sábado, 25 de abril de 2020

Arminha, fake News e escolhas emocionais


Uma das armadilhas do comércio e da propaganda está em fisgar o consumidor pela emoção. Embora nos entendamos racionais, as emoções influenciam nossas escolhas mais que imaginamos. Durante a evolução humana as emoções vieram primeiro e permaneceram conosco. As sensações, não raro, falam mais alto que o raciocínio. Para decidir com menos esforço, nossa mente faz “atalhos”, reportando-se a experiências passadas. Por vezes decidimos, emocionalmente, sob o impulso do que nos remeteu a uma lembrança prazerosa ou para fugir de uma sensação desagradável.
Pesquisas qualitativas servem para orientar marqueteiros e induzir consumidores a escolhas emocionais e imediatas, sem reflexão. Para evitar os abusos, as agências de publicidade, os anunciantes e os veículos de comunicação constituíram o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR) e os associados respeitam suas decisões. O Código de Defesa do Consumidor proíbe propaganda enganosa e impõe que a publicidade integre o negócio. Propaganda é cláusula do contrato em favor do consumidor.
As escolhas dos consumidores podem ser emocionais, assim como as escolhas políticas. Quem faz escolha racional facilmente se corrige quando erra. Diversamente é quem faz escolha emocional. Contra a escolha emocional não há como argumentar racionalmente. Daí a dificuldade de convencer uma pessoa que fez escolha emocional, de que atuou contra o seu interesse individual, da sua coletividade ou da classe a que pertença.
Em outubro de 2005 o Brasil realizou um referendo sobre a proibição da comercialização de armas de fogo e munições. A sociedade brasileira não aprovou o artigo do Estatuto do Desarmamento que proibida a comercialização de arma de fogo. O dispositivo legal foi rejeitado por 59 milhões de eleitores (63,94%) enquanto foi aprovado por apenas 33 milhões (36,06%). Foi uma votação com um dos menores índices de votos brancos (1,39%) e nulos (1,68%) da história recente da República. Ao contrário do que aconteceu no plebiscito de 1993, não foi possível votar fora de domicílio eleitoral e os brasileiros que viviam no exterior não puderam participar, pois não houve votação nas representações diplomáticas brasileiras.
O noticiário do mundo cão, a propaganda de que a defesa pessoal é possível a todos independentemente de preparo, a difusão da cultura do medo e outras medidas que fundamentaram as escolhas levaram a sociedade àquela decisão. A sociedade brasileira votou contra o dispositivo do Estado do Desarmamento, mas as forças políticas e as instituições ignoraram o resultado. O Estado atuou em sentido contrário à vontade popular e manteve a criminalização da conduta vencedora no referendo. Pouca gente percebeu, com o resultado do referendo, a característica violenta da sociedade brasileira, forjada com o genocídio dos povos originários e escravização dos africanos. Em outras questões a opinião e os interesses das camadas populares foram negligenciados e disto decorreu a insatisfação que as tornaram presas fáceis do fascismo em ascensão, concepção política que atua com a insatisfação popular e escolhas emocionais, onde é difícil o convencimento com a racionalidade.
Em momento no qual um vírus nos coloca a todos em quarentena, não nos questionamos o que foram os vírus trazidos da Europa na época da colonização e que exterminaram parte da população originária. Sem exercício da razão, há os que negam o perigo, apesar do crescente número de mortos pelo mundo. O grupo que governa o Brasil é apenas o subproduto da cultura da classe dominante brasileira, sequioso apenas por lucro. A difusão de fake News e a desqualificação da informação de qualidade são apenas meios de dificultar a reflexão


sábado, 11 de abril de 2020

Coronavírus e efeito manada

Fato social é um conceito sociológico que diz respeito às maneiras de agir dos indivíduos de um determinado grupo e da humanidade em geral. Os fatos sociais moldam a maneira de agir das pessoas pela influência que exercem sobre elas. São conjuntos de hábitos sociais que influenciam os comportamentos individuais. Os fatos sociais são hábitos sedimentados no seio das sociedades. Diferem do efeito manada ou comportamento de rebanho, que igualmente tem sido objeto de estudos para compreender o porquê de determinados comportamentos humanos.
