quarta-feira, 22 de novembro de 2023

A César o que é de César

 

No próximo dia 30, a Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) promoverá, por meio do seu Fórum Permanente de Sociologia Jurídica, um debate sobre o Direito editado pelo estado brasileiro e pelo estado da Santa Sé, cuja sede é a Cidade-Estado do Vaticano. Em 2008, a República Federativa do Brasil, representada pelo seu então ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, celebrou tratado com a Santa Sé, então representada pelo secretário para Relações com os Estados, cardeal Dominique Mamberti. O Congresso Nacional ratificou o Tratado. Em 2010, por meio do Decreto 7107, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva promulgou o acordo firmado na Cidade do Vaticano.

A Santa Sé é um estado soberano; independente. Do ponto de vista legal, é distinta do Vaticano, ou mais precisamente do Estado da Cidade do Vaticano, que é a sua base territorial. Embora a base territorial da Santa Sé se limite ao Vaticano, seu Direito se aplica a todos os súditos de Sua Santidade, O Papa, espalhados pelo mundo. A Santa Sé é pessoa jurídica de direito público internacional e tem suas relações diplomáticas com quase todos os países do mundo. Assim como o Brasil tem a sua Constituição, a Santa Sé tem o Código de Direito Canônico, que estabelece os parâmetros para o exercício das autoridades por ela constituídas.

Assim como os brasileiros que têm dupla ou múltiplas cidadanias, aqueles que estejam vinculados à Igreja Romana estão submetidos ao Código Canônico. Os que não professam a mesma fé do Chefe da Igreja ou Soberano da Santa Sé não estão compelidos à obediência aos ditames de tal autoridade. O debate a ser realizado analisará o acordo ratificado e promulgado sob o ponto de vista laico, ou seja, sem consideração à eventual natureza espiritual, metafísica ou transcendente das normas ou recomendações da Igreja Romana.

Pelo acordo celebrado, o Brasil, com fundamento no direito de liberdade religiosa, reconhece à Igreja Católica o direito de desempenhar a sua missão apostólica, garantindo o exercício público de suas atividades, observado o ordenamento jurídico brasileiro. Tal cláusula não precisava constar, porque a Constituição brasileira dispõe que "é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias". Trata-se de um direito constitucional fundamental. O Brasil é um estado laico e a Constituição veda à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público. É o caso. O acordo não é aliança entre o estado brasileiro e uma religião. Mas um acordo entre dois estados soberanos.

O artigo que trata do reconhecimento pelo estado brasileiro do patrimônio histórico, artístico e cultural da Igreja Católica no Brasil, assim como os documentos custodiados nos seus arquivos e bibliotecas como parte relevante do patrimônio cultural brasileiro parece chover no molhado. Quem conhece Ouro Preto, em Minas Gerais, tenha a fé que tiver ou não tenha fé alguma, jamais negaria tal importância. Mas um parágrafo se mostra muito importante para todos os estudiosos da história do Brasil. A Santa Sé se compromete a facilitar o acesso a documentos, produzidos ao longo dos mais de 500 anos da nossa história, a todos os que queiram conhecer e estudá-los. Talvez a dificuldade venha a ser encontrada com alguns religiosos ou leigos que administram tais acervos, notadamente quando certos interesses não recomendarem a publicização.

Uma matéria polêmica pode ser o dispositivo que prevê o ensino religioso em escolas públicas. Embora de matrícula facultativa, constitui uma perigosa exceção à laicidade do estado. O tratado fala de pluralidade confessional e da "importância do ensino religioso em vista da formação integral da pessoa". Mas a educação integral, que é preparação para a vida, não se confunde com formação, que visa à preparação para determinado fim. É o que pensava o educador Anísio Teixeira. Além do mais, a fé, as crenças ou mesmo a religiosidade podem ter importância para a vida de muitas pessoas, mas não é indispensável a todos, dentre os quais os ateus e agnósticos. Na Alemanha nazista, um soldado disse a um ateu que ele não poderia ser um homem bom se não tinha religião. Ele respondeu que não entendia como o interlocutor podia ser tão mau sendo religioso. Não é a religiosidade o que determina comportamentos éticos. Quem crucificou Cristo foram os religiosos. Pilatos, representante do estado romano, não o absolveu. Mas se absteve da condenação. Foi Caifás, o Sumo Sacerdote, quem, rasgando as próprias vestes numa afetação dramática, incitou a condenação do inocente.

O acordo celebrado entre o Brasil e a Santa Sé tem 20 artigos e será analisado em debate público, transmitido por plataforma digital e aberto a questionamento de quem se interessar. O debate terá a importância de separar a esfera transcendental de uma das partes da esfera temporal. Afinal, deve-se dar a César o que é de César.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 18/11/2023, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/11/6743544-a-cesar-o-que-e-de-cesar.html


segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Mais uma GLO: mais do mesmo, mais do nada

A pretexto de combater o tráfico de drogas e de armas, o presidente da República decretou mais uma GLO, ou seja, emprego das Forças Armadas para Garantia da Lei e da Ordem. A medida foi decretada uma semana após o presidente descartar a medida.

