Naquele 1º
de abril de 64, no cassino dos oficiais do tradicional Regimento “Dragões da
Independência”, antes do almoço, recebo, de meu ordenança, o recado. O
subcomandante, coronel Carnaúba, queria falar-me, urgente, no saguão do
Corpo-da-guarda. Estávamos de prontidão, armados e eu, com o uniforme usual de
um capitão de Cavalaria, botas e esporas, pronto para uma ação qualquer sem
saber o que viria, ou se nada aconteceria como em tantos outros alertas. O
sub-comandante confessou não saber quais oficiais seriam confiáveis na defesa
da legalidade, pois foram ostensivas as visitas de oficiais do Estado Maior
para aliciar os do Regimento. Cabe reiterar: não lhes era permitido entrar no quartel,
mas alguns de nossos oficiais iam à calçada externa dialogar com os
conspiradores.
Disse-me o
coronel:
- Os
golpistas estão muito ativos, vá ao Palácio Laranjeiras, veja o que ocorre e
volte ao Ministério do Exército e, se necessário, assuma o comando das nossas
Guardas e me comunique o que está acontecendo.
Mandei vir
o jipe e – o óbvio – metralhadoras, capacete de aço, etc. Acompanhado de dois
sargentos (por nós escolhidos), nos dirigimos ao Palácio. Tivemos a informação
(verdadeira ou não) de que ali já não se encontravam o Gal. Assis Brasil ou o
Cap. Eduardo Chuahy, e que o Presidente, de fato, deixara o local e viajara
para Brasília. As versões eram confusas: o Presidente está em local seguro para
resistir ao golpe, ou (o oposto) resolveu deixar o Governo. Cabe lembrar que o
armamento pesado da tropa nas redondezas do Palácio era suficiente para inibir
as manifestações que, àquela altura, ocorriam ali perto no Palácio Guanabara,
onde Carlos Lacerda, acompanhado de golpistas civis e militares à paisana,
armados todos, já alardeavam e brindavam vitória – foi o que soubemos, contado
por um também perplexo tenente, que de lá chegara há pouco.
Voltei,
urgente, ao Ministério do Exército, onde encontrei um clima no mínimo estranho;
nenhum oficial superior (esclarecendo: de major para cima) – vários deles
estavam reunidos no 2o andar – sabia informar (ou ainda não desejava fazê-lo) o
destino do Presidente e ou o rumo dos acontecimentos. Olhavam-me (e bem me
conheciam): eu, um capitão dos “Dragões”, tropa lá embaixo, em contacto com o
Quartel. Não sabiam os conspiradores o que dizer-me, não se atreviam a dar
ordens. Talvez nem soubessem, ainda, se estava ou não consumado o golpe.
Sussurravam, usavam o telefone. Mas ali, entre generais e coronéis, não se
encontravam o Ministro da Guerra (general Jair Dantas Ribeiro, meu
ex-comandante no Colégio Militar), os comandantes de Região Militar ou de
Exército.
Nenhuma
grande autoridade à vista. Muito menos os generais fiéis ao governo. Entro,
então, em contacto com meu Regimento, e relato ao coronel Carnaúba o que
ocorria, inclusive a sensação, “no ar”, de que aqueles oficiais superiores no
Ministério estavam ali para tentar bloquear resistências, inclusive do nosso
Regimento, para consolidar o golpe e dar as novas diretrizes. Mas eu, no local,
de certa forma perturbava, embora naquele momento me sentisse rigorosamente só.
Onde todos, afinal? Até aí, apenas uma sensação. Os fatores constrangimento e a
conveniente posição “em cima do muro” – além das dissimulações – hoje bem o
sei, influíam também nas indefinições dos oficiais naquele momento ainda de
expectativas.
