Damasceno: No Rio, polícia “Mãe Dinah” antevê
crime; equivale a Estado de Sítio
Damasceno: “A polícia fluminense se
converteu na ‘polícia Mãe Dinah’, que investiga o futuro”
por Conceição Lemes
Nessa sexta-feira 11, a 27ª Vara
Criminal da cidade do Rio de Janeiro expediu 26 mandados de prisão temporária e
dois de busca e apreensão de menores de idade.
A maioria foi detida ontem. Acusação:
formação de quadrilha armada, com pena prevista de até três anos de reclusão.
Em entrevista coletiva nesse sábado, o
chefe de Polícia Civil do Rio de Janeiro, delegado Fernando Veloso, justificou:
“Estamos monitorando a ação desse grupo de pessoas desde setembro do ano
passado. A prisão delas vai impedir que outros atos de violência ocorram neste
domingo”.
Veloso disse que a polícia fluminense
tem provas “robustas” e consistentes” de que “essa quadrilha pretendia praticar
atos violentos se não hoje, amanhã [domingo]”.
Na
mesma coletiva , a delegada Renata Araújo, adjunta da Delegacia de Repressão à Crimes
de Informática (DRCI), alegou: “Eles planejavam ataques e se aproveitavam de
problemas reais para fazer manifestações onde usavam artefatos para incendiar
ônibus, depredar agências bancárias, entre outros”.
“Do ponto de vista substancial, não há
como defender a legalidade de tais prisões”, denuncia o juiz João Batista
Damasceno, membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD). “Violou-se o
direito constitucional de liberdade de manifestação do pensamento e direito de
reunião.”
“Na prática, implementaram-se medidas
típicas de um Estado de Sítio, sem que ele tivesse sido decretado. Isso é crime
de responsabilidade”, alerta. “Num Estado de Direito efetivo, as autoridades
envolvidas numa situação como essa seriam chamadas a se explicar e poderiam,
eventualmente, ser responsabilizadas.”
“A polícia fluminense se converteu na
‘polícia Mãe Dinah’ que investiga o futuro”, critica Damasceno. “Seria cômico
não fosse trágico ao Estado de Direito e não representasse um perigo de volta
ao tempo sombrio da ditadura militar, notadamente quando vigente o AI-5, que
suprimira o habeas corpus.”
A propósito. Entre as coisas
apreendidas pela polícia do Rio de Janeiro na residência dos presos, há
máscaras contra gás lacrimogêneo, viseiras, máscaras de carnaval, computadores,
livros de capa vermelha e um revólver.
“O revólver foi apreendido na casa de
um adolescente que milita politicamente. Só que é do pai do ativista, que tem
porte legal de arma. A mídia tradicional tem a informação, mas não publica”,
acusa Damasceno.
“A prisão de máscaras de carnaval,
bandeiras vermelhas e até livros de literatura — pelo simples fato de terem a
capa vermelha — é a prova do retorno da estupidez às práticas policiais dos
tempos de ditadura”, vai mais fundo. “Mudou-se o nome, mas a política é a
mesma.”
Segue a íntegra da nossa entrevista com
João Batista Damasceno, que é juiz no Rio de Janeiro, doutor em Ciência
Política e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
Viomundo – Segundo o chefe da Polícia
Civil do Rio de Janeiro, as prisões seriam para impedir que atos de violência
ocorressem neste domingo. A lei permite isso?
João Batista Damasceno – A Constituição
dispõe que ninguém será considerado culpado sem que haja sentença condenatória
transitada em julgado. Neste momento, estamos vivenciando casos de
responsabilização antes que a pessoa cometa o fato tido como criminoso.
Não se trata apenas de prisão
temporária, visando à apuração do fato cometido. Nem prisão preventiva, para
proteção do processo, ou seja, das testemunhas e garantia da execução penal,
caso o acusado seja condenado.
Trata-se de prisão antecipada ao fato,
que não se pode afirmar que aconteceria. A militante Elisa [Elisa Quadros,
conhecida como Sininho] estava no Rio Grande do Sul e certamente não viria ao
Rio de Janeiro para as manifestações de encerramento da Copa.
No Rio de Janeiro, já tivemos um chefe
de polícia que se envolveu com o crime organizado internacional, no caso a
máfia espanhola, apontada, na época, como responsável pelo tráfico
internacional de drogas.