O anúncio da GLO foi feito na última quarta-feira (1º) sob o fundamento de tentar enfrentar a crise da segurança pública no Rio de Janeiro. Nosso estado sempre foi cobaia dessas medidas pirotécnicas e midiáticas, sem que qualquer solução fosse dada para o problema da segurança e sem que a questão fosse analisada a partir de seus fundamentos.

A primeira vez que as Forças Armadas foram empregadas no Rio de Janeiro desta forma foi em 1992, por ocasião da conferência sobre o clima global, denominada Rio-Eco 92. De lá para cá tivemos muitas outras GLOs e até intervenção federal no setor de segurança do estado. É preciso relembrar que o atentado à vereadora Marielle Franco e ao motorista Anderson ocorreu a menos de um mês da intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro, sem que até hoje se tenha a solução do caso. E nem teremos. A intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro foi comandada pelo general Walter Braga Netto, e o período ficou marcado pelo recorde na letalidade policial. Além das mortes, seu único efeito foi dar protagonismo os herdeiros dos porões da ditadura empresarial-militar e reforçar o papel daqueles que eram chamados de "Linha dura" durante a ditadura.

A atuação das Forças Armadas se limitará a portos e aeroportos do estado do Rio e de São Paulo. Serão empregados militares. Nesses locais serão empregados militares da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Mas assim como não se combate o mosquito da dengue com tiro de canhão, igualmente o crime organizado não se combate com emprego de militares ou armamentos pesados. O crime tem dimensão econômica e isto vem sendo desconsiderado. Auditorias sobre a origem dos recursos dos criminosos seriam mais eficazes que os espetáculos que se promovem para aquietar a população e dar falsa sensação de segurança.

Os militares atuarão nos portos do Rio de Janeiro e no de Itaguaí, além do aeroporto do Galeão. Em São Paulo, atuarão no porto de Santos e no aeroporto de Guarulhos.

Depois do desvio de armamento pesado num quartel do Exército e dos 39 kg de cocaína num avião militar da comitiva presidencial a caminho da Espanha, as Forças Armadas não têm condições de se arvorarem combater tais práticas no seio da sociedade. Se tais fatos ocorrem dentro dos quartéis onde o dia a dia é mapeado, qual será a eficácia no seio da sociedade com suas múltiplas complexidades e relações?

As GLOs são o resquício da ditadura empresarial-militar. Foi o lobby dos militares que emplacou na Constituição a possibilidade de intervenção na ordem interna. Saímos da ditadura empresarial-militar, mas muito do que ele produziu continua eficaz. Não fizemos uma justiça de transição. Os militares conseguiram fazer constar na Constituição que "destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem". Isto é uma anomalia. Não é o braço armado do Estado o que garante o funcionamento dos poderes de uma república democrática. Ao contrário, são os poderes constituídos que garantem o funcionamento, sob controle, das Forças Armadas. Da mesma forma é uma anomalia o emprego das Forças Armadas para garantia da lei e da ordem. Nenhuma democracia do mundo admite que suas Forças Armadas possam apontar suas armas para seus nacionais.

O plano é mais do mesmo: As Forças Armadas atuarão com a PF em portos e aeroportos; a Marinha ampliará a atuação, junto à Polícia Federal, na Baía de Guanabara, Baía de Sepetiba, acessos marítimos ao Porto de Santos e Lago de Itaipu; haverá aumento do efetivo e de equipamentos da PF, PRF e Força Nacional em São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Paraná; a PF ampliará as ações de inteligência e as operações de prisões e apreensões de bens pertencentes a criminosos, especialmente no Rio de Janeiro; haverá atuação em faixa de fronteira pelo Exército e Aeronáutica em articulação com a PF e PRF com ênfase no Paraná, em Mato Grosso e em Mato Grosso do Sul; será constituído um comitê de acompanhamento das Forças Armadas e da PF; o Ministério da Justiça e Ministério da Defesa apresentarão em 90 dias à Casa Civil plano de modernização tecnológica para a atuação da PF, PRF, Polícia Penal Federal, Exército, Marinha e Aeronáutica. Ou seja, mais uma vez se opta pelo modelo repressivo, descuidando que crime é um fenômeno que existe em toda sociedade e que suas práticas somente cessam quando alteradas as estruturas sobre as quais se assentam.

Não adianta pretender falar de segurança pública mantendo-se a estrutura de uma sociedade excludente e marcada pela desigualdade, onde seis pessoas concentram a mesma riqueza que noventa por cento da população. Mantendo-se a mesma estrutura, o máximo que poderemos falar será em segurança dos negócios, negócios lucrativos da segurança e segurança para poucos, em prejuízo da vida de muitos.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 04/11/2023, pag. 11. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/11/6735627-mais-uma-glo-mais-do-mesmo-mais-do-nada.htmlPublicado originariamente no jornal O DIA, em 04/11/2023, pag. 11. 

Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/11/6735627-mais-uma-glo-mais-do-mesmo-mais-do-nada.html