O primeiro clássico da
literatura brasileira que li foi A Moreninha. Ainda pré-adolescente minha mãe o
entregou-me e explicou como se lê um livro. Primeiro o título e nome do autor.
Depois as orelhas e contracapa, se tiver. Em seguida os dados sobre a edição, o
sumário, a apresentação e o prefácio. Situado sobre o que se tem na mão
começa-se a leitura. O livro tinha a biografia de Joaquim Manuel de Macedo apresentada
por M. Cavalcanti Proença e prefácio de Raquel de Queiróz. Era um livro de
bolso da Ediouro. Guardo-o como se guarda uma relíquia. Fiquei encantado com
quem escrevera a biografia. Julguei ser alguém que sabia tudo de literatura,
tudo sobre a obra e tudo sobre o autor. Não me enganei. Mais tarde soube que era
o professor, literato e General Manuel Cavalcanti Proença, que introduziu o
estudo de literatura na Academia Militar/AMAN, matéria suprimida depois do
golpe empresarial-militar de 1964.
Quando conheci seu filho,
o professor, literato e Coronel Ivan Cavalcanti Proença, cassado pela ditadura
por seu legalismo, falei da admiração que sempre tive por seu pai, desde
sempre. E pude conversar com ele sobre a mais clássica polêmica da literatura
brasileira: o possível adultério de Capitu. Ivan Proença analisa sob o olhar de
um crítico literário e afasta qualquer conclusão ou relação com a realidade.
Para ele a obra de Machado de Assis tem a característica do enigma e, portanto,
não faz sentido tentar chegar a uma conclusão. É um enigma e ponto, tal como o
é o estilo machadiano!
Nesta semana chegou-me às
mãos um livro usado editado pela Nova Fronteira, em 2008, intitulado “Quem é
Capitu?”. Organizado por Alberto Schprejer, textos de quatorze notáveis tentam responder
à pergunta: Luis Fernando Veríssimo, Lya Luft, Luiz Fernando Carvalho, Lygia
Fagundes Telles, Mary Del Priore, Fernanda Montenegro, Silviano Santiago, John
Gledson, Roberto DaMatta, Gustavo Bernardo, Luiz Alberto P. de Freitas, Daniel
Piza, Otto Lara Resende e Carla Rodrigues.
O texto do Otto eu o lera
quando publicado na Folha de S. Paulo, em 1992. Eu era leitor do Otto e senti
sua morte como de alguém com quem tivesse convivido pessoalmente. Substituiu-o
na coluna da Folha Carlos Heitor Cony, que também escreveu sobre Capitu, mas
não foi incluído no livro. Custei acostumar ler a coluna do Cony, tendo sempre
o Otto como referência da primeira leitura depois do café da manhã.
Muitos outros autores e
textos poderiam ser incluídos na obra, além de Cony. Não faltam polemistas
quando se trata da obra, notadamente depois do livro “O Enigma de Capitu”, de
Eugênio Gomes, de 1967. Aparentemente até o surgimento desta obra era certo o
adultério de Capitu. Este livro foi quem trouxe a dúvida. É o que escreveu
Dalton Trevisan, com quem concordou Otto Lara Resende.
As conclusões dos autores
da obra são diversas.
Fernanda Montenegro não
reconhece o adultério, nem o nega. Sua compreensão da relação está em
consonância com aqueles que acreditam Bentinho seja tal como Otelo e escreve: “Os
olhos mostram o que desejamos ver por meio deles. É sempre também o reflexo, a
projeção de quem olha. (...) Bentinho descreve seu próprio olhar, olhando
Capitu”.
Luiz Fernando Carvalho
não responde à pergunta e retoma a questão do enigma surgido a partir de 1967 e
diz que “O benefício da dúvida que Santiago acaba por nos conceder com seu
relato é que finda sendo sua verdadeira redenção”. Mas ao afirmar que “as
omissões – propositadas ou apenas falha de memória – nos fazem intuir que algo
parece sempre fora do lugar”, permite uma interpretação equivalente à que
deu Luiz Fernando Veríssimo e Millôr Fernandes, descritas adiante.