Seria um absurdo defender a prisão do
atual chefe de polícia a fim de evitar que pudesse – no futuro – cometer os
mesmos crimes que teriam sido cometidos por aquele chefe de polícia no final do
século XX.
Perante a lei, o atual chefe de polícia
merece a mesma consideração que os demais cidadãos brasileiros. A violação ao
direito de uns permite que o direito de outros também seja violado, inclusive
do próprio chefe de polícia.
Mas é preciso lembrar que tais prisões
foram decretadas pelo poder Judiciário, que tem funcionado como auxiliar da
polícia e do governo na violação aos direitos dos cidadãos. Assim, não se
espera que funcione como órgão garantidor dos direitos.
Viomundo – Essas prisões são ilegais
então?
João Batista Damasceno – Elas foram efetuadas
a pedido da polícia, mas por decretação do Judiciário.
Do ponto de vista formal, a polícia fez
o que o Judiciário autorizou. Claro que na execução da medida no Rio Grande do
Sul os policiais fluminenses não poderiam ter atuado. Eles agiram fora do
limite territorial do Estado do Rio de Janeiro. Atuaram com excesso de poder.
O delegado encarregado da diligência
gravou vídeo da prisão da militante no Rio Grande do Sul, expondo indevidamente
sua imagem, e disse estar em auxílio à polícia gaúcha. Mas vendo o vídeo
percebe-se que toda a diligência foi efetuada pela polícia fluminense.
Trata-se de uma polícia, que, desde a
condecoração dos homens do Esquadrão da Morte nos anos 60 pelo governado Carlos
Lacerda, atua à margem da lei.
Do ponto de vista substancial, não há
como defender a legalidade de tais prisões.
Em entrevista, o chefe de polícia do
Rio de Janeiro disse que tais militantes vinham sendo monitorados desde
setembro de 2013 e que as prisões evitariam que participassem de manifestações
neste domingo, final da Copa.
Porém, violou-se o direito
constitucional de liberdade de manifestação do pensamento e direito de reunião.
Na prática, implementaram-se medidas
típicas de um Estado de Sítio, sem que ele tivesse sido decretado. Isso é crime
de responsabilidade. Num Estado de Direito efetivo, as autoridades envolvidas
numa situação como essa seriam chamadas a se explicar e poderiam,
eventualmente, ser responsabilizadas.
Viomundo – A Justiça determinou a
prisão temporária. Por quê?
João Batista Damasceno — A prisão temporária,
de discutível constitucionalidade, visa restringir a liberdade de uma pessoa a
fim de coletar prova de crime que se tenha cometido.
A prisão temporária é uma prisão para
preservar as provas, após a ocorrência de um crime. Trata-se de medida
emergencial, por isso se afasta o suposto criminoso da cena do crime para a produção
probatória necessária à sua acusação.
No caso presente, os militantes estavam
sendo monitorados desde setembro de 2013. Não havia prova a ser coletada
emergencialmente.
Fica cada vez mais evidente o reforço
do Estado Policial, com exercício arbitrário do poder da polícia. Voltamos ao
Brasil da Primeira República, quando a política se fazia com a polícia à
frente. O estopim para a Revolução de 30 foi uma ação policial na casa da
namorada de João Dantas, adversário do candidato a vice-presidente de Getúlio
Vargas, João Pessoa.
Viomundon — A polícia do Rio apresentou
várias coisas que teriam sido apreendidas nas residências presos. Pelas fotos
publicadas na mídia, dá pra ver máscaras contra gás lacrimogêneo, viseiras, um
revólver…
João Batista Damasceno — O revólver foi
apreendido na casa de um adolescente que milita politicamente. Só que o
revólver é do pai desse ativista político, que tem porte legal de arma. A mídia
tradicional tem a informação, mas não publica, legitimando a atuação da polícia.
A polícia tratou o adolescente como se
ele fosse o dono da casa. E diante da demonstração de que seu pai era o
detentor de porte legal de arma, lavrou-se um registro de omissão de cautela. É
uma forma de justificar a apreensão de uma arma que não poderia ser apreendida.
A polícia buscou dar um aparato legal à
apreensão, sob o fundamento de que aquele que tem a posse legal da arma, não a
guardou adequadamente, tornando-a passível de apreensão. Mas isto não foi
levado ao conhecimento da sociedade.
