quarta-feira, 23 de julho de 2014

O FIM DA CLANDESTINIDADE


“Com os mesmos fundamentos usados pelo Ministério Público para pedir a prisão preventiva ela não poderá ser novamente decretada, sob pena de descumprimento de decisão do tribunal que a revogou. Os juízes têm o dever legal de executar as decisões dos tribunais (não recebem ordens dos tribunais), sob pena de crime de responsabilidade. Não é crime de desobediência, pois juízes – independentes - não devem obediência ao tribunal. Mas, revogada a prisão preventiva pela concessão da liminar no habeas corpus, a ausência para responder ao processo não mais é clandestinidade, mas fuga e permite decretação de prisão em razão disto”.

A concessão de liminar em habeas corpus pôs fim à clandestinidade imposta aos advogados, jornalistas e militantes que tiveram prisão temporária (decretada previamente à prática de fato criminoso, mas visando não se manifestassem durante da Copa das Tropas da FIFA), e que fora convertida em prisão preventiva, sendo necessário que os acusados – acompanhados de advogados qualificados – se apresentem em juízo, a fim de que não se aleguem no futuro necessidade de nova decretação de prisão para garantia da execução da lei penal.

Com os mesmos fundamentos usados pelo Ministério Público para pedir a prisão preventiva ela não poderá ser novamente decretada, sob pena de descumprimento de decisão do tribunal que a revogou. Os juízes têm o dever legal de executar as decisões dos tribunais (não recebem ordens dos tribunais), sob pena de crime de responsabilidade. Não é crime de desobediência, pois juízes – independentes - não devem obediência ao tribunal. Mas, revogada a prisão preventiva pela concessão da liminar no habeas corpus, a ausência para responder ao processo não mais é clandestinidade, mas fuga e permite decretação de prisão em razão disto.

Os acusados devem fornecer endereço no qual possam ser encontrados e comparecer toda vez que forem intimados. Devem atender sempre que o juízo lhes remeter intimação. Se houver mudança de endereço, e isto pode ocorrer quantas vezes a liberdade de locomoção permitir, basta comunicar o novo endereço ao juízo.

Há ilhas de garantismo no judiciário, em prol do Estado Democrático e de Direito!

Ainda há juízes no Brasil!


segunda-feira, 21 de julho de 2014

Liberticídio de Brasília


“Prisões para evitar manifestações é o apogeu do Estado Policial. Mas o liberticídio não é coisa de reles chefes das polícias estaduais; é parte de uma política federal de repressão aos movimentos sociais em todo o país e se intensificou após reunião de secretários de segurança no Ministério da Justiça. O governo federal tem atuado na esfera reservada pela Constituição aos estados, e os governantes locais aproveitam a oportunidade para exercitar seus desejos mórbidos, pondo suas polícias contra a sociedade, tal como no tempo do Dops. O emprego das Forças Armadas como polícia é emblemático. Setores do próprio Judiciário funcionam nestes episódios como força subalterna, abdicando indevidamente do papel de garantidores dos direitos.”

 

O ministro da Justiça se manifestou sobre prisões de pessoas previamente à prática de ilícitos e expressou não haver ilegalidade, pois atendidos os requisitos formais. Tal pensamento é similar ao dos gorilas que sequestraram as liberdades em 1964, período no qual — atendidos os requisitos formais — não se permitia analisar a substância dos atos, sobretudo durante a vigência do AI-5. Por vezes, formalidades davam roupagem de aparente legalidade à prisão, mesmo ante a falta de fundamento que lhe desse legitimidade.

 

Os gorilas violaram a Constituição sob o fundamento de que o poder revolucionário, que se atribuíam, era constituinte. Em 1969 editaram a Emenda Constitucional 1. Outorgaram uma Constituição, mas, do ponto de vista formal, era só uma emenda.

 

Prisões para evitar manifestações é o apogeu do Estado Policial. Mas o liberticídio não é coisa de reles chefes das polícias estaduais; é parte de uma política federal de repressão aos movimentos sociais em todo o país e se intensificou após reunião de secretários de segurança no Ministério da Justiça. O governo federal tem atuado na esfera reservada pela Constituição aos estados, e os governantes locais aproveitam a oportunidade para exercitar seus desejos mórbidos, pondo suas polícias contra a sociedade, tal como no tempo do Dops. O emprego das Forças Armadas como polícia é emblemático. Setores do próprio Judiciário funcionam nestes episódios como força subalterna, abdicando indevidamente do papel de garantidores dos direitos.