Efeito manada é a tendência humana de repetir ações de pessoas influentes, por se acreditar no caminho indicado pelo líder. O nome é dado graças à semelhança com o que ocorre no reino animal, especialmente com espécies que vivem em comunidades. O efeito manada ocorre quando todos os integrantes de um grupo partem numa mesma direção, seguindo os indivíduos considerados mais fortes. Em muitos casos, este comportamento é motivado pela necessidade de proteção, porque, juntos, estes animais têm mais chances de sobreviver ao ataque de um predador. Mas, quando ocorre com os humanos, os efeitos podem não ser tão positivos.
Diversamente do efeito manada, o comportamento de manada é um termo usado para descrever situações em que indivíduos em grupo reagem todos da mesma forma, embora não exista direção planejada. Igualmente o termo designa comportamento animal. Por analogia também se aplica ao comportamento humano, em contexto de desinformação e incertezas.
Em tempo de difusão de um vírus estranho aos nossos organismos, as incertezas, a desinformação e a politização de assunto técnico têm propiciado comportamentos estranhos de indivíduos que se acreditam racionais. Assim, tem sido o tratamento a ser dado diante da difusão do coronavírus. A informação e a racionalidade são os melhores meios de evitar os efeitos danosos da pandemia.
Quando da pandemia de Gripe Espanhola em 1918, que matou o presidente Rodrigues Alves, igualmente as opções médicas se misturaram com as opções políticas. A 1ª Guerra Mundial durou de 1914 a 1918 e matou 8 milhões de pessoas. A Espanha não esteve na guerra e a imprensa pode divulgar a pandemia. Daí o mundo acreditou que o vírus era espanhol. Mas, foi levado para a Europa por soldados estadunidenses. Nos países em guerra a imprensa foi censurada e proibida de falar do vírus, o que também foi sugerido no Brasil. A falta de informação ajudou a difusão daquela pandemia e propiciou a morte de 20 milhões de pessoas, em três meses!
Diante de uma situação como a que vivemos as opções políticas são: promover isolamento social e cuidar para que o menor número de pessoas se infecte ou deixar que todos se infectem, para que apenas os mais fortes sobrevivam e, com o vírus atenuado, imunizem os demais. Esta última opção é a chamada imunidade coletiva. Seu oposto é o isolamento social. As duas opções políticas têm seus efeitos, seja na ordem econômica ou no grau de letalidade.
Mas, o tratamento a ser ministrado aos doentes não é opção política. Somente os médicos podem indicar o que deve ser feito. O serviço prestado por um médico não é atividade de resultado, mas de meio. O melhor tratamento pode não resultar no efeito desejado. Mas, o melhor ao alcance do médico tem que ser ministrado. Dos médicos se exige que diagnostiquem o mal e lhe dê o tratamento mais adequado. Cloroquina pode ajudar? Talvez. Não há estudo comprovando o efeito. Mas, em alguns casos pode ser prejudicial. Cabe ao médico decidir. Neste momento, até reza pode ajudar um doente que acredite, aumentando sua autoestima e imunidade. Mas, a técnica médica há de ser fundada na ciência e, fora dela, os efeitos danosos podem resultar em responsabilidade por erro médico.