Viomundo – Pesa o fato de estarmos em
ano eleitoral?
João Batista Damasceno — Com certeza, e a
polícia quer mostrar eficiência na intimidação de opositores das políticas
públicas lesivas aos interesses do povo.
Curiosamente, essa mesma polícia que
prendeu os jovens militantes não se moveu diante do que não foi apurado na CPI
do Cachoeira. Tampouco diante do furto das vigas do elevado da Perimetral, no
Rio de Janeiro. Eram vigas com cerca 20 toneladas! Essa mesma polícia não foi
capaz de esclarecer a autoria do furto, apesar de do grande volume e notável
valor econômico.
Igualmente não foram esclarecidos pela
Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática (DRCI) os crimes cometidos por
policiais. E a DRCI é que está atuando contra os militantes presos.
Viomundo – Explique melhor isso.
João Batista Damasceno — Computadores de
juízes fluminenses foram invadidos e hackeados e o fato somente se comprovou
porque o Ministério Público o esclareceu. A delegada titular de então
direcionou a investigação para as vítimas.
No ano passado, crimes contra um
magistrado, praticados por policiais pela internet, igualmente terminaram sem
qualquer apuração. De nada adiantou a reunião do delegado titular da DRCI no
gabinete da então chefe de polícia, Martha Rocha. Nada se apurou. As investigações
são seletivas.
Desde a morte do jornalista Tim Lopes
formou-se uma perversa aliança da mídia com a polícia. Já não se denunciam as
arbitrariedades policiais como se fazia antes. O fato se agravou com a morte do
cinegrafista Santiago de Andrade durante uma manifestação recente.
Não se registrou a morte do Santiago
como uma fatalidade; nem que ele trabalhava sem os equipamentos de proteção que
lhe deveriam ser fornecidos pela empresa de comunicação que o empregava.
A morte dele foi consequência da
irresponsabilidade de militantes, que não desejavam sua morte, mas também da
culpa grave do empregador que não lhe forneceu os meios adequados para proteção
na cobertura de uma manifestação que se sabia poderia resultar confronto ou
conflito, como ocorre no restante do mundo.
A polícia fluminense se converteu na
‘polícia Mãe Dinah’, que investiga o futuro. Seria cômico não fosse trágico ao
Estado de Direito e não representasse um perigo de volta ao tempo sombrio da
ditadura militar, notadamente quando vigente o AI-5, que suprimira o habeas
corpus.
A prisão de máscaras de carnaval,
bandeiras vermelhas e até livros de literatura — pelo simples fato de terem a
capa vermelha — é a prova do retorno da estupidez às práticas policiais.
Durante a ditadura, a mesma polícia, fazia apreensão de livros pela cor da
capa. Naquela época, não era a Delegacia de Repressão aos Crimes de
Informática, mas o DOPS, Departamento de Ordem Política e Social. Mudou-se o
nome, mas a política é a mesma.
Viomundo – O que representam essas
prisões?
João Batista Damasceno – O apogeu da escalada
do Estado Policial. Mas não é coisa que tenha sido formatada apenas pelo atual
chefe de polícia. É parte de uma política federal de repressão aos movimentos
sociais. A atuação tem sido similar em outros Estados. No Rio de Janeiro e em São
Paulo ocorre maior repercussão. Mas esse tipo de atuação se intensificou após
reunião dos secretários de Segurança dos estados no Ministério da Justiça.
É óbvio que nem tudo é coisa do governo
federal; apenas a matriz. As polícias e o próprio Judiciário funcionam nesses
episódios como forças auxiliares. O próprio chefe de polícia desempenha papel
deste quilate.
O povo, para certo de tipo de político,
só é bonito visto do palanque, para onde vai aplaudir o candidato. Assim,
pensava Benedito Valadares, velho político mineiro, que cunhou tal frase.
Anastácio Somoza, ditador nicaraguense
derrubado pela Revolução Sandinista em 1979, dividia o povo em três segmentos:
os amigos, a quem dava ouro; os indiferentes, a quem dava prata e os inimigos,
a quem destinava chumbo.
As atuais políticas públicas têm o
mesmo viés. Mas quem ficou com o ouro foi a FIFA. Aos que não se domesticaram
para receber a prata restaram demolições de casas, remoções de suas
comunidades, repressão brutal e prisões.