 

Movimentos sociais têm sido cooptados e seduzidos por custeios e oportunidades de negócios ou severamente trucidados. A presidenta Dilma Rousseff, em entrevista na Globo News, após o jogo do Brasil com a Holanda, falou da “política federativa de segurança” e do “padrão de segurança na Copa”. Mas não se implementou política de investigação dos homicídios de trabalhadores, de jovens e de negros nas periferias, nem das violações reiteradas aos direitos humanos.

 

Um sistema que precisa prender advogados e filósofos para se manter demonstra falta de razão para convencer dos fundamentos que o legitima. Mais do que uma demonstração ao capital financeiro internacional de que o Brasil é um país seguro para suas especulações, a política repressiva visa a afastar a pretensão popular de participação na vida pública.

 

Benedito Valares, velho político mineiro, dizia gostar do povo visto do palanque, pois lá estava para aplaudi-lo. Anastácio Somoza, ditador nicaraguense derrubado pela Revolução Sandinista em 1979, dividia o povo em três categorias: os amigos, a quem dava ouro; os indiferentes, a quem dava prata, e os inimigos, a quem destinava chumbo. No Brasil, quem ficou com o ouro foi a Fifa. Aos que não se domesticaram para receber a prata restaram chumbo, remoções, repressão brutal e prisões.

 


 

Plínio e a Copa das Copas

“Com dinheiro federal, decorrente de empréstimos a fundo perdido concedidos pelo BNDES, o Estado e o Município do Rio de Janeiro — a serviço da Fifa — violaram direitos, suprimiram liberdades, adotaram política higienista, expulsaram moradores de rua para lugares distantes, derrubaram casas, removeram comunidades e militarizaram as políticas públicas. Até o histórico prédio do Museu do Índio correu o risco de demolição a pretexto de solicitação da Fifa, sob a complacência do Judiciário; salvou-o a mobilização das populações originárias com o apoio da sociedade.”
 
O Brasil perdeu feio da Alemanha na tarde da última terça-feira por 7 a 1. Mas, na mesma tarde, também perdeu Plínio de Arruda Sampaio, histórico militante das causas sociais e em prol dos excluídos. Defensor das liberdades, teve os direitos políticos cassados após o golpe empresarial-militar de 1964. Foi para o exílio e trabalhou na FAO, organismo da ONU que se propõe a eliminar a fome no mundo.
 
A primeira vez que o ouvi falar da fome no mundo fui conferir as informações e fiquei estarrecido, pois a falta de comida mata mais que todas as epidemias e guerras. Mas, como acentuava, não falta produção de comida. A produção mundial de alimentos é superior à capacidade humana de consumo; o problema é o que se faz dela. Não se destinam os alimentos produzidos aos pobres, mas ao lastro para o capital financeiro e especulativo. Além disto, boa parte da produção de grãos, soja ou milho, se destina à alimentação de gado. É a alegria do agrobusiness, em prejuízo da alimentação humana.
 
Plínio se notabilizou por sua cruzada contra a fome, nunca abriu mão das suas ideias e lutou intensamente pelas liberdades e pela justiça social. Nas eleições de 2010, disputou a Presidência da República e, embora não fosse um dos candidatos que a mídia escolhera para polarizar as eleições, que a cada dia têm maior sentido plebiscitário, se impôs pela sua trajetória e esteve em todos os debates para os quais a mídia convocara os ‘quatro grandes’.
 
Embora com o mesmo 1% dos votos, tal como os demais candidatos que a mídia despreza e chama de “nanicos”, Plínio parecia um gigante. Um velho gigante, tanto na idade, mais de 80, quanto na sabedoria e compromisso com o povo. Plínio olhava o mundo de cima, mas sem soberba, como quem sabe enxergar as coisas da vida. Perto dele, a Copa é uma pelada, e os 30 bilhões de reais gastos na sua realização seriam apenas recursos destinados a construir escolas e hospitais ou ajudar a implementar a reforma agrária e a agricultura familiar.
 
Com dinheiro federal, decorrente de empréstimos a fundo perdido concedidos pelo BNDES, o Estado e o Município do Rio de Janeiro — a serviço da Fifa — violaram direitos, suprimiram liberdades, adotaram política higienista, expulsaram moradores de rua para lugares distantes, derrubaram casas, removeram comunidades e militarizaram as políticas públicas. Até o histórico prédio do Museu do Índio correu o risco de demolição a pretexto de solicitação da Fifa, sob a complacência do Judiciário; salvou-o a mobilização das populações originárias com o apoio da sociedade.
 
