sábado, 27 de janeiro de 2024

CPIs, lawfare e golpe de estado

 

O retorno do presidente Getúlio Vargas ao poder, mediante eleição em 1950, em contexto no qual a sociedade brasileira se agitava na campanha O PETRÓLEO É NOSSO, do qual resultou a criação da Petrobras, alvoroçou os setores entreguistas, que gestaram todo tipo de aparato jurídico para inviabilizar o mandato daquele presidente legitimamente eleito. Num Brasil recentemente iniciado na industrialização, os setores médios e urbanos da sociedade, por alfabetizados, se consideravam intelectualizados, desprezavam a cultura popular e criminalizavam os anseios sociais. Seu ícone era o Brigadeiro Eduardo Gomes, que fez campanha com o slogan "vote no brigadeiro, que é bonito e é solteiro" e que dissera – na campanha presidencial – não querer votos de marmiteiros. Tais grupos sociais, agrupados sobretudo na UDN, pela qual concorreu o brigadeiro e foi derrotado em 1945 e 1950, eram incapazes de chegar ao poder pelo voto. Daí que desde o retorno de Getúlio Vargas ao poder tentavam golpe. Duas leis editadas neste período prenunciavam a crise que levou aquele presidente ao suicídio em 1954: a lei dos crimes de responsabilidade, 1079 de 1950, e a lei das CPI’s, 1579 de 1952. Estas leis foram editadas visando ao constrangimento e ao impeachment do presidente Getúlio Vargas.

Mesmo tendo montando um aparato legal para perseguir os adversários políticos e violentar a democracia, os setores entreguistas - dentre os quais estavam todos os membros da Sociedade dos Amigos da América (EUA) fundada pelo general Manuel Rabelo - nem sempre o utilizavam para seus objetivos; por vezes recorriam às tentativas de golpe militar. Várias foram tais tentativas até que se consumou o golpe empresarial-militar em 1964, que subordinou os interesses nacionais aos interesses dos EUA, no contexto
da Guerra Fria. Além da tentativa de golpe que levou Vargas ao suicídio em 1954, houve tentativa de impedimento da posse de Juscelino Kubitscheck, tentativas de golpe durante seu mandato, impedimento da posse de João Goulart quando da renúncia do presidente Jânio Quadros em 1961, além de outras tentativas de menor relevo.

O desrespeito ao Estado de Direito e às instituições, no Brasil, manifesta-se por meio de golpes brutais ou por meio de acusações infundadas desvirtuando o funcionamento do sistema de Justiça. O que hoje designamos como lawfare, uso do aparato judicial como instrumento de guerra a pessoa declarada inimiga, sempre contou com as leis editadas para promover o impedimento do presidente Getúlio Vargas. Se o seu suicídio em 1954 adiou o golpe em 10 anos, tal aparato legal foi mantido em vigência para acossar os governos que acenassem com alguma medida em prol dos setores populares ou se manifestassem em prol da soberania nacional. Neste momento, tais leis são utilizadas como ameaças aos agentes públicos comprometidos com a democracia e com o Estado de Direito, dentre os quais ministros do STF, bem como o padre que se solidariza com a dor da população de rua em São Paulo.

As CPIs, instrumentos investigatórios do Poder Legislativo, se traduzem em meio legítimo de controle da atividade do poder público e daqueles que com ele estabeleçam relação recebendo valores oriundos dos cofres públicos. Mas o requerimento de instalação de uma CPI em São Paulo demonstrou que nem sempre os objetivos são republicanos. Um vereador que colhia as assinaturas para a CPI da população de rua declarou em relação ao Padre Júlio Lancelotti: "Vou arrastar ele para cá em coercitiva, nem que seja algemado". Não se tratava de instaurar investigação para desvelar a situação da população de rua ou uso de recursos públicos em seu benefício. Mas meio abusivo de causar constrangimento a pessoa que não
exerce função pública e que não recebe dinheiro público para suas atividades.

Uma CPI não pode ser instaurada para apurar ocorrências privadas. Em se tratando de mecanismo de controle dos atos do poder público, pelo Poder Legislativo, somente pode ser instaurada visando à atuação dos agentes públicos e seus órgãos, de particulares a quem o poder público tenha delegado atribuições ou de particulares em colaboração com o poder público que tenham recebido recursos estatais. Um sacerdote, no exercício de suas funções, não é agente público, não é concessionário, permissionário ou autorizatário de função pública e, se não recebe dinheiro público para suas atividades assistenciais, não está sujeito à fiscalização pelo poder público.