quarta-feira, 1 de abril de 2020

Aquele 1º de Abril, de Ivan Cavalcanti Proença


Naquele 1º de abril de 64, no cassino dos oficiais do tradicional Regimento “Dragões da Independência”, antes do almoço, recebo, de meu ordenança, o recado. O subcomandante, coronel Carnaúba, queria falar-me, urgente, no saguão do Corpo-da-guarda. Estávamos de prontidão, armados e eu, com o uniforme usual de um capitão de Cavalaria, botas e esporas, pronto para uma ação qualquer sem saber o que viria, ou se nada aconteceria como em tantos outros alertas. O sub-comandante confessou não saber quais oficiais seriam confiáveis na defesa da legalidade, pois foram ostensivas as visitas de oficiais do Estado Maior para aliciar os do Regimento. Cabe reiterar: não lhes era permitido entrar no quartel, mas alguns de nossos oficiais iam à calçada externa dialogar com os conspiradores.
Disse-me o coronel:
- Os golpistas estão muito ativos, vá ao Palácio Laranjeiras, veja o que ocorre e volte ao Ministério do Exército e, se necessário, assuma o comando das nossas Guardas e me comunique o que está acontecendo.
Mandei vir o jipe e – o óbvio – metralhadoras, capacete de aço, etc. Acompanhado de dois sargentos (por nós escolhidos), nos dirigimos ao Palácio. Tivemos a informação (verdadeira ou não) de que ali já não se encontravam o Gal. Assis Brasil ou o Cap. Eduardo Chuahy, e que o Presidente, de fato, deixara o local e viajara para Brasília. As versões eram confusas: o Presidente está em local seguro para resistir ao golpe, ou (o oposto) resolveu deixar o Governo. Cabe lembrar que o armamento pesado da tropa nas redondezas do Palácio era suficiente para inibir as manifestações que, àquela altura, ocorriam ali perto no Palácio Guanabara, onde Carlos Lacerda, acompanhado de golpistas civis e militares à paisana, armados todos, já alardeavam e brindavam vitória – foi o que soubemos, contado por um também perplexo tenente, que de lá chegara há pouco.
Voltei, urgente, ao Ministério do Exército, onde encontrei um clima no mínimo estranho; nenhum oficial superior (esclarecendo: de major para cima) – vários deles estavam reunidos no 2o andar – sabia informar (ou ainda não desejava fazê-lo) o destino do Presidente e ou o rumo dos acontecimentos. Olhavam-me (e bem me conheciam): eu, um capitão dos “Dragões”, tropa lá embaixo, em contacto com o Quartel. Não sabiam os conspiradores o que dizer-me, não se atreviam a dar ordens. Talvez nem soubessem, ainda, se estava ou não consumado o golpe. Sussurravam, usavam o telefone. Mas ali, entre generais e coronéis, não se encontravam o Ministro da Guerra (general Jair Dantas Ribeiro, meu ex-comandante no Colégio Militar), os comandantes de Região Militar ou de Exército.
Nenhuma grande autoridade à vista. Muito menos os generais fiéis ao governo. Entro, então, em contacto com meu Regimento, e relato ao coronel Carnaúba o que ocorria, inclusive a sensação, “no ar”, de que aqueles oficiais superiores no Ministério estavam ali para tentar bloquear resistências, inclusive do nosso Regimento, para consolidar o golpe e dar as novas diretrizes. Mas eu, no local, de certa forma perturbava, embora naquele momento me sentisse rigorosamente só. Onde todos, afinal? Até aí, apenas uma sensação. Os fatores constrangimento e a conveniente posição “em cima do muro” – além das dissimulações – hoje bem o sei, influíam também nas indefinições dos oficiais naquele momento ainda de expectativas.
