segunda-feira, 30 de março de 2015

Militarismo e misticismo

“Neste contexto de ascensão da truculência no Brasil, onde a civilidade está sendo substituída pela violência, é preocupante a formação no seio de seitas neopentecostais de grupos de “gladiadores de Cristo”. Igualmente a reunião, em ato religioso, de militares do Exército fardados e armados pelo Estado, onde se declaram “prontos para vencer o Mal”, tal como na Maré, sem explicitar que Mal vão exterminar”.

A Constituição assegura a liberdade de associação, mas veda a de caráter paramilitar. O Código Civil classificava as pessoas jurídicas de direito privado em associações, sociedades, fundações e firmas individuais. Em 2003 o texto foi alterado, passando a distinguir partidos políticos e organizações religiosas. Mas o caráter paramilitar continua vedado a todos.
Ser paramilitar não implica a defesa de atos violentos nem o uso de armas. O que o caracteriza é a natureza da organização e a estrutura funcional fundada em disciplina e hierarquia, compreendendo o planejamento de ação pela direção e execução pelos subordinados. O uso de uniforme apenas exterioriza a natureza paramilitar, mas não é requisito para sua existência, assim como hinos e palavras de ordem.
Neste contexto de ascensão da truculência no Brasil, onde a civilidade está sendo substituída pela violência, é preocupante a formação no seio de seitas neopentecostais de grupos de “gladiadores de Cristo”. Igualmente a reunião, em ato religioso, de militares do Exército fardados e armados pelo Estado, onde se declaram “prontos para vencer o Mal”, tal como na Maré, sem explicitar que Mal vão exterminar.
Da mesma forma é preocupante a disposição de PMs em forma — com armas pesadas em punho — onde repetem os gritos do comando, tais como “somos autoridades instituídas pelo Senhor”, quando são apenas agentes de autoridade numa democracia, e não autoridades ou guerreiros míticos numa teocracia. E mais, gritam que “pelo Senhor lutamos”, possibilitando incompreensão dos limites legais para a própria atuação.
O nazismo teve raízes míticas, dentre as quais a crença na força Vril, que se acreditava capaz de despertar o passado. Não sem razão a suástica nazista era no sentido anti-horário, evocando o que se encontrava no subterrâneo e na irracionalidade.
Foi a formação de grupos religiosos e simpáticos ao nazismo — como a Liga de Defesa Nacional Cristã e a Legião do Arcanjo Gabriel (transformada em Movimento Nacionalista da Guarda de Ferro, nos anos 1920 na Romênia) —, que por meio de perseguições aos judeus e trabalhadores de esquerda fez fugir para o Brasil a família Gleiser, composta também por Berta Gleiser, que 20 anos depois se casaria com o antropólogo Darcy Ribeiro. A história somente se repete como farsa, mas pode produzir similares danos se desconsiderada em momento no qual havemos de defender as liberdades.
 
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 29/03/2015, pag E6. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2015-03-28/joao-batista-damasceno-militarismo-e-misticismo.html

 

terça-feira, 24 de março de 2015

Protesto da Casa Grande

 
“As manifestações de 2015 não se relacionam com as jornadas de 2013. Aquelas tinham pauta, embora difusa, que incluía melhoria no transporte público. Mas jovens foram presos, o movimento social, criminalizado, policiais da Força Nacional atuaram — à margem da lei — como infiltrados, e seus depoimentos se prestam ao liberticídio. O acolhimento das demandas das jornadas de 2013 poderia ter produzido fortes defensores da democracia e não se precisaria pagar a manifestante para apoiar as instituições, ameaçadas pelo golpismo. "Sem o povo não adiantam as fortalezas", escreveu Maquiavel em 1513, pois em tempo de crise elas se voltam contra o príncipe”.
 
Todo o poder pertence ao povo, que o exerce, também, diretamente. Manifestação é forma de democracia direta e auxilia as instituições nas crises de representatividade. Daí a legitimidade das manifestações do domingo passado. Mas pesquisas demonstraram a presença de poucos jovens, marcante em eventos onde o desejo de justiça e felicidade se posta no horizonte e os guia rumo à utopia.
 