Mary Del Priori é
enfática: “Capitu traiu pois Bentinho conhecia a regra das Escrituras e não
a exerceu com competência: ‘Vós maridos, coabitai com vossas esposas’. Em
resumo, se Capitolina não dormia, é porque Bento, seu marido, adormecia de
cansaço”. Tal como numa “tragédia de costumes” rodriguiana seria Bentinho
que haveria de pedir à Capitu perdão por ser corno.
A crônica de Gustavo Bernardo é narrada por Simão
Bacamarte, que acaba por internar todos na Casa Verde de Itaguaí, inclusive o
próprio Machado de Assis, convertido em personagem de suas obras.
Carla Rodrigues, numa sofisticada narrativa
fundada em Freud, Derrida, Lacan e Nietzsche, se aproxima da discreta narrativa
de Luiz Fernando Carvalho, que igualmente identifica algo fora do lugar: “Os
deslocamentos se multiplicam aqui: Machado desloca o privilégio da feminilidade
de Capitu e faz aparecer também em Bento/Casmurro. (...). A feminilidade se
transforma no elemento traiçoeiro: das verdades asseguradas, das certezas
definitivas, da estabilidade. É com esse feminino que Bentinho se depara,
primeiro em Capitu, depois em sua própria reconstituição narrativa: o feminino
que indica a ausência de certezas em que se apoiar, o feminino da instabilidade
e da impossibilidade de chegar à verdade”. A leitura de Carla Rodrigues tem
por referência sobretudo a obra de Helen Caldwell, O Otelo brasileiro de
Machado de Assis.
Lya Luft admite o enigma e diz que “não sei o
que de verdade houve, não sei qual é a verdadeira Capitu, nem se tive (sic)
esse romance ou se aquilo tudo existiu, provavelmente não saberei nunca”.
Silviano
Santiago absolve Capitu: “Instado a dizer quem é Capitu, respondo: Capitu é
o ciúme – ou seja, é a malícia de Dom Casmurro; é a ‘regra de composição’ do
romance machadiano. (...) O ciúme é o esterco literário de Capitu, garantia de
seu florescimento em mulher secreta ou enigmática, pouco importa”.
John Gledson igualmente coloca Capitu numa posição
de passividade, incapaz de optar seja pelo adultério, seja por um dos
personagens. Diversamente de Virgília, personagem de Memórias Póstumas de Brás
Cubas que faz expressa opção pelo casamento e pelo adultério, Capitu teria sido
incapaz de qualquer opção. Deixou a vida levá-la. “... as mulheres de
Machado frequentemente ‘optam por não optar’; no caso de Virgília, isto
significa ter um casamento feliz e um adultério feliz ao mesmo tempo, ou usar a
religião como uma veste, uma roupagem interior, aconchegante, mas que não é
para ser vista de fora. No caso de Capitu, a frase tem outro significado: seria
possível argumentar que, mais corajosa e de uma classe social diferente da de
Virgília, ela de fato tenta optar, fazer a escolha, mas acaba, fatalmente para
ela, por ser forçada a não optar, a aceitar uma solução de meio-termo em que
nenhuma das questões reais envolvidas no seu casamento não trazidas à
superfície”.
Otto Lara Resende
escancara a denúncia do adultério de Capitu. Tratando em crônica na Folha de S.
Paulo, em 08 de janeiro de 1992, de uma questão do vestibular de uma
universidade paulista, afirma categoricamente que “a hipótese aí estampada,
de que Capitu não traiu Bentinho, um Bentinho paranoicamente ciumento qual
Otelo, está fundamentada em “O enigma de Capitu”. Apareceu de fato no ensaio de
intepretação de Eugênio Gomes, publicado em 1967. (...) Dom Casmurro saiu em
1900. Machado morreu em 1908. Nenhum crítico nesses oito anos jamais ousou
negar o adultério de Capitu. Leiam a carta do Graça Aranha, amigo pessoal do
Machado: ‘Casada, teve por amante o maior amigo do marido.’ Voltem ao artigo de
Medeiros e Albuquerque. Dar o Bentinho como ‘o nosso Otelo” é pura fantasia.