Os regimes repressivos se louvam de promover a segurança e a paz. Mas o que promovem é a paz dos cemitérios ou das cidades prestes a serem invadidas durante as guerras. Marcelo Yuka disse que "paz sem voz, não é paz; é medo". E Gilberto Gil e Chico Buarque compuseram nos anos 70, no período escancarado da ditadura empresarial-militar, a música Cálice, dizendo: "Esse silêncio todo me atordoa; atordoado eu permaneço atento na arquibancada pra a qualquer momento ver emergir o monstro da lagoa". O monstro que emergiu do lodaçal e dos porões ameaça a democracia, as instituições e os agentes públicos comprometidos com o Estado de Direito e com os valores republicanos. Até padre reconhecido por seu compromisso com os excluídos pode ser destinatário de lawfare.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 27/01/2024, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/01/6782329-cpis-lawfare-e-golpe-de-estado.html


Autoritarismo patrimonialista-predatório e anarcocapitalismo

 

Nascemos indivíduos, seres singularizados, e pelo processo de socialização nos tornamos pessoas. Neste processo somos apresentados à linguagem, em suas diversas modalidades. Conhecemos as coisas com os nomes antes lhes atribuídos. O problema reside na necessidade de nominar, definir ou conceituar fenômenos novos. Aos fenômenos políticos se agregam as emoções e as expressões qualificadoras ou desqualificadoras. Eis a questão: como qualificar adequadamente o período no qual o Brasil mergulhou recentemente e que, ao lado do autoritarismo e desprezo à institucionalidade, cultuou a morte, desdenhou de um vírus letal, destruiu direitos sociais, agrediu as instituições judiciárias, ampliou a miséria e ameaçou o meio ambiente?

Um ministro do STF, numa reunião com estudantes, se referindo ao fenômeno autoritário, e não ao personagem, disse que a sociedade derrotou o bolsonarismo. O fenômeno reacionário no qual o Brasil andou mergulhado não pode ser qualificado pelo nome do personagem que foi a sua expressão. O fenômeno é maior que aquele que apenas foi colocado como marionete para expressar o que emergia das profundezas da nossa organização social e que reflete o que está acontecendo pelo mundo.

Há quem qualifique o fenômeno como fascismo. Mas tal vocábulo é pouco adequado para o que vivenciamos. Embora o fascismo tenha assumido feições diferentes nos distintos lugares onde aflorou, o que o Brasil viveu nos últimos anos não se ajusta às características daquele sistema político. O fascismo foi um modelo de organização social e política triunfante na Itália com Benito Mussolini em 1922. Caracterizava-se por uma ditadura baseada num partido único, concepção totalitária da sociedade, vedação do pluralismo político, organização da sociedade em corporações e forte viés nacionalista. O fascismo se opunha ao liberalismo e ao individualismo. Na Alemanha, o fascismo, com características próprias, foi qualificado como nazismo. Por injunções históricas ambos foram militaristas.

A direção do Estado brasileiro de 2018 a 2022 não foi compatível com as características do fascismo. Não pretendia organizar a sociedade. Ao contrário, parecia pretender a desorganização social, pois mais lucrativa aos garimpos, milícias, madeireiros e capital financeiro. Embora autoritária, não tinha uma doutrina que pudesse se impor como pensamento único. Não tinha bases organizacionais, tal como partido, associações ou sindicatos. Portanto, não era corporativista. Ainda que enrolados em bandeiras do Brasil e cantando o hino nacional não eram nacionalistas, pois na prática submetia a política brasileira à política dos EUA a ponto do presidente e seus filhos ostentarem vestes com as cores daquele país e baterem continência para a bandeira estrangeira. Diversamente do fascismo, que se opunha ao individualismo e liberalismo, e impunha uma visão única ou holística, o que vivenciamos foi a exaltação do individualismo predador das riquezas nacionais e socialmente produzidas, bem como destruidor dos direitos sociais.

