MANIFESTAÇÃO NA ALERJ EM AUDIÊNCIA
PÚBLICA DA CPI QUE APURA MORTE E INCAPACITAÇÃO DE POLICIAIS, realizada no dia
09/05/2016
João Batista Damasceno*
Exmo. Sr. Deputado Paulo Ramos,
autor do convite a que tenho a honra de atender,
Exma. Sra. Deputada Martha Rocha,
Exmo. Sr. Deputado Zaqueu Teixeira,
Exmo. Sr. Deputado Wagner Montes,
Exma. Sra. Professora Maria
Cecília, na pessoa de quem saúdo todas as autoridades e demais presentes,
Em boa hora esta casa de leis
instaura uma Comissão Parlamentar de Inquérito, CPI, e designa esta audiência
pública para apurar as causas do grande número de mortes e incapacitações de
profissionais de segurança pública no Estado do Rio de Janeiro, as
circunstâncias e consequências para os familiares e para a população.
Policiais são
trabalhadores que merecem respeito e as condições de trabalho que os vitimam
atentam contra a dignidade da pessoa humana, fundamento da República.
O estudo da escalada da violência
no nosso Estado demonstra que periodicamente se tem exponenciado. No final dos
anos 50 foi instituído neste Estado, quando ainda era Distrito Federal, um
modelo de atuação estatal que deu o ponta pé inicial para esta escalada de
violência contra policiais e contra a sociedade. Refiro-me ao grupo de homens
sob comando do General Riograndino Kruel, para atuação sob parâmetros
paraestatais. Posteriormente, no âmbito do Estado da Guanabara, outro grupo de
homens, intitulados "Homens de Ouro da Polícia" subiram ainda mais o
patamar da violência. A noite que caiu sobre o país em 13 de dezembro de 1968, com
a decretação do AI-5, possibilitou que a partir de 1969 o Estado atuasse abertamente
fora dos parâmetros legais. A redemocratização não desmontou um tipo de
política estatal que promove a violência e sua escalada e o comando da polícia
por um coronel do Exército quando da Bomba do RioCentro é emblemático para
entendermos o que fazia o Estado naquele tempo.
A tentativa de construção de uma polícia cidadã que matasse menos e
menos morresse foi obstaculizada no período de redemocratização. Em 1986 foi
eleito governador do Estado do Rio o sociólogo Moreira Franco, que prometeu
acabar com a violência em 6 (seis) meses. O que se viu, a partir de sua posse
em 15 de março de 1987, foi o aumento da violência estatal. Em momento
posterior o mesmo coronel que chefiara a polícia quando do episódio da Bomba do
RioCentro chefiou a Secretaria de Segurança Pública e instituiu a
"Gratificação Faroeste", estimulando confrontos, mortes e lesões. Por
fim, desde 2007 temos em nosso Estado o que o Secretário José Mariano Beltrame
denominou de "Política de Confronto" e que manifesto de artistas e
intelectuais lançado naquele ano denominou de "Política de
Extermínio". Este é o resumo das políticas de segurança neste Estado que
violam direitos humanos, aumentam a escalada da violência, colocam policias em
situação de risco, vitimam a sociedade e seus próprios familiares.
O atual secretário de Estado de
Segurança Pública fala em “Guerra às Drogas” e “Retomadas de Territórios”. A
tragédia anunciada das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) é expressão da
miopia estatal, somente amparada por palavras sem sentido. Trata-se de discurso
que não se sustenta, pois conceitualmente não há guerra, nem território que não
esteja sob o domínio do Estado. O que há são crimes, cujo conceito precisa ser
analisado, assim como se precisa analisar que tipo de crime o Estado tem se
prontificando a combater.
Guerra
é a contestação pela força nascida entre dois grupos políticos, sob a
influência da concorrência vital; Guerra é a condição legal que permite a dois
ou mais grupos hostis continuar um conflito pela força armada; Guerra é um ato
de violência cujo objetivo é forçar o adversário a executar a sua vontade,
estabelecendo dominação, na conceituação de Clausewitz.
Portanto,
só por uma grosseria conceitual se poderia falar em guerra ao crime ou guerra
às drogas. Não há guerra, pois para a conceituação de estado de guerra são necessárias duas características:
aspecto político e finalidade da ação. Mesmo grupos armados que atuam com
finalidade política na ordem interna, como são as FARC na Colômbia, têm
dificuldade de obter reconhecimento do estado de guerra, pois isto implicaria
em lhes atribuir os chamados Direitos de Guerra, estipulados pela Convenção de
Genebra.
Fala-se em terrorismo para empurrar
praças para o confronto que lhes tira a vida. Mas, terrorismo é atividade política de grupos políticos fracos, sem força
para agir abertamente, visando intimidar o poder e lhe impor modo de
comportamento condizente com os seus interesses ou da população que representa.