Destino e Livre Arbítrio
Foi
quando, bastante preocupados, dois sargentos também de meu Regimento, que foram
verificar a nossa guarnição da Casa da Moeda, ali na lateral do Campo de
Santana (ao lado do Largo do CACO, mas tudo é Praça da República), pedem-me
para ouvi-los. Tinham um comunicado urgente e reservado. Fomos para um
corredor, onde, muito tensos, me relatam que, no Largo do CACO (portanto, entre
a Casa da Moeda e o Pronto-Socorro Sousa Aguiar), milícias, grupamentos, o que
fossem, armados, e com várias viaturas, tinham cercado estudantes, centenas de
pessoas (do povo, alguns a caminho da Central do Brasil), que assistiam a
espécie de comício dos estudantes do CACO (da Faculdade Nacional de Direito) e
da UNE, que, da sacada do prédio da instituição, conclamavam o povo a reagir ao
golpe, inclusive com palavras de ordem como “Exército é povo”, “queremos
armas”, etc. Os grupos repressores teriam atirado no povo para dispersá-los (o
que foi confirmado, a seguir). O povo fugia para o Campo de Santana. Os
estudantes se refugiavam na Faculdade. Os repressores apontavam-lhes as armas e
ameaçavam jogar granadas de gás lacrimogêneo através das vidraças e janelas do
prédio (e o fizeram mesmo) para obrigar os jovens a sair. Segundo o informe,
tais grupamentos passaram a apontar suas armas (revólveres e metralhadoras)
para a porta da Faculdade, à espera da saída dos estudantes. Enquanto isso, a
guarnição do Exército, à frente da Casa da Moeda, baionetas caladas, se
limitava a não permitir que o povo se aproximasse dali. Uma confusão geral.
Ninguém sabia quem era o quê, nem o que fazer. Enfim e resumindo: quando
surgiram os tais Grupamentos de repressão violenta, aos estudantes restou
tentar abrigar-se na sede, e ao povo proteger-se atrás das árvores do Campo. Um
parêntese: anos mais tarde, ao encontrar (eu aluno, ela professora na UERJ)
Lília Lobo – membro hoje do “Grupo Tortura Nunca Mais” – esta me expõe: estava
ali no largo e, com o tiroteio, ao invés de correr para o interior da
Faculdade, conseguiu escapar para o Campo de Santana. E viu quando cheguei para
intervir, antes de escapar do conflito.
Retomando:
um graduado nos garantiu que os repressores atiraram para o alto, a seguir na
direção do povo, havendo feridos, levados ao Pronto-Socorro. Admito que aquilo
ali acontecendo, ao lado do “meu” Ministério, de nossas guardas, foi uma enorme
surpresa, antes do mais. Afinal, essa gente do golpe já estava tranquilamente
na ofensiva. E nossa intervenção ou, pelo menos, resistência? Onde?
Testemunhei, a seguir, boa parte daquele quadro de quase-massacre: correrias, estampidos,
gritos. Soube que se tratava de grupos paramilitares (em suas viaturas), órgãos
de repressão, inclusive do DOPS (cuja participação, no caso, nunca foi possível
confirmar), grupos de ação anticomunistas, etc, cuja audácia chegara ao ponto
de encurralar e tentar exterminar centenas de jovens universitários (cerca de
400) que se opunham, apenas em discursos e manifestações, ao golpe.
Imaginem o
que se passou na cabeça de um também jovem capitão de Regimento de Guarda,
legalista, tropa de elite – em constante contacto com a Presidência da
República – diante daquelas cenas tão próximas do “seu” Ministério do Exército.
Que certamente deveria manter a tal Ordem constituída, a legalidade. Manteria?
Ali, ampliavam-se as dúvidas.
De
qualquer modo, resolvi intervir mesmo, desse no que desse. Eram jovens
indefesos, alguns nem tão mais moços que eu, inconformados com o rumo de tudo.
Foi assim que – acompanhado de uns poucos subordinados, com metralhadoras, mas
sabendo ainda que ali, na área do conflito, junto à Casa da Moeda, dispúnhamos
de CAC (canhões anti-carro) e Carros de Combate (o popular tanque) – cheguei de
jipe ao local, com a máxima presteza.
Só não
sabia que, naquele instante, com aquela atitude, começava a mudar radicalmente
minha vida, em todos os sentidos. Das 13 horas daquele dia 1o até as 18 horas,
tudo aconteceu com uma rapidez incrível e surpreendente. Destino? Fatalismo?