Destino e Livre Arbítrio
Foi quando, bastante preocupados, dois sargentos também de meu Regimento, que foram verificar a nossa guarnição da Casa da Moeda, ali na lateral do Campo de Santana (ao lado do Largo do CACO, mas tudo é Praça da República), pedem-me para ouvi-los. Tinham um comunicado urgente e reservado. Fomos para um corredor, onde, muito tensos, me relatam que, no Largo do CACO (portanto, entre a Casa da Moeda e o Pronto-Socorro Sousa Aguiar), milícias, grupamentos, o que fossem, armados, e com várias viaturas, tinham cercado estudantes, centenas de pessoas (do povo, alguns a caminho da Central do Brasil), que assistiam a espécie de comício dos estudantes do CACO (da Faculdade Nacional de Direito) e da UNE, que, da sacada do prédio da instituição, conclamavam o povo a reagir ao golpe, inclusive com palavras de ordem como “Exército é povo”, “queremos armas”, etc. Os grupos repressores teriam atirado no povo para dispersá-los (o que foi confirmado, a seguir). O povo fugia para o Campo de Santana. Os estudantes se refugiavam na Faculdade. Os repressores apontavam-lhes as armas e ameaçavam jogar granadas de gás lacrimogêneo através das vidraças e janelas do prédio (e o fizeram mesmo) para obrigar os jovens a sair. Segundo o informe, tais grupamentos passaram a apontar suas armas (revólveres e metralhadoras) para a porta da Faculdade, à espera da saída dos estudantes. Enquanto isso, a guarnição do Exército, à frente da Casa da Moeda, baionetas caladas, se limitava a não permitir que o povo se aproximasse dali. Uma confusão geral. Ninguém sabia quem era o quê, nem o que fazer. Enfim e resumindo: quando surgiram os tais Grupamentos de repressão violenta, aos estudantes restou tentar abrigar-se na sede, e ao povo proteger-se atrás das árvores do Campo. Um parêntese: anos mais tarde, ao encontrar (eu aluno, ela professora na UERJ) Lília Lobo – membro hoje do “Grupo Tortura Nunca Mais” – esta me expõe: estava ali no largo e, com o tiroteio, ao invés de correr para o interior da Faculdade, conseguiu escapar para o Campo de Santana. E viu quando cheguei para intervir, antes de escapar do conflito.
Retomando: um graduado nos garantiu que os repressores atiraram para o alto, a seguir na direção do povo, havendo feridos, levados ao Pronto-Socorro. Admito que aquilo ali acontecendo, ao lado do “meu” Ministério, de nossas guardas, foi uma enorme surpresa, antes do mais. Afinal, essa gente do golpe já estava tranquilamente na ofensiva. E nossa intervenção ou, pelo menos, resistência? Onde? Testemunhei, a seguir, boa parte daquele quadro de quase-massacre: correrias, estampidos, gritos. Soube que se tratava de grupos paramilitares (em suas viaturas), órgãos de repressão, inclusive do DOPS (cuja participação, no caso, nunca foi possível confirmar), grupos de ação anticomunistas, etc, cuja audácia chegara ao ponto de encurralar e tentar exterminar centenas de jovens universitários (cerca de 400) que se opunham, apenas em discursos e manifestações, ao golpe.
Imaginem o que se passou na cabeça de um também jovem capitão de Regimento de Guarda, legalista, tropa de elite – em constante contacto com a Presidência da República – diante daquelas cenas tão próximas do “seu” Ministério do Exército. Que certamente deveria manter a tal Ordem constituída, a legalidade. Manteria? Ali, ampliavam-se as dúvidas.
De qualquer modo, resolvi intervir mesmo, desse no que desse. Eram jovens indefesos, alguns nem tão mais moços que eu, inconformados com o rumo de tudo. Foi assim que – acompanhado de uns poucos subordinados, com metralhadoras, mas sabendo ainda que ali, na área do conflito, junto à Casa da Moeda, dispúnhamos de CAC (canhões anti-carro) e Carros de Combate (o popular tanque) – cheguei de jipe ao local, com a máxima presteza.
Só não sabia que, naquele instante, com aquela atitude, começava a mudar radicalmente minha vida, em todos os sentidos. Das 13 horas daquele dia 1o até as 18 horas, tudo aconteceu com uma rapidez incrível e surpreendente. Destino? Fatalismo? Meu livre arbítrio, de qualquer modo, entraria em ação. Até porque, mesmo se não houvesse tal episódio, certamente continuaria a manifestar-me contra o golpe – como já demonstrara em algumas ocasiões – e sofreria alguma forma de punição: transferência, repreensão ou detenção. Mas cassação, cabe revelar, não entrara nunca em cogitações, nas minhas, nem de companheiros legalistas. Mais tarde, soube que, se não aderisse após o golpe, seria cassado. Claro que não aderi.