O Brasil perdeu a Copa em casa. Mas, para sua realização, houve escancarada violação aos direitos constitucionais. Que a taça se vá! As políticas implementadas para sua realização é que deveriam nos fazer tristes ou dispostos a construir realidade diversa, tal como pretendida pelo Plínio.
 

 

 

Lá se foi o Benedito!


“Escalado para bater um pênalti na Ação Penal 470, o ministro marcou um gol. Fez o que a galera pedia. Sem fôlego para jogar até o fim do campeonato, pediu pra sair antes que lhe cessassem os aplausos pelos quais trabalhara. Num dos célebres julgamentos da história, Pôncio Pilatos não fez justiça quando deveria; preferiu os aplausos. Sentimentos momentâneos, mesmo que da maioria, nem sempre são adequados à racionalidade que se espera de um julgador. O que há de orientar um julgamento não é o mesmo sentimento durante um linchamento. Não duvido da existência de razões para inabilitar politicamente os acusados na AP 470. Mas um juiz há de julgar fato concreto, e seu convencimento há de resultar da prova existente nos autos, obedecido o devido processo legal. As Constituições foram criadas para limitar os caprichos. Num Estado de Direito há de prevalecer a vontade impessoal da lei, e não as vontades pessoais.”
 
 
A aposentadoria, a pedido, do ministro do STF Joaquim Benedito Barbosa não causou surpresas, nem lamentos. Ressentidos com os condenados na Ação Penal 470 comemoraram o resultado do julgamento e o arbítrio no processo de execução, sem perceber a possibilidade de repercussão negativa na esfera dos direitos dos mais humildes. Se o ministro pode fazer o que fez, por que não se pode, nas periferias, fazer as mesmas coisas em prejuízo de negros e pobres?
 
Nomeado em razão de critério racial adotado pelo presidente Lula, o ministro inspirava esperança. Logo que botou as mangas de fora, mostrou-se de temperamento instável, com exagerada concepção de si mesmo e incapacidade de ponderar ante argumentos que não viessem ao encontro de suas opiniões.
 
Escalado para bater um pênalti na Ação Penal 470, o ministro marcou um gol. Fez o que a galera pedia. Sem fôlego para jogar até o fim do campeonato, pediu pra sair antes que lhe cessassem os aplausos pelos quais trabalhara. Num dos célebres julgamentos da história, Pôncio Pilatos não fez justiça quando deveria; preferiu os aplausos. Sentimentos momentâneos, mesmo que da maioria, nem sempre são adequados à racionalidade que se espera de um julgador. O que há de orientar um julgamento não é o mesmo sentimento durante um linchamento. Não duvido da existência de razões para inabilitar politicamente os acusados na AP 470. Mas um juiz há de julgar fato concreto, e seu convencimento há de resultar da prova existente nos autos, obedecido o devido processo legal. As Constituições foram criadas para limitar os caprichos. Num Estado de Direito há de prevalecer a vontade impessoal da lei, e não as vontades pessoais.
 
Juízes, quando julgam de acordo com a ordem jurídica justa, costumam desagradar a metade das partes. Para o vencedor, é apenas alguém que cumpriu sua obrigação. Para o perdedor, um injusto. Diante de vitória apenas parcial, até o vencedor reclama. Juízes não devem esperar aplausos.
 
Quando julgam sob holofotes, são de altíssima periculosidade social e um dano iminente para as liberdades e para a justiça.
 
Lembrarei o ministro por sua presença em um botequim durante licença médica, sua ida ao Bar Luiz após ofender outro ministro, de onde saiu aplaudido pelos bêbados, e sua presença na quadra de uma escola de samba. Não gostaria de lembrá-lo como um juiz de ocasião, mas por alguma medida em prol da demarcação de terras quilombolas, das terras indígenas, da reforma agrária, do direito à moradia ou contra as remoções e extermínio de negros e pobres. O ministro Joaquim Benedito Barbosa passou tal como um cometa: reluzente, mas temporário. Há homens públicos que são assim. Os que compreendem seus papéis institucionais são como estrelas: brilham pouco, mas são permanentes, e o efeito do que fazem perdura mesmo depois de não mais existirem.
 