Alguns dos jovens presentes acompanhavam parentes mais velhos, a quem recorriam para responder o que lhes era perguntado. O resultado não poderia ser outro senão ódio, preconceito de classe, ressentimentos, grosserias, ostentações, afetações e esnobismos próprios de provincianos de um país periférico. A maioria era branca, com mais de 30 anos e renda mensal superior a 10 salários mínimos. Uma mulher negra, com roupa branca, carregava uma criança loira, acompanhando um casal que clamava por moralidade vestindo camisa da CBF. Era a babá auxiliando o protesto da 'Casa Grande'.
A ausência de políticas sociais efetivas recolocou o Brasil na 1a. República. Os lucros dos bancos nunca foram maiores, as políticas sociais se resumem ao assistencialismo, mesmo sem clientelismo, e os serviços públicos foram destroçados. Um médico que trabalha num hospital público do Rio, por 24 horas semanais, recebe R$ 1,4 mil mensais. Proliferam as privatizações — a dos hospitais, por meio das OSs. Saúde, transporte e Educação são uma calamidade, apesar do discurso oficial que aponta — com cabeça nas nuvens e os pés fora do chão — prefeito aliado como o melhor das galáxias. A classe média agoniza e, instigada, esperneia. Cumpre o seu papel de classe em tempo de crise.
 
Perdedores inconformados querem o 3o. turno e pedem intervenção militar. Mas foi o governo federal quem primeiro deu sinais de que problemas políticos e sociais podem ser sanados com as Forças Armadas. Visita ao Complexo da Maré, onde são constantes as violações aos direitos humanos, o demonstra. Isto sem falar na criação, à margem da Constituição, da Força Nacional, tal como o Regente Feijó criara a Guarda Nacional, aparato que deu suporte ao pacto coronelista.
 
As manifestações de 2015 não se relacionam com as jornadas de 2013. Aquelas tinham pauta, embora difusa, que incluía melhoria no transporte público. Mas jovens foram presos, o movimento social, criminalizado, policiais da Força Nacional atuaram — à margem da lei — como infiltrados, e seus depoimentos se prestam ao liberticídio. O acolhimento das demandas das jornadas de 2013 poderia ter produzido fortes defensores da democracia e não se precisaria pagar a manifestante para apoiar as instituições, ameaçadas pelo golpismo. "Sem o povo não adiantam as fortalezas", escreveu Maquiavel em 1513, pois em tempo de crise elas se voltam contra o príncipe.
 
 
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 22/03/2015, pag. E6. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/
 
 

sábado, 21 de março de 2015

Nota sobre uso de apartamento de Darcy Ribeiro por agentes do poder judiciário

Como juiz da causa não posso me manifestar sobre providências a serem tomadas. Mas, posso me manifestar sobre o que já foi decidido.

Prolatei sentença restaurando os autos do espólio de Berta Gleiser Ribeiro, ex-mulher de Darcy Ribeiro.

Diligenciei junto ao consulado dos EUA solicitando informação sobre paradeiro de Jenny Gleiser, irmã da Berta, expulsa do Brasil em 1935 junto com Olga.

Oficiei à Corregedoria em 2013 comunicando fatos que acabara de tomar ciência ao assumir a titularidade da 1ª Vara de Órfãos e Sucessões.

Determinei à inventariante judicial contratação de advogado e promoção de despejo por falta de pagamento do funcionário que ocupava o imóvel que fora de Darcy e Berta Ribeiro.

Designei audiência e removi a inventariante judicial e para o encargo de inventariante nomeiei o sobrinho de Darcy Ribeiro e presidente da Fundação Darcy Ribeiro, Sr. Paulo F. Ribeiro.

Solicitei, em 2014, informações ao então corregedor sobre diligências tomadas por ele em face da representação lhe dirigida.

Não posso formular juízo de valor sobre questões sujeitas ao meu julgamento, salvo para pronunciá-lo. Mas, considero que contratos celebrados por inventariante judicial com agentes do poder judiciário, visando a ocupação/locação de bens imóveis sujeitos à administração judicial, sejam serventuários, juízes ou desembargadores, caracterizam    no mínimo    conflito de interesses.

Esta nota visando esclarecimento se encontra no limite da minha possibilidade de pronunciamento.
 

João Batista Damasceno

Juiz de Direito Titular da 1a Vara de Órfãos e Sucessões

domingo, 15 de março de 2015

Testemunha da história

“A recente promessa de recompensa difundida pelas redes para a morte do líder do MST, João Pedro Stédile, decorre da criminalização dos movimentos sociais que a mídia conservadora fomenta. Partiu do perfil no Facebook de um guarda de Macaé. Mas sua difusão decorreu de haver encontrado o caminho pavimentado por aqueles que naturalizam a barbárie contra pobres”.

