sábado, 20 de abril de 2024

Descobrimento do Brasil, Twitter (X) e Apartheid

 

Depois de amanhã comemoraremos 524 anos do desembarque de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro, na Bahia. Mas as glórias da navegação, no país lusitano, ficaram para Vasco da Gama, que, em 1497, contornara o Cabo da Boa Esperança abrindo o caminho para os demais navegantes.

Os nomes dados por Vasco da Gama a duas regiões da atual África do Sul permanecem até hoje: Cabo e Natal. Portugal não colonizou aquela região, mas a mantinha como ponto de passagem e abastecimento. Os tronos português e espanhol foram reunidos sob a mesma Coroa de 1580 a 1640, período chamado de União Ibérica, e em 1630 os holandeses ocuparam o nordeste do Brasil. Com a restauração do Trono Português, em 1640, iniciou-se a expulsão dos holandeses, concluída em 1654. A região sul da África que era disputada por portugueses, ingleses e holandeses fora ocupada por estes, dois anos antes.

Os holandeses, em 1652, fundaram a Cidade do Cabo e lá se estabeleceram, levando a fé protestante e renovada dos calvinistas, admitindo a presença também de protestantes franceses. A mão de obra era obtida escravizando os "cafres", africanos não islamizados. A palavra pejorativa "cafre" vem do árabe "kafir" e significava "infiel", na concepção dos mulçumanos. Camões, que aclamou o contorno do Cabo da Boa Esperança, a emprega em seus versos. Em decorrência da Guerra dos Cafres os colonizadores holandeses passaram a escravizar e trazer pessoas da Indonésia, Madagascar e Índia.

Com o advento da Revolução Francesa de 1789 e das guerras napoleônicas, em 1795 os ingleses invadiram e conquistaram a Cidade do Cabo, levando a fé anglicana. Os ingleses, em 1835, aboliram a escravatura. Em 1837, os colonos de origem holandesa, chamados de bóeres ou africânderes, migraram para o interior da África e fundaram os Estados autônomos de Orange e Transvaal, mantendo a escravidão. Em 1852, os ingleses anexaram a Colônia de Natal à Colônia do Cabo, convivendo com aqueles Estados autônomos. Mas a descoberta de diamantes e ouro naqueles Estados aguçou a cobiça dos ingleses, que avançaram sobre a região.

Foram duas as guerras dos bóeres. Na primeira, foram vencedores. Mas na outra, de 1889 a 1902, os ingleses consolidaram a dominação e em 1910 criaram a União Sul-Africana. Sua Constituição de 1910 já impedia o direito de voto aos não-brancos. Em 1911, foi editada lei criminalizando o abandono do trabalho pelos povos nativos. Em 1913, foi editada uma lei de terras reservando 7% das terras para a população negra local e 93% para os brancos.

Em 1931, a África do Sul proclamou sua independência e, em 1948, numa eleição na qual apenas os brancos puderam votar, o Partido Nacionalista, tendo à frente o pastor calvinista Daniel Francis Malan, ganhou as eleições. Sua proposta era aprofundar a separação entre a população negra e branca, diferentemente das propostas integracionistas do primeiro-ministro Jan Smuts, que a perdera por cinco cadeiras no parlamento.

Formado o governo do pastor Malan, foram instituídos os bantustões, regiões onde os negros deveriam viver. Posteriormente tais regiões foram transformadas em territórios regionais autônomos, dificultando a locomoção dos moradores para os bairros, cidades ou áreas destinadas aos brancos.

O apartheid, instituído na África do Sul em 1948, que durou até 1994, não pode ser traduzido apenas como "racismo" ou "discriminação racial". Tratou-se de um sistema social, econômico e político-constitucional. Era uma estrutura econômica de classe fundada na cor e características raciais.

Tive a atenção chamada para o problema na África do Sul quando o Arcebispo da Igreja Anglicana Desmond Tutu ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1984. A existência de uma autoridade religiosa negra na África do Sul, durante o apartheid, me deixou curioso. Mas ao buscar entender o que por lá se passava pude constatar que a religião do arcebispo não era a dos bóeres (descendentes dos holandeses). Ele era anglicano. Os descendentes dos bóeres eram calvinistas. Estes atuavam para o impedimento de acesso à terra pelos grupos tribais, exerciam controle forçado sobre a mão de obra, promoviam genocídio e sujeição dos povos nômades e promoviam guerra às populações Xhosa, Zulu e Sotho pela posse das terras produtivas.

Os trabalhadores negros somente podiam viver nos bantustões ou homelands e suas locomoções fora deles somente eram autorizadas se a economia precisasse dos seus serviços. Fora das áreas a eles destinadas não tinham direitos políticos ou civis. A pretexto de possibilitar o desenvolvimento separado, o governo da África do Sul passou a declarar os bantustões como Estados independentes, desnacionalizando a população em seu próprio país. A saída do homeland passava a demandar um passaporte ou salvo conduto. Mestiços e orientais não tinham homeland próprio e não tinham os privilégios da população branca.