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 06/07/2014. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-07-05/joao-batista-damasceno-la-se-foi-o-benedito.html

 

Entre vaias e aplausos


“As vaias dirigidas à presidenta Dilma Rousseff e o coro em xingamento durante a abertura da Copa, em São Paulo, ecoaram no mundo político como se fosse acontecimento sem precedente no campo do esporte ou da política. O mesmo coro já fora dirigido a um apresentador de televisão, notável por seus comentários inapropriados, e foi tratado como expressão da irreverência do torcedor.”

 

As vaias dirigidas à presidenta Dilma Rousseff e o coro em xingamento durante a abertura da Copa, em São Paulo, ecoaram no mundo político como se fosse acontecimento sem precedente no campo do esporte ou da política. O mesmo coro já fora dirigido a um apresentador de televisão, notável por seus comentários inapropriados, e foi tratado como expressão da irreverência do torcedor.

 

Consagrou-se o costume de que não se deve aplaudir os hinos nacionais ao final de sua execução. Isto porque quem aplaude, porque gosta, tem o direito de vaiar, se não gostar. Daí é que gostando ou não gostando, costuma-se manter postura respeitosa, sem expressão do sentimento. As autoridades brasileiras têm dado demonstrações de não compreender as regras do campo nos quais estão inseridas.

 

A política econômica desenvolvida pelo governo federal pode estar agradando aos bancos e ao agrobusiness, mas é um desastre para os trabalhadores. Não são política econômica os milhões de benefícios do Bolsa Família, no valor de R$ 77, limitado a R$385 por família; é misericórdia diante de extrema necessidade. Mesmo os pequenos e médios agricultores começam a sentir os efeitos danosos de tal política, ante a suspensão dos contratos do Programa Nacional de Agricultura Familiar (Pronaf), que o Banco do Brasil celebrava.

 

A política de direitos humanos é um desastre. O ministro da Justiça, que chefia a Força Nacional, instituída sem previsão constitucional ou legal, se alia aos mais retrógrados executores de ‘política de segurança’ contra a sociedade.

 

O governo federal tentou capitanear a euforia com a Copa do Mundo. Em razão disto, gastou dezenas de bilhões de reais num evento que somente aos cartolas interessa. Ainda que o futebol promova a mobilização da sociedade, não há razões para aplaudir os governantes, ante o custo social para o evento.

 

Já se disse que no Maracanã, símbolo do futebol brasileiro, se vaia até minuto de silêncio. Isto vale para os demais estádios. Além disto, o público que vaiou a presidenta não era de eventuais beneficiários de suas políticas sociais Bolsa Família ou Brasil Sorridente, nem os banqueiros e grandes produtores rurais. Se havia quem tivesse razão para aplaudir, estava na tribuna da presidenta, e não nas galerias.

 

Autoridades quando idealizam aplausos podem se decepcionar. O ministro Joaquim Barbosa, depois de ofender o então presidente do STF, foi tomar chope do Bar Luiz, tradicional local de boemia. Saiu de láaplaudido. Parece ter gostado e relatou a Ação Penal 470, de olho na mídia e no sentimento popular.

 

Acabou sob os insultos de um advogado que justamente reclamava que seu recurso fosse julgado com prioridade, como determina o regimento. Quem se conduz pelo desejo de aplauso pode colher diversa manifestação de cordialidade.

 


 

Há razão para a esperança?


“Quando um jovem negro é assassinado na periferia pelas forças do Estado, cabe à mãe chorar e lamentar o injusto epíteto colocado sobre a cova rasa: “Traficante, morto em confronto.” As forças de operação matam, a Polícia Civil qualifica o fato como legítimo, o Ministério Público pede o arquivamento, e o Judiciário sepulta a justiça, arquivando o auto de resistência. A polícia mata na operação, e o aparato jurídico mata a dignidade da vítima com o arquivamento do que deveria ser objeto de apuração”.
 
Quem conhece as instâncias a percorrer até um resultado final de um processo, os atalhos para encerrar uma caminhada processual antecipadamente ou os meandros para postergar um resultado indesejável não tem muito do que se preocupar. Mas a maioria dos cidadãos brasileiros não conhece estes recursos nem tem acesso a eles.
 
Quando um jovem negro é assassinado na periferia pelas forças do Estado, cabe à mãe chorar e lamentar o injusto epíteto colocado sobre a cova rasa: “Traficante, morto em confronto.” As forças de operação matam, a Polícia Civil qualifica o fato como legítimo, o Ministério Público pede o arquivamento, e o Judiciário sepulta a justiça, arquivando o auto de resistência. A polícia mata na operação, e o aparato jurídico mata a dignidade da vítima com o arquivamento do que deveria ser objeto de apuração.
 