Trata-se de modalidade de atuação de quem está fora do poder e sem interlocução
com o Governo ou o grupo hegemônico. Não há prática de terrorismo no Brasil.
O que temos
são crimes, cuja oposição do Estado não há de ser feita com o sacrifício da
vida dos seus agentes.
Para
os juristas crime é fato descrito em lei. Sociologicamente, crime é uma conduta desviante do padrão social
no qual o indivíduo está inserido. Uma característica sociológica do crime é
que ele é interno ao grupo social. O crime não é conduta praticada por um grupo
contra outro ou de uma sociedade contra outra. Mas, é transgressão praticada
por um indivíduo no seio da própria na sociedade onde vive. Crime é prática
comum a todo grupo social. O crime é lesivo aos valores do grupo dominante,
mesmo que não tenha qualquer repercussão social. Daí não se poder fazer guerra
ao crime, pois implicaria guerra interna do grupo.
O
consumo de determinadas drogas, como bebidas alcoólicas, é muito mais nocivo
que o de outras consideradas ilícitas. No entanto aquelas são socialmente aceitas
e o Estado não criminaliza sua produção, comércio ou consumo. Trata-se de opção
estatal.
Policiais tem
morrido e ficado incapacitados no que se tem chamado de "Guerra às drogas". Trata-se de política obtusa incapaz de vencer
o fluxo das mercadorias proibidas, uma vez que a demanda pressiona a oferta e
se alguém pretender usar uma substância ela chegará ao seu destinatário, por
que caminho for. Da mesma forma, a mortandade dos vendedores, de diversos
níveis e categorias, apenas reporá nova mão de obra no comércio ilegal, sem a
capacidade de impedir o fluxo da mercadoria proibida.
O que espanta
em tal política é que não se fala em combate à violência do tráfico de drogas.
O que se apresenta como modelo de combate é a apreensão de pequenas quantidades
de drogas, dinheiros trocados e algumas armas e não o esclarecimento dos
homicídios que se praticam em razão do tráfico.
As dezenas de
milhares de homicídios praticados nos últimos anos se resumem a estatísticas e
anotações em capas de processos onde se lê a sigla: A. I. (autoria ignorada).
Em Nova Iguaçu, onde fui juiz titular por 15 anos havia 2 (dois) tribunais do
juri quando lá cheguei, encarregados de julgar os crimes dolosos contra a vida.
A maioria dos inquéritos que para eles era remetida tinha na capa tais letras.
Hoje, os inquéritos são remetidos diretamente ao Ministério Público e não mais
passam pelo judiciário. Assim, um dos tribunais do juri foi extinto e apenas o
outro subsiste, assim como subsiste a falta de apuração dos crimes dolosos
contra a vida que se cometem. E são números assustadores.
Portanto, não
é a preocupação com a vida que move a política de segurança na atualidade. Não
há preocupação com a apuração dos crimes de homicídio. Policiais morrem e ficam
incapacitados por uma política canhestra de combate às drogas. E sem objetivo.
Afinal, morrem mais policiais combatendo o tráfico de drogas no Rio de Janeiro
que todos os casos de overdose no território nacional.
Portanto, não
é a droga que mata. Mas, o combate às drogas. O que mata policiais é o
proibicionismo e as políticas engendradas para sua efetivação.
É o proibicionismo
e o que se denominam "Guerra às drogas" que
geram a violência contra crianças, idosos, trabalhadores e outras pessoas que
jamais tiveram contato com drogas ilícitas; que pavimentam o caminho para a
corrupção e que matam policiais mandados irresponsavelmente para o confronto.
Morre-se e mata-se
em razão da proibição em número assustador, quando os casos de morte por
overdose são raros. A vida e a saúde pública não são defendidas com o
proibicionismo, pois apenas serve para justificar o aparato repressivo e o
controle da sociedade.
A Lei Seca nos
Estados Unidos incentivou o desenvolvimento da máfia, da qual Al Capone foi o
ícone. Regulamentado o comércio de bebida alcoólica, a máfia estadunidense teve
que buscar novos negócios. Pessoas que cultivavam videiras e proprietários de pequenos
alambiques clandestinos puderam produzir para consumo familiar sem necessidade
de se armar ante o risco da violência para roubo do produto proibido.
A Leap (Law
Enforcement Against Prohibition), que pode ser traduzida por Agentes da Lei
Contra o Proibicionismo, é uma entidade mundial composta por juízes, promotores
e policiais que tem a missão de reduzir os efeitos danosos resultantes da “guerra
às drogas” e diminuir a incidência de mortes, crimes e dependência decorrentes
da proibição.
A Leap-Brasil
advoga a eliminação da política de proibição das drogas e a introdução de uma
política alternativa de controle e regulação, com medidas restritivas à venda e
uso de drogas em razão da idade, da mesma forma que existem outras restrições
para aquisição ou consumo de álcool, de tabaco, para direção de veículos e
operação de equipamentos pesados.