Elon Musk nasceu em Pretoria, fundada em 1855 e que se tornou capital do Transvaal em 1860, região dos bóeres. Descende dos colonizadores holandeses que instituíram o apartheid na África do Sul. Em agosto do ano passado, Elon Musk se envolveu numa guerra verbal com Julius Malema, líder do partido Combatentes da Liberdade Econômica (EFF, na sigla em inglês). Ele pretendia que uma música contra o Apartheid na África do Sul, cantada em reunião do EFF, fosse proibida. O passado insiste em permanecer presente.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA , em 18/04/2024, pag. 12.


sábado, 6 de abril de 2024

Garantias da magistratura, direito da cidadania

 

As garantias conferidas aos juízes para o exercício de suas funções com independência são tratadas, por vezes, pelo senso comum ou até mesmo pela mídia, como privilégios de uma categoria profissional. Dispõe a Constituição que os magistrados gozam das garantias da inamovibilidade, vitaliciedade e da irredutibilidade de suas remunerações. A crise institucional que se abateu sobre o país em tempos recentes levou ao questionamento do que deveria ser um consenso da sociedade para que os juízes pudessem lhes assegurar os direitos livres de pressões externas ou internas.

Não fossem os juízes inamovíveis, diante de uma causa que envolvesse o interesse de grupo econômico em detrimento dos consumidores, bastaria remover o juiz e designar outro que atendesse aos interesses do poder econômico. As causas são distribuídas aos juízes por meio de sorteio. Assim, ninguém escolhe o juiz da sua causa.

Na Primeira República, período nefasto da história do Brasil encerrado com a Revolução de 1930, quando tais garantias não existiam, não raro as remunerações dos juízes eram cortadas, tornando-os reticentes diante do poder decorrente do coronelismo, quando tinham que tomar alguma decisão cujos interesses pudessem ser afetados. O Ministro do STF Victor Nunes Leal, cassado após a edição do AI-5, escreveu um livro clássico intitulado Coronelismo, Enxada e Voto, onde analisa tal questão com profundidade.

Após a Revolução de 30, foi promulgada a Constituição de 1934. Mas durou pouco. Em novembro de 1937, foi instituído o Estado Novo e uma Constituição de feição autoritária foi outorgada. Mas mesmo diante daquela Constituição de feição autoritária houve quem defendesse as garantias dos magistrados como indispensável à segurança dos direitos dos cidadãos brasileiros.

Oliveira Vianna, que atuou como consultor da Presidência da República e foi o responsável pela instituição da Justiça do Trabalho no Brasil, posteriormente nomeado ministro do Tribunal de Contas da União, teve a oportunidade de emitir parecer onde afirmava a necessidade de garantias da magistratura, mesmo naquele regime totalitário. Oliveira Vianna não qualificava o Estado Novo como uma ditadura ou um regime totalitário. Ao contrário, dizia que se tratava de uma democracia autoritária, onde o Chefe da Nação interpretava e representava a Vontade Geral. Portanto, toda decisão dos órgãos e poderes do Estado, mesmo as decisões judiciais, deveria estar em conformidade com a vontade do chefe do Estado.

Mas Oliveira Vianna ressalvava o perigo que poderia ser um regime no qual os juízes se sentissem inseguros de desagradar ao ditador. E para que não fossem tomados de tal sentimento, em prejuízo da realização dos direitos da sociedade, haveriam de ser imunes a qualquer tipo de retaliação. Embora de concepção autoritária e conservadora, as ideias de Oliveira Vianna precisam ser revisitadas no presente momento, a fim de assegurar as garantias à magistratura em proveito da sociedade.

Estudando os regimes totalitários europeus dos anos 30, Oliveira Vianna afirma que em nenhum deles os magistrados estavam sujeitos à hierarquia administrativa; em nenhum estariam subordinados ou subalternos aos chefes dos Estados totalitários. Disse que a restrição ao "livre movimento dos magistrados no campo das suas atribuições" e sem independência funcional da magistratura é impossível qualquer sistema funcionar.

Na vigência dos regimes totalitários, onde os poderes estavam enfeixados nas mãos do chefe do Poder Executivo, o Presidente da República podia suspender, aposentar ou demitir quaisquer funcionários cujo comportamento não lhe parecesse adequado. O Estado num regime totalitário não é Estado de Direito, onde há de viger a vontade impessoal da lei e não a vontade pessoal dos agentes públicos. Mas, interpretando a Constituição outorgada de 1937, Oliveira Vianna dizia que a "obediência pessoal do Chefe do Governo não pode atingir os órgãos da magistratura". E concluía que mesmo a aposentadoria autorizada naquela Carta autoritária somente se poderia fazer para os funcionários administrativos "quando, pelas suas ideias e doutrinas, estivessem em desacordo com os princípios do próprio regime". "Mas não poderia fazer o mesmo em relação aos magistrados, pois que estes não podem estar obrigados, órgãos de um poder político que são, ao mesmo dever de obediência; obediência eles só devem à lei e à Constituição", disse.

O parecer emitido pelo então ministro do Tribunal de Contas da União, publicado em Ensaios Inéditos pela Editora da Unicamp, nos coloca a questão de necessidade de independência funcional dos juízes em prol da realização dos direitos e garantias da sociedade. Num Estado Democrático de Direito, tal como assegurado no art. 1º da Constituição da República, tais garantias não comportam dúvida. Menos ainda por posicionamentos doutrinários dos julgadores. Afinal, um dos princípios consagrados na Constituição é o da pluralidade, sem o que não há que se falar em democracia.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 06/04/2024, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/04/6822685-garantias-da-magistratura-direito-da-cidadania.html