Meu livre arbítrio, de qualquer modo, entraria em ação. Até porque, mesmo se
não houvesse tal episódio, certamente continuaria a manifestar-me contra o
golpe – como já demonstrara em algumas ocasiões – e sofreria alguma forma de
punição: transferência, repreensão ou detenção. Mas cassação, cabe revelar, não
entrara nunca em cogitações, nas minhas, nem de companheiros legalistas. Mais
tarde, soube que, se não aderisse após o golpe, seria cassado. Claro que não
aderi.
Ao tomar
conhecimento de minha história, amigos militares ou civis logo associam àquela
coisa de “hora e lugar certos ou errados”, meio que se rendendo a certas leituras
de destinação. Bobagem. As coisas são assim mesmo e, em não poucas ocasiões,
caberá sempre livre arbítrio: tem que prevalecer sim. Por outro lado, isso de
alguns civis e militares, médicos-legistas, torturadores, jornalistas etc,
alegarem que cumpriam ordens (da Ditadura) ou exerciam sua profissão, é um
álibi-balela. Cumprir ordem, ou limitar-se ao exercício da profissão, é espécie
de destinação, fatalismo, que a vida impõe? Não é não. Livre-arbítrio, sempre
uma boa companhia. Isto sim.
O conflito. Massacre frustrado
Àquela
altura, a tarde já nublava, chove-não-chove. A seguir, chuva fina.
Chegando
urgente ao local do conflito (aquele Largo do CACO), ainda vi algumas pessoas
feridas sendo retiradas dali com a ajuda de outros populares. No prédio da
Faculdade, vidros e ou janelas quebradas e portão aberto (quem iria fechá-lo
sob pontaria?) – por essas aberturas haviam jogado as bombas de gás
lacrimogêneo. O saguão de entrada estava todo enfumaçado. Vez por outra, um
estudante colocava a cabeça na janela e pedia socorro. Avaliei o poder de fogo
das ditas paramilitares, forças repressoras, com viaturas frágeis, kombis,
apenas revólveres e velhas metralhadoras.
Mandei um
dos subordinados (fardado, claro) advertir que se retirassem da área que estava
sob nosso comando militar. De início, não recuaram nem se retiraram. A seguir,
alguns deles foram deixando o local, outros permaneceram. Nós, em frente, à
distância de uns 50 metros, tínhamos – como lembrei antes – razoável poder de
fogo. Só após rigorosa ação, mais de advertência, é que, rápido, se retiraram
e, segundo informaram-me, se refugiaram no pátio do Pronto-Socorro ali perto.
Não é fato, como se afirma, que chegamos já atirando naquele inimigo. E contam
– o que é a versão dos fatos... – façanhas que jamais pratiquei no episódio. O
fato é que, isto sim, apontamos na direção deles, as variadas armas de que
dispúnhamos no local.
Entrei no
prédio, mandando que abrissem todas as janelas e portas, inclusive nos fundos –
fumaceira insuportável do gás. Tínhamos as máscaras, mas não foi necessário
colocá-las. Havia estudantes já sufocando, na escadaria e no chão. Dr. Walter
Oaquim, hoje bastante conhecido, ex-Secretário de Estado, Advogado, Diretor do
Flamengo, contou-me que já se preparava para pular do 2o andar dos fundos para
o pátio da Rádio MEC, quando cheguei. No banheiro encontravam-se, acuadas, as
hoje professoras Maria Helena e Cecília Coimbra. Muitos desses então jovens –
hoje encontrando-se comigo – confessam que, quando me viram chegar e postar-me
à frente da tropa, logo imaginaram: agora mesmo é que vamos ser executados. E
se surpreenderam com o enfrentamento, a fuga dos grupos inimigos (!) e nossa
ocupação do prédio.
Aplaudiram-me
no salão do 2o andar, menos pelo que fiz e mais por alívio, mas cortei logo as
euforias, comunicando que achava estar consumado o golpe, e que iria
garantir-lhes a retirada tranquila, de dez em dez, ora pela Rua Moncorvo Filho,
ora pelo Campo de Santana, evitando provável nova investida contra eles,
preservando-lhes a retirada. Assim fiz por quase uma hora. Meus subordinados os
acompanhavam por uns vinte, trinta metros. E, aos poucos, de dez em dez, os
estudantes, pelas duas saídas, foram deslocando-se para suas casas, ilesos.
