domingo, 24 de outubro de 2021

Parlamentares, propaganda eleitoral ilícita e abuso de autoridade

Um tipo de propaganda eleitoral fora da época, a pretexto de fiscalização e denúncia, ronda o país. Trata-se de atuação ilícita de parlamentares, sem autorização das respectivas casas a que pertencem. No auge da pandemia causada pelo Sars-Cov-2, o incitamento por autoridade pública apurado na CPI da Covid, atiçou a irracionalidade dos que invadiram hospitais para conferir a quantidade de internados. Alguns se arriscaram ao adentrar alas reservadas a pessoas contaminadas, bem como expuseram pacientes e profissionais de Saúde a riscos, por ingresso sem a assepsia necessária.

A onda desrespeitosa, midiática e visando a propaganda eleitoral seguiu para outros ramos de atividade: escolas, universidades, hospitais psiquiátricos, repartições públicas, abrigos, aldeamento indígena e moradias coletivas. O “pé na porta do barraco”, praticado rotineiramente por agentes do Estado em favelas e periferia, onde o direito constitucional à inviolabilidade do domicílio é letra morta, tem levado vereadores e deputados a se comportarem com igual desrespeito em relação a cidadãos usuários dos serviços públicos e aos servidores que prestam os serviços.

A pretexto de exercer seus mandatos, não faltam parlamentares, em ação midiática caracterizadora de propaganda eleitoral extemporânea, expondo indevidamente, em suas redes sociais, imagens captadas sem autorização. Alguns chegam a se vestir, juntamente com seus assessores e seguranças, como se fossem uma ‘milícia fardada’ ou grupamento paramilitar, em violação à Constituição que veda o uso de uniforme por grupos políticos.

O controle dos atos da administração pública pode ser feito pelos escalões superiores, mediante controle interno, ou de um poder sobre o outro, mediante controle externo. As comissões parlamentares diversas e as CPIs são instrumentos de controle que tanto pode ser interno quanto externo. Não se confunde com a atividade midiática de indivíduo ocupante de mandato em afronta aos demais órgãos da administração pública.

As atuações institucionais devem ser desempenhadas com observância das leis que conferem as funções aos órgãos e agentes. Nenhum agente público pode pendurar a identidade funcional no pescoço e sair atuando como super-herói fora dos limites legais. A lei que define os crimes de abuso de autoridade é textual e aqueles que agem como justiceiros podem ser, com base nela, apenados. É crime de abuso de autoridade “invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei”.

A invasão de qualquer imóvel torna o parlamentar abusado sujeito à perda do mandato, por decisão da própria casa a que pertença ou do Poder Judiciário. A exposição de imagem de crianças ou adolescentes igualmente é ilícita, assim como é indevida a exposição da imagem de alunos, professores, pacientes hospitalares e profissionais de Saúde. 

Além da atividade legislativa, o parlamento tem a prerrogativa de fiscalização dos atos do poder público. Mas, tal atuação há de ser institucional, ou seja, quando atribuída ao parlamentar pela Casa da qual faça parte. Os membros do Poder Legislativo podem atuar individualmente ou em comissões, mas sempre que lhes for atribuída tal função por resolução do órgão a que pertençam. Nunca no exercício das próprias

razões.

A indevida atividade de parlamentar, sem expressa atribuição da Casa a que pertença, ameaçando funcionários, filmando e expondo a imagem de pessoas e se manifestando com falta de urbanidade, caracteriza crime, improbidade administrativa, falta de decoro parlamentar e ilícito eleitoral. A propaganda eleitoral fora de época enseja a reprimenda da Justiça Eleitoral. Uma das consequências é o indeferimento de candidatura futura.

A mesma Constituição que atribui poderes aos agentes políticos do Poder Legislativo para a fiscalização dos atos da administração os delimita, assegura a todos o direito à honra, à imagem, a inviolabilidade do domicílio e a liberdade de exercício profissional, bem como veda tratamento degradante e humilhante. Os agentes públicos, inclusive os parlamentares, estão sujeitos a conjunto de deveres esculpidos na ordem jurídica e podem ser apenados por suas ilicitudes.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA em 24/10/2021. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2021/10/6260542-joao-batista-damasceno-parlamentares-propaganda-eleitoral-ilicita-e-abuso-de-autoridade.html

sábado, 9 de outubro de 2021

A falência da Nova República


Depois de 21 anos da ditadura empresarial-militar, que durou de 1964 a 1985, setores sociais diversos se aglutinaram na transição para uma nova ordem político-jurídica. Desde o início do governo Geisel, em 1974, as bases para a transição estavam sendo implementadas. Em 1979 aquele general-presidente transmitiu o poder a outro general, João Figueiredo. Mas, não sem editar no último dia do seu governo a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman).

No governo Figueiredo foi negociada com as forças políticas majoritárias a lei da anistia, a extinção dos dois partidos políticos existentes e a possibilidade de criação de novos partidos. Em 1982 retomamos a eleição direta para governador e foi revogada a possibilidade da existência de senadores biônicos, ocupantes do cargo sem o voto popular. Em 1985, por eleição indireta do Congresso Nacional, foi eleito o primeiro presidente civil desde 1960. Somente em 1989 tivemos eleição direta.

Durante o governo Figueiredo grupos encastelados no poder, com práticas terroristas, colocavam bombas em instituições democráticas, dentre as quais, redações e bancas de jornais, a OAB, a ABI e a Câmara de Vereadores do Rio. Na noite de 30 de abril de 1981 uma bomba explodiu, dentro de um carro estacionado, no colo de dois militares que colocariam bombas durante show no Riocentro, que poderia ter causado a morte de milhares de jovens. Aquele acidente de trabalho desnudou a origem dos terroristas e foi a última tentativa de impedirem, por meio de bombas, a abertura política.

Em 1986, a sociedade brasileira elegeu deputados e senadores que se reuniram em Assembleia Nacional Constituinte e editaram em 5 de outubro de 1988 uma Constituição. Foi uma assembleia porque se tratou de uma reunião de representantes da sociedade e não um ajuste de agentes do Estado para mudar abruptamente a ordem constitucional, como aconteceu com a edição da Emenda Constitucional nº 1 de 1969, outorgada pelos três ministros militares, nem como a emenda que reformou o Judiciário por decreto presidencial em abril de 1977, durante fechamento das casas parlamentares.

Foi nacional porque reuniu a nação, conjunto de pessoas identificadas pelo sentimento de brasilidade. E foi constituinte, porque constitui um novo estatuto jurídico para pautar as relações entre Estado e sociedade. Tratou-se da mais benigna Constituição da história do Brasil.

A Constituição de 1988 pretendeu instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a Justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias; dispôs que os fundamentos da República brasileira são a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.

Quanto aos poderes públicos estabeleceu que sejam independentes e harmônicos entre si e quanto aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil almejou construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Mas o pacto social do qual resultou a Nova República e a Constituição de 1988 se rompeu. Para minorar as perdas causadas ao capital pelas crises do próprio sistema, a Constituição já foi emendada 111 vezes e outras emendas visando a subtrair direitos dos trabalhadores estão em curso. E do que ainda resta vigente da Constituição originária buscam-se fazer letra morta. Afinal, uma Constituição é aquilo que dela fazemos na prática e os direitos e garantias fundamentais, individuais e sociais, estão sendo a cada dia mais relegados a segundo plano, inclusive as garantias à magistratura responsável por assegurá-los.