Bestialógico mesmo”.
Luis Fernando Veríssimo
se manifesta por meio de um personagem, que é detetive particular, contratado
por Bentinho para descobrir o que faz Escobar e narra: “Juro que uma vez os
vi, num momento descuidado, de mãos dadas, o que me pareceu natural entre
colegas de tantas coisas”. Na sua atividade profissional de investigador
viu Escobar entrar com uma mulher “num quarto alugado por horas e ocupado
por duas” e não fez constar do relatório entregue ao cliente “o nome de
quem acompanhava Escobar no quarto sórdido da Lapa. Era d. Capitu”. Mas o
que deveria ser um encontro entre os quatro para esclarecer a situação
revelou-se trágico:
“Na
hora acertada, cheguei à praia, onde já estavam os dois ex-seminaristas.
Escobar lia o meu relatório. Com dificuldade, pois sobrara pouca luz do pôr do
sol. Só levantou a cabeça para me olhar quando terminou a leitura. Sacudiu o
relatório e disse:
“- A
mulher que estava comigo não está aqui.
“Comecei
a responder, mas Bentinho me interrompeu.
“-
Não interessa quem era a mulher.
“-
Como, não interessa?
“Fui
eu que fiz a pergunta, espantado. Não interessava que a mulher era a d. Capitu?
“- O
que interessa – continuou Bentinho – é que você me traiu.
“Levei
alguns segundos para entender. A alegoria moral não era bem a que eu esperava.
Bentinho ainda estava falando.
“-
Essa mulher é só uma. Você dever ter me traído com muitas”.
Millôr
Fernandes não fez por menos. Além de afirmar o adultério ainda descreve cenas
das quais resultam a conclusão de uma relação homoafetiva entre os dois
ex-seminaristas:
“PUBLIQUEI, ATRAVÉS DE
ANOS, no Estadão, no O Dia e no Jornal do Brasil – ao todo aproximadamente dois
milhões de exemplares -, ‘pesquisa” sobre Dom Casmurro, a obra magna de Machado
de Assis. Como minha página era a capa exterior dos jornais citados, e o
assunto era picante – se Escobar, ‘herói’ do romance, tinha ou não tinha comido
a Capitu, eterna e tola discussão entre beletristas -, devo ter alcançado pelo
menos cem mil desprevenidos. Bom, não apenas mostrei que Escobar comeu a
Capitu, como, não sei não, acho que tirei Dom Casmurro do ‘armário’.”.
Luiz Alberto Pinheiro de
Freitas deixa em suspensa a possível infidelidade de Capitu, ainda que afirme
que “havia sido criada uma propensão ao encantamento de Capitu por Escobar,
em virtude da fragilidade de Bento e das qualidades de Escobar”. Igualmente
aponta o encantamento de Bentinho por Escobar: “Contudo, com um pouco mais
de certeza, poderemos interpretar que o ciúme delirante de Dom Casmurro fala,
como mostrou Freud, muito mais do seu desejo por Escobar do que do desejo por
Capitu. Então horrorizado diante de sua paixão homossexual, ele poderia dizer:
Eu, Bento, não amo Escobar; é ela, Capitu, quem o ama – ao que o psicanalista
responderia: bela denegação!”.
Roberto DaMatta faz coro
com a Eugênio Gomes: “A proeza de Machado de Assis foi transformar um drama
cultural num enigma. Se nos adultérios comuns há sempre uma culpada, neste há
mistério”.
Daniel Piza igualmente coloca em questão os comportamentos de
Bentinho: “Numa cena que também poderia ser de uma história romântica, Bento
até espera um último aceno de Escobar antes de dobrar a esquina” e quando Ezequiel reaparece: “Depois diz que
fará uma viagem científica à Grécia, Egito e Palestina com dois amigos. Bento
Pergunta: ‘De que sexo?’. O filho responde que as mulheres são da moda,
não entendem ruínas.”
Por fim, Lygia Fagundes
Telles, também no sentido da incerteza: “E daí, houve mesmo a traição?