Se a vítima não morre, um auto de prisão é lavrado, com grave imputação que será referendada pelas instituições subsequentes. Se o delegado autua um jovem da periferia por formação de quadrilha para o tráfico, ainda que este jamais tenha entrado numa boca de fumo, o Ministério Público certamente o denunciará por este crime, e a Justiça o condenará. A alegação policial, despida de qualquer prova senão as palavras da própria polícia, será suficiente para a condenação. E mais grave, mesmo sem os requisitos específicos para a decretação da prisão preventiva, ela será decretada, ‘para garantia da ordem pública’.
 
A mesma política de referendamento das ‘estórias policiais’ tem sucedido aos manifestantes. Um morador de rua foi condenado a cinco anos de prisão, a pretexto de posse de material para confeccionar coquetel molotov, por portar duas garrafas de plástico contendo água sanitária e detergente com o que desinfetava o local onde dormia. Um militante permaneceu preso por dois meses por associação para a prática de crime. O curioso é que foi preso sozinho. Uma associação dele consigo mesmo.
 
Desde 20 de junho do ano passado, após visita de chefia institucional da polícia a uma delegacia, delegados passaram a homologar as versões dos policiais militares quando da prisão de manifestantes. O que aconteceu naquela visita e a partir dela? A Polícia Civil, ao homologar as arbitrariedades da Policia Militar, demonstra falta de autonomia para conduzir o inquérito policial.
 
Se age em desfavor da sociedade para agradar aos governantes, pode agir da mesma maneira para isentar aqueles que tenham relações não republicanas com os ‘donos do poder’. Foi este tipo de conduta que justificou o pedido de rejeição da PEC 37 e significou um tiro no próprio pé. A ‘pacificação’ das favelas atendeu à especulação imobiliária; a ‘pacificação’ das ruas, aos interesses da Fifa. Ambas com graves violações aos direitos fundamentais e ultraje à Constituição.

 

Bica d’água, dentadura e Copa


“Milhões de reais já foram destinados à distribuição de próteses dentárias aos banguelas. É a velha doação de dentadura sob nova roupagem. Tenho conversado com gente séria que fala da felicidade de quem não ria e agora ri com a boca cheia de dentes. Tal como a bica d’água, a distribuição de dentadura pode fazer sorrir, mas não há de ser considerada um programa de governo. Melhor seria se houvesse saúde pública bucal que evitasse a perda dos dentes.”

 

O ex-governador Chagas Freitas notabilizou-se na política pelas relações pessoais com o eleitorado. Com promessas de emprego, vagas na escola pública e cartinhas para consulta médica, cultivava uma clientela fiel em tempos de eleição. A professora Eli Diniz estudou o fenômeno do Chaguismo e produziu a obra ‘Voto e máquina política: patronagem e clientelismo no Rio de Janeiro’.

 

O clientelismo não se caracteriza apenas pela doação ou assistência, mas pelas trocas ocorridas. O governante dá alguma coisa ao eleitor, mesmo fora do período eleitoral, e se torna credor do voto e da fidelidade política. No clientelismo não há programa de governo, nem cidadania, nem direito de exigir do poder público o que é por ele devido. As demandas se resolvem por relações pessoais pelas quais o eleitor recebe um ‘favor’ e se torna devedor da fidelidade eleitoral. Os direitos são convertidos em dádiva ou moeda de troca.

 

Mas no Chaguismo nem sempre o clientelismo envolvia relação pessoal direta. A mais notável das realizações do período chaguista era a inauguração de bicas d’água nas favelas e periferia. De terno branco, o governador era todo sorriso, e a população agraciada com o líquido era mais sorridente ainda, embora fosse um sorriso sem dentes. Evidente que uma bica d’água num bairro é causa de felicidade, por se poder encher um balde, levá-lo para casa e dar de beber aos filhos e fazer a comida. Mas isto não é cidadania, nem pode ser considerado programa de governo.

 

O Chaguismo tinha dentre outros malefícios a hierarquização das relações políticas de acordo com o poder de barganha. Na ponta, o eleitor-beneficiado; acima dele, o político-benfeitor, mediado pelo cabo eleitoral e, acima de todos, o poder central que liberava as verbas para as benesses. Ainda que de oposição, o

 

Chaguismo era tão vinculado ao governo militar que o senador biônico Amaral Peixoto e seu genro, o hoje ministro da Aviação Civil Moreira Franco, eram considerados da ala autêntica da oposição.