Uma criança ou
adolescente pode ter dificuldade em comprar bebida alcoólica ou cigarro na
maioria dos estabelecimentos comerciais do país, pois é regulamentado, mas nada
a impede de adquirir o tipo de droga ilícita que quiser. Aqueles que ganham com
o comércio ilegal têm razões justificáveis, por seus interesses, para a
manutenção do proibicionismo e a “guerra às drogas”. É isto que precisamos
pensar responsavelmente.
Os jornais ontem
noticiaram a morte e ferimentos em policiais e cidadãos em confrontos
estimulados pela política de segurança do Estado. Um policial militar foi morto
e outro baleado anteontem, em duas ações distintas no Rio. O PM Eduardo José da
Silva, de 38 anos, morreu durante um confronto e o soldado Igor Ramalho
Martins, de 27 anos, foi baleado na madrugada durante uma troca de tiros entre
a PM e traficantes no Complexo do Alemão. Anteontem foi enterrado o policial
militar Fábio Julio Leite dos Santos, de 39 anos, morto após confronto. Na
noite de quinta-feira, o sargento André Luiz Vaz, do Batalhão de Operações
Especiais (Bope) foi atingido por um tiro na cabeça durante operação no Morro
da Providência, na região central do Rio, e morreu no hospital e outros dois
policiais ficaram feridos. Esta ação também resultou na morte de outras cinco
pessoas, além de deixar quatro feridas.
Eu poderia relatar
muitos outros casos recentes de morte ou incapacitação causados pela política
de extermínio que o secretário de segurança pública nominou de política de
enfrentamento em 2007. Mas, limito-me
aos casos de policiais noticiados ontem nos jornais fluminenses.
Não podemos
admitir que policiais continuem a morrer no que se pode chamar de
"faroeste gaúcho" realçado pelo Estado do Rio de Janeiro, desde 2007.
Policiais expostos no que chamam de
‘guerra ao crime’ são submetidos à violência que toda guerra produz. A determinação
de confronto e a militarização da política de segurança expõe a vida de
policiais, trabalhadores que merecem respeito. Omitem-se aos policiais os reais
interesses da política de segurança que confronta os direitos humanos, assim
como lhes negam os direitos decorrentes da cidadania assegurados aos demais servidores
do Estado. Aos olhos de quem incentiva a ‘guerra’ pouco importa se morre um
favelado ou um policial.
A política de
confronto submete policiais à truculência e os expõe à morte. O policial que a executa
também é vítima dela. É um trabalhador a quem se
incumbe "lutar contra o mal", "ser forte" e "enfrentar
a morte". Sendo impossível vencer a morte, do enfrentamento resulta a perda
da vida do policial, enquanto quem ordena vive sem risco. A desmilitarização da
política de segurança elevará o policial à condição de plena cidadania. Só os
que se beneficiam da política de segurança militarizada e com a ‘guerra à
criminalidade’ são capazes de defender a política de confronto e extermínio.
Os temas aqui tratados jamais foram objeto de estudo por
parte do Secretário que implementa a política de segurança neste Estado. Para a
comprovação desta afirmativa sugiro seja analisado por esta CPI a sua formação
profissional e seu aproveitamento no concurso que prestou para a Policia
Federal.
Em recente declaração na mídia o Secretário Beltrame disse
que "as pessoas que
atirarem na polícia vão levar tiro também".
Ao invés de estimular o confronto não seria de esperar que o Secretário
dissesse que quem o fizesse seria investigado, julgado por um tribunal do juri
e preso? O que pretende o Secretário com sua declaração? Estimular o confronto
que vitima e incapacita policiais? Elevar o patamar da violência a partir dos
confrontos ainda mais acirrados? Declarações similares de autoridades em tempos
passados serviram para justificar o aumento do número de vítimas entre
policiais, ao estimular o confronto.
Não se pode negar
a ninguém o direito à legítima defesa. Dispõe o art. 25 do Código penal que se
entende em legítima defesa aquele que, usando moderadamente dos meios
necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de
outrem. A legítima defesa, no entanto, é para repelir a agressão injusta, atual
ou iminente. Não há de servir para justificar revide ou vingança. A incitação ao revide é
apologia a crime.
Ao longo do 23º ano
na magistratura estadual, já julguei muitos casos de justificação de união
estável a pedido de companheiras de policiais para fins previdenciários. Em
todos os casos (todos os casos) eram senhoras pobres e sofridas e que viúvas de
policiais mandados para confronto enfrentavam todo tipo de burocracia estatal
para lhes reconhecer o direito ao pensionamento com o qual pretendiam custear a
vida e a educação dos órfãos dos quais eram mães.
Promover a defesa dos policiais implica defender uma política
de segurança humanizada que os valorize, propiciando-lhes vida com qualidade.
*Doutor em Ciência Política, ocupante do cargo de juiz de direito
no TJ/RJ e membro da Associação Juízes para a Democracia/AJD.