Olhei-o nos olhos e respirei fundo. Ah! Confesso que não sei, não sei. É tudo
misterioso como aquele mar acima de qualquer suspeita com suas ondas
espumejantes arrebentando nas pedras”.
Muitos literatos
escreveram sobre a obra. Em publicação na Folha de S. Paulo de 28 de março de
1999 temos os seguintes trechos de textos ou depoimentos:
José Veríssimo: "(‘Dom Casmurro’ trata de) um homem inteligente,
sem dúvida, mas simples, que desde rapazinho se deixa iludir pela moça que
ainda menina amara, que o enfeitiçara com a sua faceirice calculada, com a sua
profunda ciência congênita de dissimulação, a quem ele se dera com todo ardor
compatível com o seu temperamento pacato." ("História da
Literatura Brasileira").
Lúcia-Miguel Pereira: "Capitu, se traiu o marido, foi culpada ou
obedeceu a impulsos e hereditariedades ingovernáveis? É a pergunta que resume o
livro. (...) Há a ideia central de saber se Capitu foi uma hipócrita ou uma
vítima de impulsos instintivos. Em outras palavras, se pode ser
responsabilizada." ("Machado de Assis").
Augusto Meyer: "Capitu é o melhor exemplo daquilo que Bentinho
afirmava, a propósito de si mesmo: "Chega a fazer suspeitar que a mentira
é, muita vez, tão involuntária como a transpiração". Capitu mente como
transpira, por necessidade orgânica." ("Capitu", em
"Textos Críticos").
Antonio Candido: "Dentro do universo machadeano, não importa
muito que a convicção de Bento seja falsa ou verdadeira, porque a consequência
é exatamente a mesma nos dois casos: imaginária ou real, ela destrói sua casa e
a sua vida." ("Esquema de Machado de Assis", em "Vários
Escritos").
Antonio Callado: "Respeitemos um dos dogmas da nossa literatura,
que é o da maculada conceição do filho de Capitu com Escobar. Cultuemos a sua
infidelidade e não afastemos de nós a negra inveja que sentimos de Escobar."
(Na Folha, em 12/10/1994).
Dalton Trevisan: "Até você, cara - o enigma de Capitu? Essa,
não: Capitu inocente? Começa que enigma não há: o livro, de 1900, foi publicado
em vida do autor - e até sua morte, oito anos depois, um único leitor ou
crítico negou o adultério?" (Na Folha, em 23/5/92).
Roberto Schwarz: "("Dom Casmurro') solicita três leituras
sucessivas: uma, romanesca, onde acompanhamos a formação e decomposição de um
amor; outra, de ânimo patriarcal e policial, à cata de prenúncios e evidências
do adultério, dado como indubitável; e a terceira, efetuada a contracorrente,
cujo suspeito e logo réu é o próprio Bento Santiago, na sua ânsia de convencer
a si e ao leitor da culpa da mulher. Como se vê, uma organização narrativa
intrincada, mas essencialmente clara, que deveria transformar o acusador em
acusado. Se a viravolta crítica não ocorre ao leitor, será porque este se deixa
seduzir pelo prestígio poético e social da figura que está com a palavra."
("A Poesia Envenenada de Dom Casmurro", em "Duas Meninas").
Em artigo na Folha de S. Paulo, em julho de 1999, Carlos Heitor Cony,
também da Academia Brasileira de Letras, depois de ter sido testemunha de
acusação num julgamento simulado que teve o ex-ministro do STF Sepúlveda
Pertence como presidente do júri, sentenciou: “Capitu traiu o marido. Nem
por isso merece ser condenada. Entre os moradores da rua Cabuçu que condenavam
o Pires por adulterar o leite, e o Cristo que perdoou a adúltera, fico mesmo
com o Cristo”.
As três propostas de leitura de Dom Casmurro feitas por Roberto Schwartz
estão presentes nos textos da publicação que me chegou às mãos: romanesca,
patriarcal-policial e a leitura contracorrente, retirando o holofote sobre
Capitu e direcionando-o para Bentinho, tal como sugerem escancaradamente Otto
Lara Resende, Luiz Fernando Veríssimo e Millôr Fernandes, e – sofisticadamente –
Luiz Fernando Carvalho, Carla Rodrigues, Luiz Alberto Pinheiro de Freitas e Daniel
Piza.