Hoje aí
estão emprestando rumo digno às suas vidas. Este, o melhor aspecto de tudo. A
seguir, os leitores conhecerão os nomes (não todos, é claro) de alguns daqueles
jovens, estudantes da Faculdade de Direito (CACO) e da UNE. Hoje, reitero, são
figuras notáveis no cenário brasileiro. Nas homenagens que os estudantes do
CACO me vêm prestando todo ano – inclusive nomearam-me generosamente Presidente
Perpétuo do CACO, sala e placa alusivas –, sempre lembro que não houve gesto
heróico algum. O que deve ser registrado, por importante, é o fato de o Brasil
contar com eles hoje, ainda nas lutas por uma sociedade melhor e mais justa.
Provou-se que aquilo não era coisa de juventude rebelde (?), de jovens
imaturos. Bendita juventude, aliás, aquela.
Eis os
nomes de alguns desses jovens – hoje cinquentões ou sessentões – que ali
estavam no CACO e com os quais (a maioria) sempre mantemos contacto,
principalmente os do Grupo Tortura Nunca Mais: Professora e Psicóloga Cecília
Coimbra, Presidente do Grupo Tortura Nunca Mais.
Professora
Flora Abreu, diretora do Grupo Tortura Nunca Mais. Professora Victória Grabois,
diretora do Grupo Tortura Nunca Mais. Professora Maria Helena, diretora do
Grupo Tortura Nunca Mais. Dr. Walter Oaquim, Secretário do Governo Estadual e
vice-presidente do Flamengo F.C. Dr. Brandão Monteiro, Secretário do Governo
Estadual. Dr. Celso Soares, advogado. Dr. Oscar Araújo, escritor. Professores
César Guilmar, Victor Giudice e Rodolfo Motta Lima. Sr. José Rocha, produtor
teatral. Sr. Acir H. da Costa, Funarte. Dr. Moisés Azhenblat, diretor do Teatro
Casa Grande. Professor Luís Fernando de Carvalho, assessor do Governo Estadual.
Dr. Alexandre Addor, Diplomata. Sr. Francisco das Chagas Monteiro, o Frank,
ator e produtor de teatro, o Chiquinho do CPC.
A sucinta
listagem acima foi feita por ocasião da pesquisa/entrevista de alunos de
Comunicação da FACHA. Já se passaram muitos anos. Alguns dos citados já
morreram, a maioria ocupa outros cargos ou segue outros projetos e ou se
aposentou. Permanece o espírito de todos, sem esmorecimento, na certeza de que,
jovens, já vislumbraram que era preciso desempenhar um papel digno, espécie de
missão, profissão-de-fé, ao longo de sua existência. Muito distante, assim,
daquela pregação reacionária, conveniente e preconceituosa, em torno de que “os
jovens são assim mesmo”, “isso passa, vão se aburguesar logo”. “Coisa de
juventude rebelde”. Esse rebelde é muito injusto, intuindo um inconformismo da
idade, “fogo de palha”. Não foi não. O único mérito de minha ação reside no
fato de poder constatar: aquela era, e é, uma brava gente brasileira.
Encerrado
o episódio e tendo eu garantido a retirada dos estudantes do local, ao
regressar ao Ministério do Exército naquela tarde do dia 1o de abril,
imediatamente fui preso e enviado, por lancha, para a primeira prisão
(Fortaleza de Santa Cruz) e, a seguir, para a prisão do Forte Imbuí, onde
fiquei isolado. E a cassação não tardou. Ali iniciavam os 20 anos de repressões
e perseguições.
----------------------------------------------------------------------------
Este texto encontra-se na página 90 do livro "68 a geração que queria mudar o mundo
relatos”, organizado e editado por Eliete Ferrer e publicado no Projeto Marcas
de Memória, da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça em 2011, na
Presidência de Paulo Abrão.
Para ler
ou gravar o livro em PDF, acesse aqui:
Documentos
Revelados:
ou aqui:
Documentos
Revelados:
ou aqui: