O retorno do
presidente Getúlio Vargas ao poder, mediante eleição em 1950, em contexto
no qual a sociedade brasileira se agitava na campanha O PETRÓLEO É NOSSO,
do qual resultou a criação da Petrobras, alvoroçou os setores
entreguistas, que gestaram todo tipo de aparato jurídico para inviabilizar
o mandato daquele presidente legitimamente eleito. Num Brasil recentemente
iniciado na industrialização, os setores médios e urbanos da sociedade,
por alfabetizados, se consideravam intelectualizados, desprezavam a
cultura popular e criminalizavam os anseios sociais. Seu ícone era o
Brigadeiro Eduardo Gomes, que fez campanha com o slogan "vote no
brigadeiro, que é bonito e é solteiro" e que dissera – na
campanha presidencial – não querer votos de marmiteiros. Tais grupos
sociais, agrupados sobretudo na UDN, pela qual concorreu o brigadeiro e
foi derrotado em 1945 e 1950, eram incapazes de chegar ao poder pelo
voto. Daí que desde o retorno de Getúlio Vargas ao poder tentavam golpe.
Duas leis editadas neste período prenunciavam a crise que levou
aquele presidente ao suicídio em 1954: a lei dos crimes de
responsabilidade, 1079 de 1950, e a lei das CPI’s, 1579 de 1952. Estas
leis foram editadas visando ao constrangimento e ao impeachment do
presidente Getúlio Vargas.
Mesmo tendo
montando um aparato legal para perseguir os adversários políticos e
violentar a democracia, os setores entreguistas - dentre os quais estavam
todos os membros da Sociedade dos Amigos da América (EUA) fundada pelo
general Manuel Rabelo - nem sempre o utilizavam para seus objetivos; por
vezes recorriam às tentativas de golpe militar. Várias foram tais
tentativas até que se consumou o golpe empresarial-militar em 1964, que
subordinou os interesses nacionais aos interesses dos EUA, no contexto
da Guerra Fria. Além da tentativa de golpe que levou Vargas ao suicídio em
1954, houve tentativa de impedimento da posse de Juscelino Kubitscheck,
tentativas de golpe durante seu mandato, impedimento da posse de João Goulart
quando da renúncia do presidente Jânio Quadros em 1961, além de outras
tentativas de menor relevo.
O desrespeito
ao Estado de Direito e às instituições, no Brasil, manifesta-se por meio
de golpes brutais ou por meio de acusações infundadas desvirtuando o
funcionamento do sistema de Justiça. O que hoje designamos como lawfare, uso do
aparato judicial como instrumento de guerra a pessoa declarada inimiga,
sempre contou com as leis editadas para promover o impedimento do
presidente Getúlio Vargas. Se o seu suicídio em 1954 adiou o golpe em 10
anos, tal aparato legal foi mantido em vigência para acossar os governos
que acenassem com alguma medida em prol dos setores populares ou se
manifestassem em prol da soberania nacional. Neste momento, tais leis são
utilizadas como ameaças aos agentes públicos comprometidos com a
democracia e com o Estado de Direito, dentre os quais ministros do STF,
bem como o padre que se solidariza com a dor da população de rua em São
Paulo.
As CPIs,
instrumentos investigatórios do Poder Legislativo, se traduzem em meio
legítimo de controle da atividade do poder público e daqueles que com ele
estabeleçam relação recebendo valores oriundos dos cofres públicos. Mas o
requerimento de instalação de uma CPI em São Paulo demonstrou que nem
sempre os objetivos são republicanos. Um vereador que colhia as
assinaturas para a CPI da população de rua declarou em relação ao Padre
Júlio Lancelotti: "Vou arrastar ele para cá em coercitiva, nem que
seja algemado". Não se tratava de instaurar investigação para desvelar
a situação da população de rua ou uso de recursos públicos em
seu benefício. Mas meio abusivo de causar constrangimento a pessoa que não
exerce função pública e que não recebe dinheiro público para
suas atividades.
Uma CPI não
pode ser instaurada para apurar ocorrências privadas. Em se tratando de
mecanismo de controle dos atos do poder público, pelo Poder Legislativo,
somente pode ser instaurada visando à atuação dos agentes públicos e seus
órgãos, de particulares a quem o poder público tenha delegado atribuições
ou de particulares em colaboração com o poder público que tenham recebido
recursos estatais. Um sacerdote, no exercício de suas funções, não é
agente público, não é concessionário, permissionário ou autorizatário de
função pública e, se não recebe dinheiro público para suas atividades
assistenciais, não está sujeito à fiscalização pelo poder público.
Os regimes
repressivos se louvam de promover a segurança e a paz. Mas o que promovem
é a paz dos cemitérios ou das cidades prestes a serem invadidas durante as
guerras. Marcelo Yuka disse que "paz sem voz, não é paz; é
medo". E Gilberto Gil e Chico Buarque compuseram nos anos 70,
no período escancarado da ditadura empresarial-militar, a música
Cálice, dizendo: "Esse silêncio todo me atordoa; atordoado eu
permaneço atento na arquibancada pra a qualquer momento ver emergir o
monstro da lagoa". O monstro que emergiu do lodaçal e dos porões
ameaça a democracia, as instituições e os agentes públicos comprometidos
com o Estado de Direito e com os valores republicanos. Até padre reconhecido
por seu compromisso com os excluídos pode ser destinatário de lawfare.
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 27/01/2024, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/01/6782329-cpis-lawfare-e-golpe-de-estado.html