Mas e se a obra for
autobiográfica e Machado a tiver escrito como um mea culpa ou catarse,
explicitando o que não poderia dizer publicamente e às claras? Há criminosos que
decorridos tempos de seus delitos procuram autoridades e relatam o que
cometeram, sem o que jamais se saberia sobre a autoria do delito. Trata-se de
modo de se liberar de algo que aflige; que se pensa sobre alguma situação ou
pessoa. A
catarse em tal caso é compreendida como um desabafo e, assim, a pessoa
experimenta um estado de alívio por ter posto para fora o que lhe atormentava.
Machado de Assis era gago e epilético. Eventual
desconforto na alma poderia lhe corroer, também, neurologicamente. Há
argumentos e fatos defensáveis de acordo com a preferência do interlocutor.
Talvez, também por isso, a obra e a vida do autor sejam interessantes.
Antonio Carlos Villaça transpõe
a literatura para a realidade. Assim, a obra deixa de ser romance e assume a
natureza de crônica. Diversamente de Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas
Borba, que foram anteriormente publicados, capítulo por capítulo, em folhetins,
Dom Casmurro foi escrito na forma definitiva de livro, no vigésimo aniversário
da morte do amigo José de Alencar, ou seja, de 1897 a 1898. É dele a afirmação:
“Teria Machado como inspiração dona Georgiana, a inglesinha, a mulher de
Alencar, tão sua amiga, que ele conhecia intimamente. Era grande frequentador
da casa de Alencar. E, quando este morreu prematuramente, aos quarenta e oito
anos, em 1877 teve o maior choque de sua vida. Um choque tremendo. Ficou
doente. Foi para Friburgo. Nunca a morte lhe causou uma impressão tão profunda.
Continuou amigo de Mário de Alencar. Jantava com ele aos domingos, na casa de
Botafogo. E ia vê-lo diariamente na Biblioteca da Câmara. Era como um filho.
Dom Casmurro é um romance que se inspira na vida, na vida real. Num drama
existencial. ‘Consolava-os a saudade de si mesmos’, como escreveu no Memorial
de Aires”.
Villaça foi direto e
objetivo ao afirmar não só a relação entre Capitu e Escobar, do qual resultou o
infante Ezequiel, como subtrai a obra do campo da criação literária e a coloca
como narrativa da realidade. Para ele a obra é biográfica e Machado de Assis
tinha um caso com a mulher do amigo José de Alencar.
Machado de Assis fundou a
Academia Brasileira de Letras e ocupou a cadeira nº 23 cujo patrono é seu amigo
José de Alencar, instituidor da literatura brasileira. Alguns dos autores do
livro que acabo de ler foram ou são membros da ABL. Nenhum deles negou a
infidelidade de Capitu. Três foram as categorias de respostas à pergunta:
Capitu traiu Bentinho, a obra é uma narrativa de um marido ciumento e paranoico
e a terceira categoria na qual estão Otto Lara Rodrigues, Luiz Fernando
Veríssimo e Millôr Fernandes: O affair era entre Bentinho e Escobar.
Para Antonio Carlos Villaça,
Machado de Assis era um Talarico, gíria que expressa quem tenta ou tem
relacionamento com mulher de um amigo ou conhecido; é o fura-olho.
Além de transar com a mulher do amigo, Machado de
Assis teria tirado da sua experiência pessoal o fio condutor do mais celebrado
romance da literatura brasileira.
Machado nasceu em 1839 e seu melhor amigo era José
de Alencar, 10 anos mais velho, filho de um padre. José de Alencar foi casado
com Georgiana Augusta da Gama Cochrane,
(Georgiana Cochrane Alencar, depois de casada), 17 anos mais jovem que o
marido, com quem teve seis filhos, dois homens e quatro mulheres: Augusto
Cochrane de Alencar, Elisa Cochrane de Alencar, Clarice Crochrane de Alencar,
Mário Cochrane de Alencar, Cecy Cochrane Pinto Alencar Alves e Adélia Cochrane
de Alencar.