A queda do Muro de Berlim em 1989 liberou onda neoliberal avassaladora pelo mundo. Mas, no Brasil, com suas permanentes transitoriedades e sua excessiva concepção estética, em prejuízo dos juízos fundamentados, o efeito foi assustador. Nenhuma instituição escapou da desqualificação perante a única modalidade de mediação das relações sociais que se apresentava, o poderoso mercado. A defesa das riquezas nacionais, do direito dos trabalhadores ou da cidadania implicava ser chamada de jurássica. 

As empresas de comunicação majoritárias, sem as redes sociais que hoje lhes confrontam, pautavam os assuntos e as vertentes das abordagens. Mas as cinco famílias que oligopolizam o mercado de comunicação no Brasil também exercem outras atividades empresariais. Daí é que defender o mercado, as privatizações, a desregulamentação das relações de trabalho, a tributação sobre renda de trabalho e consumo em vez de propriedade e — progressivamente — das grandes fortunas é modo de defender os próprios interesses. Não se trata de comunicação social, atividade relevante para o aperfeiçoamento da democracia, mas de propaganda em prol dos seus negócios. 

Um jornal ou revista, quando não recebe subvenção do Estado, não pode sofrer controle. Sequer o papel no qual se imprime pode ser tributado. Mas rádio e televisão são concessões públicas. O espectro de ondas é finito, e apenas alguns podem obter a outorga estatal. Daí é que os concessionários devem estar sujeitos a modo especial de controle social do poder concedente, porque exercem atividade pública delegada. Não se pode confundir controle, a que todos os que atuam em razão de atividade estatal devem estar sujeitos, com censura ou outros modos de intimidação incompatíveis com a democracia. 

A recente promessa de recompensa difundida pelas redes para a morte do líder do MST, João Pedro Stédile, decorre da criminalização dos movimentos sociais que a mídia conservadora fomenta. Partiu do perfil no Facebook de um guarda de Macaé. Mas sua difusão decorreu de haver encontrado o caminho pavimentado por aqueles que naturalizam a barbárie contra pobres.

Para a defesa dos seus interesses no Brasil, a Standard Oil lançou nos anos 40 o ‘Repórter Esso’, “testemunha ocular da história”. Quando a guerra de 45 acabou, muitos duvidaram. Afinal, ainda não tinha saído no ‘Repórter Esso’. A democratização da mídia possibilita o confronto de versões, a formação de juízo crítico e o fortalecimento da democracia.



Publicado originariamente no jornal O DIA, em 15/032015. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2015-03-14/joao-batista-damasceno-testemunha-da-historia.html

segunda-feira, 9 de março de 2015

Privatização e ineficiência


“Os interesses que se opuseram à nacionalização do petróleo na década de 40 e 50, denunciados na carta-testamento de Getúlio Vargas, assacam contra a Petrobras e — aproveitando os desmandos de sucessivos governos — promovem campanha pela sua privatização. O ouro das Minas Gerais promoveu a Revolução Industrial na Inglaterra. A privatização do pré-sal e da Petrobras pode não se traduzir em solução para os problemas que enfrentamos. Mas pode ser fonte de enriquecimento dos interesseiros denunciados por Vargas”.

 

Levantamento do Conselho Nacional de Justiça demonstra que no Judiciário tramitam 92 milhões de processos. É como se metade da população estivesse processando a outra. Dizem que há demandismo na sociedade e que a ampliação do acesso à Justiça e a instituição de novos direitos tornaram os brasileiros litigantes. Isto não corresponde à realidade. O mesmo estudo mostra que 95% dos processos têm como partes instituições financeiras (bancos e seguradoras), concessionários de serviços públicos (empresas de telefonia, de água, luz e transporte), lojas de departamento e o poder público. Cidadãos demandam entre si em apenas 5% dos processos.

 

O perfil dos principais litigantes não deixa dúvida de que se está fazendo uso predatório da Justiça, sobrecarregando o Judiciário e atentando contra a cidadania. Danos à população são causados pela má qualidade dos serviços e com o gasto dos recursos públicos para manutenção da máquina judiciária a fim de solucionar os conflitos de interesse decorrentes dos maus serviços prestados.

 

A privatização da telefonia, do transporte e da energia foi apresentada como solução para os problemas na prestação de tais serviços. O que o neoliberalismo apregoava era a incapacidade do Estado em geri-los, e se dizia que os recursos advindos seriam gastos na Saúde e Educação. Elio Gaspari chamou esse fenômeno de privataria. Entregues à gestão privada, os serviços não melhoraram, seus preços subiram acentuadamente e se traduzem em problema para o Judiciário.