Ao tomar conhecimento de minha história, amigos militares ou civis logo associam àquela coisa de “hora e lugar certos ou errados”, meio que se rendendo a certas leituras de destinação. Bobagem. As coisas são assim mesmo e, em não poucas ocasiões, caberá sempre livre arbítrio: tem que prevalecer sim. Por outro lado, isso de alguns civis e militares, médicos-legistas, torturadores, jornalistas etc, alegarem que cumpriam ordens (da Ditadura) ou exerciam sua profissão, é um álibi-balela. Cumprir ordem, ou limitar-se ao exercício da profissão, é espécie de destinação, fatalismo, que a vida impõe? Não é não. Livre-arbítrio, sempre uma boa companhia. Isto sim.
O conflito. Massacre frustrado
Àquela altura, a tarde já nublava, chove-não-chove. A seguir, chuva fina.
Chegando urgente ao local do conflito (aquele Largo do CACO), ainda vi algumas pessoas feridas sendo retiradas dali com a ajuda de outros populares. No prédio da Faculdade, vidros e ou janelas quebradas e portão aberto (quem iria fechá-lo sob pontaria?) – por essas aberturas haviam jogado as bombas de gás lacrimogêneo. O saguão de entrada estava todo enfumaçado. Vez por outra, um estudante colocava a cabeça na janela e pedia socorro. Avaliei o poder de fogo das ditas paramilitares, forças repressoras, com viaturas frágeis, kombis, apenas revólveres e velhas metralhadoras.
Mandei um dos subordinados (fardado, claro) advertir que se retirassem da área que estava sob nosso comando militar. De início, não recuaram nem se retiraram. A seguir, alguns deles foram deixando o local, outros permaneceram. Nós, em frente, à distância de uns 50 metros, tínhamos – como lembrei antes – razoável poder de fogo. Só após rigorosa ação, mais de advertência, é que, rápido, se retiraram e, segundo informaram-me, se refugiaram no pátio do Pronto-Socorro ali perto. Não é fato, como se afirma, que chegamos já atirando naquele inimigo. E contam – o que é a versão dos fatos... – façanhas que jamais pratiquei no episódio. O fato é que, isto sim, apontamos na direção deles, as variadas armas de que dispúnhamos no local.
Entrei no prédio, mandando que abrissem todas as janelas e portas, inclusive nos fundos – fumaceira insuportável do gás. Tínhamos as máscaras, mas não foi necessário colocá-las. Havia estudantes já sufocando, na escadaria e no chão. Dr. Walter Oaquim, hoje bastante conhecido, ex-Secretário de Estado, Advogado, Diretor do Flamengo, contou-me que já se preparava para pular do 2o andar dos fundos para o pátio da Rádio MEC, quando cheguei. No banheiro encontravam-se, acuadas, as hoje professoras Maria Helena e Cecília Coimbra. Muitos desses então jovens – hoje encontrando-se comigo – confessam que, quando me viram chegar e postar-me à frente da tropa, logo imaginaram: agora mesmo é que vamos ser executados. E se surpreenderam com o enfrentamento, a fuga dos grupos inimigos (!) e nossa ocupação do prédio.
Aplaudiram-me no salão do 2o andar, menos pelo que fiz e mais por alívio, mas cortei logo as euforias, comunicando que achava estar consumado o golpe, e que iria garantir-lhes a retirada tranquila, de dez em dez, ora pela Rua Moncorvo Filho, ora pelo Campo de Santana, evitando provável nova investida contra eles, preservando-lhes a retirada. Assim fiz por quase uma hora. Meus subordinados os acompanhavam por uns vinte, trinta metros. E, aos poucos, de dez em dez, os estudantes, pelas duas saídas, foram deslocando-se para suas casas, ilesos.