 

Na atualidade, o governo federal lançou o ‘Programa Brasil Sorridente’. Milhões de reais já foram destinados à distribuição de próteses dentárias aos banguelas. É a velha doação de dentadura sob nova roupagem. Tenho conversado com gente séria que fala da felicidade de quem não ria e agora ri com a boca cheia de dentes. Tal como a bica d’água, a distribuição de dentadura pode fazer sorrir, mas não há de ser considerada um programa de governo. Melhor seria se houvesse saúde pública bucal que evitasse a perda dos dentes.

 

Mas, assim como no governo Médici e seu milagre econômico, o que interessa, no momento, é a Copa e o ‘Brasil Sorridente’, graças às dentaduras que o governo distribui. Este é um país que vai pra frente!

 

quarta-feira, 16 de julho de 2014

“A polícia fluminense se converteu na ‘polícia Mãe Dinah’, que investiga o futuro”


Damasceno: No Rio, polícia “Mãe Dinah” antevê crime; equivale a Estado de Sítio

Damasceno: “A polícia fluminense se converteu na ‘polícia Mãe Dinah’, que investiga o futuro”

por Conceição Lemes

Nessa sexta-feira 11, a 27ª Vara Criminal da cidade do Rio de Janeiro expediu 26 mandados de prisão temporária e dois de busca e apreensão de menores de idade.

A maioria foi detida ontem. Acusação: formação de quadrilha armada, com pena prevista de até três anos de reclusão.

Em entrevista coletiva nesse sábado, o chefe de Polícia Civil do Rio de Janeiro, delegado Fernando Veloso, justificou: “Estamos monitorando a ação desse grupo de pessoas desde setembro do ano passado. A prisão delas vai impedir que outros atos de violência ocorram neste domingo”.

Veloso disse que a polícia fluminense tem provas “robustas” e consistentes” de que “essa quadrilha pretendia praticar atos violentos se não hoje, amanhã [domingo]”.

Na mesma coletiva , a delegada Renata Araújo, adjunta da Delegacia de Repressão à Crimes de Informática (DRCI), alegou: “Eles planejavam ataques e se aproveitavam de problemas reais para fazer manifestações onde usavam artefatos para incendiar ônibus, depredar agências bancárias, entre outros”.

“Do ponto de vista substancial, não há como defender a legalidade de tais prisões”, denuncia o juiz João Batista Damasceno, membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD). “Violou-se o direito constitucional de liberdade de manifestação do pensamento e direito de reunião.”

“Na prática, implementaram-se medidas típicas de um Estado de Sítio, sem que ele tivesse sido decretado. Isso é crime de responsabilidade”, alerta. “Num Estado de Direito efetivo, as autoridades envolvidas numa situação como essa seriam chamadas a se explicar e poderiam, eventualmente, ser responsabilizadas.”

“A polícia fluminense se converteu na ‘polícia Mãe Dinah’ que investiga o futuro”, critica Damasceno. “Seria cômico não fosse trágico ao Estado de Direito e não representasse um perigo de volta ao tempo sombrio da ditadura militar, notadamente quando vigente o AI-5, que suprimira o habeas corpus.”

A propósito. Entre as coisas apreendidas pela polícia do Rio de Janeiro na residência dos presos, há máscaras contra gás lacrimogêneo, viseiras, máscaras de carnaval, computadores, livros de capa vermelha e um revólver.

“O revólver foi apreendido na casa de um adolescente que milita politicamente. Só que é do pai do ativista, que tem porte legal de arma. A mídia tradicional tem a informação, mas não publica”, acusa Damasceno.

“A prisão de máscaras de carnaval, bandeiras vermelhas e até livros de literatura — pelo simples fato de terem a capa vermelha — é a prova do retorno da estupidez às práticas policiais dos tempos de ditadura”, vai mais fundo. “Mudou-se o nome, mas a política é a mesma.”

Segue a íntegra da nossa entrevista com João Batista Damasceno, que é juiz no Rio de Janeiro, doutor em Ciência Política e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

Viomundo – Segundo o chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, as prisões seriam para impedir que atos de violência ocorressem neste domingo. A lei permite isso?

João Batista Damasceno – A Constituição dispõe que ninguém será considerado culpado sem que haja sentença condenatória transitada em julgado. Neste momento, estamos vivenciando casos de responsabilização antes que a pessoa cometa o fato tido como criminoso.

Não se trata apenas de prisão temporária, visando à apuração do fato cometido. Nem prisão preventiva, para proteção do processo, ou seja, das testemunhas e garantia da execução penal, caso o acusado seja condenado.