Alguns elementos dos discursos fascistas e nazistas podem ser encontrados nas falas de alguns dos personagens que integraram o círculo do poder. Mas pouco tinham em comum com os objetivos daqueles regimes. Diversamente do que aqueles regimes almejaram, no Brasil tivemos apenas pretensões de destruir instituições, direitos e práticas sociais elevadas a valores constitucionais a partir de 1988. Peter Cohen, diretor do filme Arquitetura da Destruição, filho de um judeu alemão que fugiu de Berlim em 1938, para escapar da perseguição nazista, em seu documentário descreve os objetivos do regime que perseguiu seu pai e seu povo. Para fazer o filme, obra-prima do cinema mundial, ele estudou o nazismo durante sete anos. O documentário se inicia a partir de uma tese: o sonho nazista era criar, por meio da purificação étnica, um mundo mais harmonioso e belo. Esse desejo alemão vinha da concepção de que o mundo estava à beira do abismo e que era preciso destruir tudo o que o que fosse feio ou inadequado, inclusive pessoas. Os nazistas tomaram para si a responsabilidade por erradicar qualquer ameaça às suas pretensões. Era o discurso: "Purificada e preservada da decadência, uma nova Alemanha surgiria mais forte e muito mais bonita". O filme começa com uma frase: "O nazismo tinha o objetivo de embelezar o mundo!". Peter Cohen choca com suas primeiras declarações na abertura do filme, mas depois as explica. Ele começa falando sobre o objetivo dos nazistas e conclui demonstrando o quanto era intolerante e destrutivo com tudo e com todos que não se moldassem ao ideal daquele regime totalitário, razão pela qual se tornavam destinatários da eliminação, fosse arte, livros ou pessoas.

No Brasil não tivemos isto. Não podemos classificar como fascismo o que vivenciamos. Embora uma força destruidora tenha se apossado de algumas instituições, capaz de exterminar, aniquilar e destruir, não tinham os mesmos objetivos dos fascistas. O que emergiu das profundezas obscuras da sociedade brasileira foi o autoritarismo patrimonialista-predatório. Foi o anarcocapitalismo, desgarrado de qualquer regulamentação estatal, somente capaz de ampliar a riqueza de poucos e levar a maioria à miséria.



quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

O conflito Venezuela-Guiana por Essequibo e o imperialismo

 

Na divisão do mundo entre as potências no século XIX, a França inventou o termo "América Latina", pretendendo estender sua influência sobre os povos de língua latina. Os EUA, em 1823, já haviam proclamado o lema de James Monroe "América para os Americanos". Em 1814, o Reino Unido "comprou", da Holanda, a Guiana, que passou a ser inglesa. Mas o pacto não definia a fronteira oeste do território. Os britânicos designaram, em 1840, o explorador Robert Schomburgk para determinar o limite e este definiu a fronteira da Guiana Inglesa, incorporando território que não era possuído pelos "vendedores". A pilhagem incorporou quase 80 mil quilômetros quadrados da Venezuela, área equivalente a duas vezes à do Estado do Rio de Janeiro. A Venezuela, na época de sua independência, estabelecera que sua fronteira se estendia até o rio Essequibo. Reclamando dois terços da colônia britânica, em 1841, o governo venezuelano denunciou a incursão britânica e solicitou ajuda aos EUA. Em 1850, a Inglaterra e a Venezuela ajustaram que a área não seria ocupada até arbitragem. O presidente Cleveland apoiou a Venezuela. Em 1895, o Congresso dos Estados Unidos propôs a criação de uma comissão para estudar os limites territoriais. O Reino Unido se ocupava de outros conflitos pelo mundo, especialmente na África do Sul, e aceitou a mediação dos EUA. Em 1897, EUA, representando a Venezuela, e o Reino Unido firmaram um tratado em Washington para submeter a controvérsia à arbitragem internacional. Um árbitro russo foi incluído na comissão. O resultado saiu em 1899 a favor do Reino Unido, estabelecendo a "Linha Schomburgk" como fronteira. A decisão é conhecida hoje como "Laudo Arbitral de Paris".

A mediação mostrou a força dos Estados Unidos na América Latina, a supremacia da Doutrina Monroe e foi um ponto de ajuste nas relações entre Inglaterra e EUA sobre a zona de influência que caberia àquele. Os EUA cuidaram dos próprios interesses, desprezando completamente os interesses dos venezuelanos.