Quando José de Alencar morreu em 1877, Georgiana,
a Inglesinha, tinha 31 anos e seis filhos. Machado de Assis tinha 38 anos. Mas
só o órfão Mário de Alencar, nascido em 1872, “era como um filho” para Machado
de Assis. E foi por toda a vida, tendo ingressado na Academia Brasileira de
Letras em 1905, tornando-se desde logo figura de relevo na sua administração.
Foi Humberto de Campos em seu Diário Secreto quem possibilitou
a difusão da história de que Mário de Alencar poderia ser filho de Machado de
Assis, oportunizando a interpretação de que José de Alencar, filho de padre,
era o Bentinho; Machado de Assis, o Escobar; Georgiana Cochrane, a Capitu e
Mário de Alencar (M. de A.), o Ezequiel. Mas outro M. de A., que também era
querido de Machado de Assis, pode ser o Ezequiel. E o próprio Humberto de
Campos faz a confusão.
Realizando
pesquisa para sua tese de doutorado, a historiadora literária Mara Cristina
Vergueiro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), disse ter
confirmado a existência do que desde a publicação dos Diários Secretos de
Humberto de Campos se tornou tema de especulação pública: o affair de
Machado de Assis com a mulher de José de Alencar. A prova seria um romance
inédito de Machado de Assis intitulado Georgiana.
A
tese é controversa. O doutor em Letras Domício Proença Filho, ex-presidente da
Academia Brasileira de Letras, acredita que é preciso cautela antes de atribuir
tal romance ao escritor: “É um estilo ousado, transgressor e atirado demais
para o próprio Machado”, observa. “Ele até chegou a cometer lá seus
desvios de estilo, mas só quando era mais novo. Não acredito que ele tenha sido
capaz duma prosa tão atrevida com Georgiana, mulher de seu grande amigo e
patrono na ABL”.
O
professor Castelar de Carvalho, autor do Dicionário de Machado de Assis
e membro da Academia Brasileira de Filologia diz que “Machado era zeloso das
tradições. Sempre foi conhecido por prosas corretas e estilo sóbrio. Por que
querem lhe atribuir agora esse romance adúltero, com vícios e impurezas?”.
Não faltam dentre os que afirmam a infidelidade de
Capitu a relação com Georgiana Cochrane, a Inglesinha, mulher do amigo José de
Alencar. Os dois que mais enfaticamente relacionaram a obra com a realidade
foram Humberto de Campos e Antonio Carlos Villaça. Este foi contundente.
Em agosto de 1999 Carlos Heitor Cony apareceu com
outra possibilidade e escreveu na Folha de S. Paulo:
“Tornou-se
um lugar-comum crítico: Machado de Assis jamais colocou em seus romances
qualquer elemento autobiográfico. Recentemente, no centenário de
""Dom Casmurro", houve uma enxurrada de celebrações e estudos, a
ninguém ocorreu que o caso de Capitu podia ser confessional.
“Conto o que li em diários e crônicas daquele
tempo, mantendo as iniciais por conveniência, há parentes vivos da pessoa em
questão.
“Todos sabiam da amizade filial de Machado por
M. de A. - simples coincidência nas iniciais. Ao fundar a Academia, indicou-o
como membro da primeira leva, o rapaz tinha então 20 e tantos anos, um único
livro sem valor. Fisicamente, tinha traços de Machado, a mesma testa, o mesmo
cabelo crespo, alguns tiques iguais.
“Indo a um médico, por causa desses tiques,
teve diagnosticada a epilepsia – doença hereditária que tanto maltratara
Machado. Tão discreto quanto o autor de ""Helena", viveu na
sombra, passou anos fora do Brasil. Ninguém entendia o amor que Machado tinha
por ele. Ninguém entendia como os dois poderiam ser tão parecidos fisicamente.
“Dos membros fundadores da Academia foi o
último a morrer.
“Não fora a excepcional amizade de Machado,
teria sido apenas um diplomata a mais.