Trata-se de prisão antecipada ao fato, que não se pode afirmar que aconteceria. A militante Elisa [Elisa Quadros, conhecida como Sininho] estava no Rio Grande do Sul e certamente não viria ao Rio de Janeiro para as manifestações de encerramento da Copa.

No Rio de Janeiro, já tivemos um chefe de polícia que se envolveu com o crime organizado internacional, no caso a máfia espanhola, apontada, na época, como responsável pelo tráfico internacional de drogas.

Seria um absurdo defender a prisão do atual chefe de polícia a fim de evitar que pudesse – no futuro – cometer os mesmos crimes que teriam sido cometidos por aquele chefe de polícia no final do século XX.

Perante a lei, o atual chefe de polícia merece a mesma consideração que os demais cidadãos brasileiros. A violação ao direito de uns permite que o direito de outros também seja violado, inclusive do próprio chefe de polícia.

Mas é preciso lembrar que tais prisões foram decretadas pelo poder Judiciário, que tem funcionado como auxiliar da polícia e do governo na violação aos direitos dos cidadãos. Assim, não se espera que funcione como órgão garantidor dos direitos.

Viomundo – Essas prisões são ilegais então?

João Batista Damasceno – Elas foram efetuadas a pedido da polícia, mas por decretação do Judiciário.

Do ponto de vista formal, a polícia fez o que o Judiciário autorizou. Claro que na execução da medida no Rio Grande do Sul os policiais fluminenses não poderiam ter atuado. Eles agiram fora do limite territorial do Estado do Rio de Janeiro. Atuaram com excesso de poder.

O delegado encarregado da diligência gravou vídeo da prisão da militante no Rio Grande do Sul, expondo indevidamente sua imagem, e disse estar em auxílio à polícia gaúcha. Mas vendo o vídeo percebe-se que toda a diligência foi efetuada pela polícia fluminense.

Trata-se de uma polícia, que, desde a condecoração dos homens do Esquadrão da Morte nos anos 60 pelo governado Carlos Lacerda, atua à margem da lei.

Do ponto de vista substancial, não há como defender a legalidade de tais prisões.

Em entrevista, o chefe de polícia do Rio de Janeiro disse que tais militantes vinham sendo monitorados desde setembro de 2013 e que as prisões evitariam que participassem de manifestações neste domingo, final da Copa.

Porém, violou-se o direito constitucional de liberdade de manifestação do pensamento e direito de reunião.

Na prática, implementaram-se medidas típicas de um Estado de Sítio, sem que ele tivesse sido decretado. Isso é crime de responsabilidade. Num Estado de Direito efetivo, as autoridades envolvidas numa situação como essa seriam chamadas a se explicar e poderiam, eventualmente, ser responsabilizadas.

Viomundo – A Justiça determinou a prisão temporária. Por quê?

João Batista Damasceno — A prisão temporária, de discutível constitucionalidade, visa restringir a liberdade de uma pessoa a fim de coletar prova de crime que se tenha cometido.

A prisão temporária é uma prisão para preservar as provas, após a ocorrência de um crime. Trata-se de medida emergencial, por isso se afasta o suposto criminoso da cena do crime para a produção probatória necessária à sua acusação.

No caso presente, os militantes estavam sendo monitorados desde setembro de 2013. Não havia prova a ser coletada emergencialmente.

Fica cada vez mais evidente o reforço do Estado Policial, com exercício arbitrário do poder da polícia. Voltamos ao Brasil da Primeira República, quando a política se fazia com a polícia à frente. O estopim para a Revolução de 30 foi uma ação policial na casa da namorada de João Dantas, adversário do candidato a vice-presidente de Getúlio Vargas, João Pessoa.


Viomundon — A polícia do Rio apresentou várias coisas que teriam sido apreendidas nas residências presos. Pelas fotos publicadas na mídia, dá pra ver máscaras contra gás lacrimogêneo, viseiras, um revólver…

João Batista Damasceno — O revólver foi apreendido na casa de um adolescente que milita politicamente. Só que o revólver é do pai desse ativista político, que tem porte legal de arma. A mídia tradicional tem a informação, mas não publica, legitimando a atuação da polícia.

A polícia tratou o adolescente como se ele fosse o dono da casa. E diante da demonstração de que seu pai era o detentor de porte legal de arma, lavrou-se um registro de omissão de cautela. É uma forma de justificar a apreensão de uma arma que não poderia ser apreendida.