Hoje aí estão emprestando rumo digno às suas vidas. Este, o melhor aspecto de tudo. A seguir, os leitores conhecerão os nomes (não todos, é claro) de alguns daqueles jovens, estudantes da Faculdade de Direito (CACO) e da UNE. Hoje, reitero, são figuras notáveis no cenário brasileiro. Nas homenagens que os estudantes do CACO me vêm prestando todo ano – inclusive nomearam-me generosamente Presidente Perpétuo do CACO, sala e placa alusivas –, sempre lembro que não houve gesto heróico algum. O que deve ser registrado, por importante, é o fato de o Brasil contar com eles hoje, ainda nas lutas por uma sociedade melhor e mais justa. Provou-se que aquilo não era coisa de juventude rebelde (?), de jovens imaturos. Bendita juventude, aliás, aquela.
Eis os nomes de alguns desses jovens – hoje cinquentões ou sessentões – que ali estavam no CACO e com os quais (a maioria) sempre mantemos contacto, principalmente os do Grupo Tortura Nunca Mais: Professora e Psicóloga Cecília Coimbra, Presidente do Grupo Tortura Nunca Mais.
Professora Flora Abreu, diretora do Grupo Tortura Nunca Mais. Professora Victória Grabois, diretora do Grupo Tortura Nunca Mais. Professora Maria Helena, diretora do Grupo Tortura Nunca Mais. Dr. Walter Oaquim, Secretário do Governo Estadual e vice-presidente do Flamengo F.C. Dr. Brandão Monteiro, Secretário do Governo Estadual. Dr. Celso Soares, advogado. Dr. Oscar Araújo, escritor. Professores César Guilmar, Victor Giudice e Rodolfo Motta Lima. Sr. José Rocha, produtor teatral. Sr. Acir H. da Costa, Funarte. Dr. Moisés Azhenblat, diretor do Teatro Casa Grande. Professor Luís Fernando de Carvalho, assessor do Governo Estadual. Dr. Alexandre Addor, Diplomata. Sr. Francisco das Chagas Monteiro, o Frank, ator e produtor de teatro, o Chiquinho do CPC.
A sucinta listagem acima foi feita por ocasião da pesquisa/entrevista de alunos de Comunicação da FACHA. Já se passaram muitos anos. Alguns dos citados já morreram, a maioria ocupa outros cargos ou segue outros projetos e ou se aposentou. Permanece o espírito de todos, sem esmorecimento, na certeza de que, jovens, já vislumbraram que era preciso desempenhar um papel digno, espécie de missão, profissão-de-fé, ao longo de sua existência. Muito distante, assim, daquela pregação reacionária, conveniente e preconceituosa, em torno de que “os jovens são assim mesmo”, “isso passa, vão se aburguesar logo”. “Coisa de juventude rebelde”. Esse rebelde é muito injusto, intuindo um inconformismo da idade, “fogo de palha”. Não foi não. O único mérito de minha ação reside no fato de poder constatar: aquela era, e é, uma brava gente brasileira.
Encerrado o episódio e tendo eu garantido a retirada dos estudantes do local, ao regressar ao Ministério do Exército naquela tarde do dia 1o de abril, imediatamente fui preso e enviado, por lancha, para a primeira prisão (Fortaleza de Santa Cruz) e, a seguir, para a prisão do Forte Imbuí, onde fiquei isolado. E a cassação não tardou. Ali iniciavam os 20 anos de repressões e perseguições.


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Este texto encontra-se na página 90 do livro "68 a geração que queria mudar o mundo relatos”, organizado e editado por Eliete Ferrer e publicado no Projeto Marcas de Memória, da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça em 2011, na Presidência de Paulo Abrão.
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