 

A saúde segue o mesmo caminho. Os hospitais públicos têm sido entregues à gestão privada, ou seja, às Organizações Sociais, ou OSs, com maior custo para o poder público e lucro dos gestores de tais organizações. Promove-se o desmantelamento das carreiras da saúde, onde um médico ganha cerca de dois salários mínimos mensais por uma jornada de 24 horas semanais, desestimulando até mesmo jovens médicos a prestar concurso.

 

Os interesses que se opuseram à nacionalização do petróleo na década de 40 e 50, denunciados na carta-testamento de Getúlio Vargas, assacam contra a Petrobras e — aproveitando os desmandos de sucessivos governos — promovem campanha pela sua privatização. O ouro das Minas Gerais promoveu a Revolução Industrial na Inglaterra. A privatização do pré-sal e da Petrobras pode não se traduzir em solução para os problemas que enfrentamos. Mas pode ser fonte de enriquecimento dos interesseiros denunciados por Vargas.

 


 

Resposta ao pedido de informações

segunda-feira, 2 de março de 2015

Rio 450, belezas e durezas


“Quem passa pelo Aterro e vê a Igreja da Glória, uma das mais belas obras da arquitetura colonial do Brasil, não imagina que tem este nome em decorrência da glória sobre os tamoios. O nome evoca o genocídio dos povos originários, que, recusando a escravização, se aliaram aos protestantes que por aqui buscavam refúgio da intolerância religiosa em seus países de origem.
“Uma cidade não é uma abstração. É o conjunto de pessoas que nela se estabelecem. O presente que podemos dar ao Rio em seus 450 anos, reescrevendo a história, pode ser a convivência sem exclusões, indiferenças e a negação de direitos aos ‘indesejáveis’”.
 
A cidade do Rio de Janeiro comemorou neste domingo 450 anos de fundação por Estácio de Sá, sobrinho do terceiro governador-geral do Brasil, Mem de Sá. Cidade de inigualável beleza natural e acolhedora para alguns, mas tem na história a inglória dos maus-tratos aos que considera indesejáveis.
 
No período das capitanias hereditárias, a orla do Rio, desde Cabo Frio, estava no âmbito de São Vicente. As capitanias não eram propriedades daqueles a quem se entregavam os títulos. Chamados donatários, tinham apenas a concessão de uso da terra que deveriam cultivar e proteger. Este modelo de ocupação possibilitava a retomada da terra improdutiva ou desprotegida.
 
O centro do Rio é similar à planta de Lisboa. Não fosse a derrubada do Morro do Castelo, teríamos dois ladeando o Paço Imperial, que aqui passou a se chamar Praça 15, mas lá ainda é Paço. Adentrando a cidade aqui temos a Praça Tiradentes, que já foi Largo do Rocio, nome que ainda é ostentado por lá. Mas, em ambas, temos a estátua de D. Pedro, que por aqui foi primeiro e por lá o quarto.
 
A história da cidade não pode estar dissociada do período que antecede sua fundação. Dez anos antes, franceses fugidos das perseguições religiosas na Europa se estabeleceram onde hoje é a Praia do Flamengo, na foz do Rio Carioca, e também construíram um forte na Ilha de Serigipe, atual Ilha de Villegagnon, que sedia a Escola Naval, atrás do Santos Dumont. Foram dizimados, juntamente com os povos nativos que a eles se aliaram. A união de tribos que lutaram com os franceses ficou conhecida como Confederação dos Tamoios e reunia a nação tupinambá, os guaianazes e os aimorés. Tal reunião fora motivada pelos ataques portugueses que capturavam indígenas para trabalhar nas plantações de cana-de-açúcar na Capitania de São Vicente, a única que prosperou além da de Pernambuco.
 
Quem passa pelo Aterro e vê a Igreja da Glória, uma das mais belas obras da arquitetura colonial do Brasil, não imagina que tem este nome em decorrência da glória sobre os tamoios. O nome evoca o genocídio dos povos originários, que, recusando a escravização, se aliaram aos protestantes que por aqui buscavam refúgio da intolerância religiosa em seus países de origem.
 
Uma cidade não é uma abstração. É o conjunto de pessoas que nela se estabelecem. O presente que podemos dar ao Rio em seus 450 anos, reescrevendo a história, pode ser a convivência sem exclusões, indiferenças e a negação de direitos aos ‘indesejáveis’.
 

 

Adendo à representação