A polícia buscou dar um aparato legal à apreensão, sob o fundamento de que aquele que tem a posse legal da arma, não a guardou adequadamente, tornando-a passível de apreensão. Mas isto não foi levado ao conhecimento da sociedade.

Viomundo – Pesa o fato de estarmos em ano eleitoral?

João Batista Damasceno — Com certeza, e a polícia quer mostrar eficiência na intimidação de opositores das políticas públicas lesivas aos interesses do povo.

Curiosamente, essa mesma polícia que prendeu os jovens militantes não se moveu diante do que não foi apurado na CPI do Cachoeira. Tampouco diante do furto das vigas do elevado da Perimetral, no Rio de Janeiro. Eram vigas com cerca 20 toneladas! Essa mesma polícia não foi capaz de esclarecer a autoria do furto, apesar de do grande volume e notável valor econômico.

Igualmente não foram esclarecidos pela Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática (DRCI) os crimes cometidos por policiais. E a DRCI é que está atuando contra os militantes presos.

Viomundo – Explique melhor isso.

João Batista Damasceno — Computadores de juízes fluminenses foram invadidos e hackeados e o fato somente se comprovou porque o Ministério Público o esclareceu. A delegada titular de então direcionou a investigação para as vítimas.

No ano passado, crimes contra um magistrado, praticados por policiais pela internet, igualmente terminaram sem qualquer apuração. De nada adiantou a reunião do delegado titular da DRCI no gabinete da então chefe de polícia, Martha Rocha. Nada se apurou. As investigações são seletivas.

Desde a morte do jornalista Tim Lopes formou-se uma perversa aliança da mídia com a polícia. Já não se denunciam as arbitrariedades policiais como se fazia antes. O fato se agravou com a morte do cinegrafista Santiago de Andrade durante uma manifestação recente.

Não se registrou a morte do Santiago como uma fatalidade; nem que ele trabalhava sem os equipamentos de proteção que lhe deveriam ser fornecidos pela empresa de comunicação que o empregava.

A morte dele foi consequência da irresponsabilidade de militantes, que não desejavam sua morte, mas também da culpa grave do empregador que não lhe forneceu os meios adequados para proteção na cobertura de uma manifestação que se sabia poderia resultar confronto ou conflito, como ocorre no restante do mundo.

A polícia fluminense se converteu na ‘polícia Mãe Dinah’, que investiga o futuro. Seria cômico não fosse trágico ao Estado de Direito e não representasse um perigo de volta ao tempo sombrio da ditadura militar, notadamente quando vigente o AI-5, que suprimira o habeas corpus.

A prisão de máscaras de carnaval, bandeiras vermelhas e até livros de literatura — pelo simples fato de terem a capa vermelha — é a prova do retorno da estupidez às práticas policiais. Durante a ditadura, a mesma polícia, fazia apreensão de livros pela cor da capa. Naquela época, não era a Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática, mas o DOPS, Departamento de Ordem Política e Social. Mudou-se o nome, mas a política é a mesma.

Viomundo – O que representam essas prisões?

João Batista Damasceno – O apogeu da escalada do Estado Policial. Mas não é coisa que tenha sido formatada apenas pelo atual chefe de polícia. É parte de uma política federal de repressão aos movimentos sociais. A atuação tem sido similar em outros Estados. No Rio de Janeiro e em São Paulo ocorre maior repercussão. Mas esse tipo de atuação se intensificou após reunião dos secretários de Segurança dos estados no Ministério da Justiça.

É óbvio que nem tudo é coisa do governo federal; apenas a matriz. As polícias e o próprio Judiciário funcionam nesses episódios como forças auxiliares. O próprio chefe de polícia desempenha papel deste quilate.

O povo, para certo de tipo de político, só é bonito visto do palanque, para onde vai aplaudir o candidato. Assim, pensava Benedito Valadares, velho político mineiro, que cunhou tal frase.

Anastácio Somoza, ditador nicaraguense derrubado pela Revolução Sandinista em 1979, dividia o povo em três segmentos: os amigos, a quem dava ouro; os indiferentes, a quem dava prata e os inimigos, a quem destinava chumbo.

As atuais políticas públicas têm o mesmo viés. Mas quem ficou com o ouro foi a FIFA. Aos que não se domesticaram para receber a prata restaram demolições de casas, remoções de suas comunidades, repressão brutal e prisões.

 

Publicado originariamente em 13 de julho de 2014 às 19:59,  no site http://www.viomundo.com.br/denuncias/juiz-damasceno.html