e negros de vida curta não o sensibilizam mais. O poeta morreu! Um
clone seu passeia entre crônicas e colunas, sem querer saber de onde vem a
farinha com a qual são feitas coxinhas ou o óleo na qual são fritas.
Publicado originariamente no jornal O DIA, pag. 10.
Link: http://odia.ig.com.br/opiniao/2016-07-15/joao-batista-damasceno-a-morte-de-ferreira-gullar.html