Venezuela, embora insatisfeita, não contestou o resultado. Mas na década de 1950 do século XX, ficou provado o conluio entre os delegados britânicos e o juiz russo no tribunal em Paris, cujo voto foi decisivo contra a Venezuela. Assim, em 1962, ante as revelações trazidas à luz, a Venezuela denunciou o acordo celebrado e declarou nula e sem efeito a decisão arbitral e voltou a reivindicar o território de Essequibo perante a Organização das Nações Unidas (ONU).

Em 1966, pelo Acordo de Genebra, foi firmado um Tratado entre Reino Unido e Venezuela pelo qual ficou reconhecida a legitimidade da reivindicação venezuelana sobre a Guiana Essequiba. A Guiana Inglesa, hoje Guiana, fez parte do Acordo e se tornou independente meses depois, ainda em 1966. Tal acordo está registrado na Secretaria Geral da ONU. Não se discutiu a autoridade do governo da Guiana sobre a área, mas se estabeleceu salva-guarda dos direitos de soberania venezuelana sobre a zona. Pelo Acordo de Genebra, a Venezuela reconhece como nulo o Laudo Arbitral de Paris de 1899 e a Guiana reconheceu a reivindicação e a inconformidade venezuelana, sem que tal reconhecimento significasse imediata invalidade daquela decisão.

No Acordo, estabeleceu-se a criação de uma Comissão Mista de Limites que, num prazo de quatro anos, decidiria o problema limítrofe. Mas, vencido este prazo, foi subscrito em 1970 o Protocolo de Porto Espanha, entre Guiana e Venezuela, pelo qual se "congelou", por 12 anos, parte do Acordo de Genebra. Em 1982, a Venezuela decidiu retomar a validade das deliberações do Acordo de Genebra.

A Guiana e os EUA ignoram o Acordo de Genebra e a gigante de energia estadunidense ExxonMobil iniciou a exploração de petróleo na área, que deveria permanecer à espera da solução do conflito. Mas os interesses petrolíferos dos EUA são contrários à soberania da Venezuela.

O plebiscito realizado na Venezuela é apenas mobilização interna. Não tem efeito externo. O governo venezuelano não ocupará militarmente o Essequibo, pois sabe do tratado de defesa da Guiana com o Reino Unido, além da base militar estadunidense, a 1ª Brigada de Assistência e Segurança / SFAB, que já se reuniu com a Força de Defesa da Guiana (FDG) em novembro passado. A reunião foi um recado dos EUA para a Venezuela. Além disso, os EUA têm as bases de Aruba e do Panamá. O desajuste diplomático que já se arrasta por dois séculos se estenderá, mas não há risco de conflito militar. A Constituição brasileira dispõe que um dos princípios que regem a República nas suas relações internacionais é a solução pacífica dos conflitos. O Brasil não deve se ocupar militarmente da questão, embora a direita militar pretenda sair do bueiro, assumir protagonismo, reassumir papel político, ampliar o orçamento para compras militares, mostrar seu "valor" e voltar ao poder, com golpe ou manipulação de "patriotas inadvertidos". A questão do Essequibo será resolvida com o tempo. Mas não agora. Enquanto a ExxonMobil não esgotar a indevida exploração do petróleo da região, os EUA não retirarão o apoio da Guiana. E Maduro não repetirá o que fez Saddam Hussein no Kuwait.

Publicado orginariamente no jornal O DIA, pag. 12, em 30/12/2023. Link https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/12/6766259-o-conflito-venezuela-guiana-por-essequibo-e-o-imperialismo.html


Água e esgotamento sanitário: privatização e cobrança pela disponibilidade

 

Desde quando em 1997, no Governo FHC, foi editada a lei 9433, o tratamento jurídico dado às águas brasileiras sofreu uma grande mudança, pois deixaram de ser consideradas bem natural e passaram a ser bem econômico. Antes de tal mudança, os usuários dos serviços públicos de água pagavam pelo serviço de transporte de água, por meio de encanamentos ou outros meios, da fonte até as residências ou unidades consumidoras. A partir de 1997, cobra-se pelo transporte e também pela água, uma vez que passou a ser considerada mercadoria. A atividade se tornou mais lucrativa e passou a ser objeto do interesse do capital demandante da privatização do serviço. A privatização do serviço de saneamento básico se tornou um tema discutido e polêmico.

