No próximo dia 30, a Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro
(EMERJ) promoverá, por meio do seu Fórum Permanente de Sociologia Jurídica, um
debate sobre o Direito editado pelo estado brasileiro e pelo estado da Santa
Sé, cuja sede é a Cidade-Estado do Vaticano. Em 2008, a República Federativa do
Brasil, representada pelo seu então ministro das Relações Exteriores, Celso
Amorim, celebrou tratado com a Santa Sé, então representada pelo secretário
para Relações com os Estados, cardeal Dominique Mamberti. O Congresso Nacional
ratificou o Tratado. Em 2010, por meio do Decreto 7107, o presidente Luiz
Inácio Lula da Silva promulgou o acordo firmado na Cidade do Vaticano.
A Santa Sé é um estado soberano; independente. Do ponto de vista legal,
é distinta do Vaticano, ou mais precisamente do Estado da Cidade do Vaticano,
que é a sua base territorial. Embora a base territorial da Santa Sé se limite
ao Vaticano, seu Direito se aplica a todos os súditos de Sua Santidade, O Papa,
espalhados pelo mundo. A Santa Sé é pessoa jurídica de direito público
internacional e tem suas relações diplomáticas com quase todos os países do
mundo. Assim como o Brasil tem a sua Constituição, a Santa Sé tem o Código de
Direito Canônico, que estabelece os parâmetros para o exercício das autoridades
por ela constituídas.
Assim como os brasileiros que têm dupla ou múltiplas cidadanias, aqueles
que estejam vinculados à Igreja Romana estão submetidos ao Código Canônico. Os
que não professam a mesma fé do Chefe da Igreja ou Soberano da Santa Sé não
estão compelidos à obediência aos ditames de tal autoridade. O debate a ser
realizado analisará o acordo ratificado e promulgado sob o ponto de vista
laico, ou seja, sem consideração à eventual natureza espiritual, metafísica ou
transcendente das normas ou recomendações da Igreja Romana.
Pelo acordo celebrado, o Brasil, com fundamento no direito de liberdade
religiosa, reconhece à Igreja Católica o direito de desempenhar a sua missão
apostólica, garantindo o exercício público de suas atividades, observado o
ordenamento jurídico brasileiro. Tal cláusula não precisava constar, porque a
Constituição brasileira dispõe que "é inviolável a liberdade de
consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a
suas liturgias". Trata-se de um direito constitucional fundamental. O
Brasil é um estado laico e a Constituição veda à União, aos estados, ao
Distrito Federal e aos municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas,
subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus
representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei,
a colaboração de interesse público. É o caso. O acordo não é aliança entre o estado
brasileiro e uma religião. Mas um acordo entre dois estados soberanos.
O artigo que trata do reconhecimento pelo estado brasileiro do
patrimônio histórico, artístico e cultural da Igreja Católica no Brasil, assim
como os documentos custodiados nos seus arquivos e bibliotecas como parte
relevante do patrimônio cultural brasileiro parece chover no molhado. Quem
conhece Ouro Preto, em Minas Gerais, tenha a fé que tiver ou não tenha fé
alguma, jamais negaria tal importância. Mas um parágrafo se mostra muito importante
para todos os estudiosos da história do Brasil. A Santa Sé se compromete a
facilitar o acesso a documentos, produzidos ao longo dos mais de 500 anos da
nossa história, a todos os que queiram conhecer e estudá-los. Talvez a
dificuldade venha a ser encontrada com alguns religiosos ou leigos que
administram tais acervos, notadamente quando certos interesses não recomendarem
a publicização.
Uma matéria polêmica pode ser o dispositivo que prevê o ensino religioso
em escolas públicas. Embora de matrícula facultativa, constitui uma perigosa
exceção à laicidade do estado. O tratado fala de pluralidade confessional e da
"importância do ensino religioso em vista da formação integral da
pessoa". Mas a educação integral, que é preparação para a vida, não se confunde
com formação, que visa à preparação para determinado fim. É o que pensava o
educador Anísio Teixeira. Além do mais, a fé, as crenças ou mesmo a
religiosidade podem ter importância para a vida de muitas pessoas, mas não é
indispensável a todos, dentre os quais os ateus e agnósticos. Na Alemanha
nazista, um soldado disse a um ateu que ele não poderia ser um homem bom se não
tinha religião. Ele respondeu que não entendia como o interlocutor podia ser
tão mau sendo religioso. Não é a religiosidade o que determina comportamentos
éticos. Quem crucificou Cristo foram os religiosos. Pilatos, representante do
estado romano, não o absolveu. Mas se absteve da condenação. Foi Caifás, o Sumo
Sacerdote, quem, rasgando as próprias vestes numa afetação dramática, incitou a
condenação do inocente.
O acordo celebrado entre o Brasil e a Santa Sé tem 20 artigos e será
analisado em debate público, transmitido por plataforma digital e aberto a
questionamento de quem se interessar. O debate terá a importância de separar a
esfera transcendental de uma das partes da esfera temporal. Afinal, deve-se dar
a César o que é de César.
Publicado originariamente no jornal O
DIA, em 18/11/2023, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/11/6743544-a-cesar-o-que-e-de-cesar.html