A falta de investimento público e cuidado com a saúde dos brasileiros nas últimas décadas levou a um cenário no qual cerca de 35 milhões de brasileiros, ou 17% da população, não tenham água tratada em suas casas. Este foi o resultado de um levantamento feito pelo Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), que, além disto, mostrou que apenas 46% do esgoto no país passa por tratamento. A falta de água tratada e o lançamento do esgoto sem tratamento no meio ambiente é um grave problema para a saúde pública.

Após o golpe empresarial-militar de 1964, as empresas instituídas pelo poder público prestadoras do serviço de água e esgotamento sanitário foram estruturadas pelo PLANASA (Plano Nacional de Saneamento) com a
concepção de que deveriam ser autossuficientes financeiramente. Com tal concepção, o serviço de água e esgotamento sanitário passou a ser financiado pela tarifa cobrada do consumidor, rompendo-se a ideia do
serviço de saneamento como um investimento público necessário para melhorar a saúde pública. Algumas operadoras dos serviços públicos de saneamento no Brasil são muito lucrativas e cobiçadas por investidores nacionais e estrangeiros. O avanço da concepção de prestação do serviço mediante pagamento desconsiderou que o preço cobrado pela água tratada pode levar os mais pobres e os bairros da periferia a conviverem com a inexistência do serviço, com o retardamento na prestação ou mesmo com a precariedade quando prestado. Se o serviço é prestado sob a ótica do lucro, quem não pode pagar por ele não o terá adequadamente.

Mas, enquanto prestado pelo poder público, mesmo sob a ótica financista, o serviço expandiu para quem podia pagar. Recente estudo da ONU demonstra que o Brasil foi um dos países que mais rapidamente avançou na sua prestação. Um dos problemas é o fato de que o serviço não contemplou as localidades que, sob o ponto de vista financeiro, eram considerados "mau negócio".

O alarde que hoje se faz para a privatização dos serviços de água e esgotamento sanitário toma por base as localidades onde o serviço não é adequadamente prestado. O discurso que se faz em algumas unidades da federação é de que a privatização trará novos investimentos e implicará na universalização dos serviços, ou seja, prestação a todos indistintamente. Igual fundamento foi utilizado para a privatização dos serviços de telefonia fixa e energia elétrica, o que tem gerado grandes dissabores para os usuários e abarrotado os órgãos do poder judiciário com ações dos consumidores. Mas onde o serviço não é prestado pelo poder público não o será pelas empresas privadas, porque não é lucrativo.

Além da precariedade na prestação, a cobrança já está causando problemas em algumas unidades da federação onde o serviço foi privatizado. A existência de tubulação, sem que nela houvesse água, implicou a suspensão da cobrança pelas empresas quando sob controle estatal. Mas uma vez privatizadas, as novas empresas se dispõem a cobrar, ainda quando não tenham regularizado o serviço de abastecimento. E mais: desconsiderando que a tarifa que se exige pela prestação do serviço tem natureza de preço, somente podendo ser exigido quando o produto é entregue, há empresas com a pretensão de cobrança de valores retroativos há anos, sob o fundamento de que, embora o consumidor não tivesse utilizado, o serviço estava disponibilizado.

Preço ou tarifa é diferente de taxa. Preço é o que se paga pela efetiva aquisição de produto ou serviço. Somente pode ser exigido de quem contratar e utilizar. As taxas têm natureza de tributo. Somente as taxas podem ser cobradas quando o serviço é disponibilizado e o contribuinte não faça utilização. As taxas são cobradas pela utilização efetiva ou potencial, quando utilizado pelo contribuinte ou quando meramente posto à sua disposição. Nos estados onde as empresas privatizadas estão exigindo que consumidores assumam débitos passados por serviços não utilizados, sob o pretexto de que o serviço estava tão somente disponibilizado, ações de repetição do indébito podem ser propostas na Justiça, ou seja, os consumidores poderão cobrar da empresa o que foi indevidamente pago. Os consumidores podem estar sendo enganados quando lhes dizem ser lícita a cobrança retroativa por serviço disponibilizado e não utilizado. Todo fornecedor tem o dever de prestar informação adequada ao consumidor e se o engana incide em responsabilização civil.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, pag. 12, em 16/12/2023. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/12/6759303-agua-e-esgotamento-sanitario-privatizacao-e-cobranca-pela-disponibilidade.html