“Foram pouquíssimos os contemporâneos de
Machado que notaram, nele, a mesma coincidência do filho de Capitu, que se
parecia com o amante dela e não com o pai do rapaz. Há testemunhos disso: o
médico Afonso Mac-Dowell, que cuidava de vários acadêmicos, e Goulart de
Azevedo, que contou a história a Humberto de Campos.
“Sendo verdadeira a suposição, fica encerrada
a questão do adultério. O amante de Capitu era o próprio Machado”.
A discrição de Cony em
nada ajuda a manter o anonimato do membro da ABL que seria M. de A., filho de
Machado de Assis, sem que o seja Mário de Alencar. A revelação apenas afasta a relação
de Machado de Assis com Georgiana Cochrane Alencar, a Inglesinha.
Cony diz que o filho de
Machado de Assis tinha 20 e tantos anos, as iniciais do nome eram M. de A., foi
um dos fundadores da ABL, dentre todos eles o último a morrer e que fora
diplomata. A ABL foi fundada em 1897 e Mário de Alencar somente nela ingressou
em 1905. Portanto, com esta descrição M. de A. não seria Mário de Alencar.
Dos 40 fundadores da
Academia Brasileira de Letras apenas três poderiam usar as iniciais M. de A.,
sendo um deles Machado de Assis.
Antônio Mariano Alberto
de Oliveira tinha mais de 30 anos quando a ABL foi fundada, mas era conhecido
como Alberto Oliveira e se usasse o nome Mariano Alberto poderia ser M. A.
Jamais M. de A.
Oliveira Lima e Graça
Aranha tinham menos de 30 anos quando da fundação da ABL, mas suas iniciais não
se compatibilizam com a descrição do Cony.
De todos os fundadores
apenas um tinha pouco mais de 20 anos e viveu até a década de 60 do século
passado. Em verdade não foi um fundador. Mas um dos dez convidados pelos trinta
fundadores para formar o quantitativo de quarenta, tal como a Academia
Francesa.
Apesar de toda a
especulação, Cony termina o artigo com uma frase enigmática: “Sendo
verdadeira a suposição....”.
A imputação é séria e há descendentes das distintas
senhoras que podem se incomodar com tal correlação. Cony viveu até 2018 e
apesar da descrição de quem poderia ser, não foi incomodado pelos parentes de
M. de A.
Humberto de Campos e Antonio Carlos Villaça cuidaram
de morrer antes que suas obras, que tratavam do tema, fossem publicadas.
Até 28 de março de 2005 o adultério era tipificado
como crime no Brasil e a imputação falsa a pessoa, mesmo morta, poderia
configurar crime de calúnia. Dos crimes contra a honra (injúria, difamação e
calúnia) somente o último é punível no Brasil. Mas podem restar incômodos
pessoais aos sucessores da Inglesinha ou do “Filho do Padre” José de Alencar,
como o chamava D. Pedro II, ou aos descendentes da mãe do jovem fundador da ABL.
Este talvez seja outro enigma porque os que fazem a relação com a realidade não
o façam categoricamente, como o fez Antonio Carlos Villaça
Villaça morreu em 29 de maio de 2005, dois meses após
a descriminalização do adultério, mas antes da publicação d’O Livro dos
Fragmentos. Nem precisava ter morrido. Já não se poderia alegar imputação de
fato criminoso à morta e não poderia ser acusado de calunia.
Dois outros triângulos
amorosos que tiveram como protagonistas escritores brasileiros e, mesmo tendo
resultado em violências, os sucessores dos personagens não se vexam de
reconhecer as virtudes de seus antepassados: um é o caso da escritora feminista
e sufragista Sylvia Thibau, que matou Roberto Rodrigues, irmão de Nelson
Rodrigues. O outro é Euclides da Cunha, morto em legítima defesa por Dilermando
de Assis, amante de sua esposa Ana Emília Ribeiro da Cunha. Dilermando,
absolvido, casou-se com a viúva. Dilermando também se relacionou com Maria
Antonieta de Araújo Jorge, prima do poeta J. G. de Araújo Jorge, com quem teve
uma filha, a escritora Dirce de Assis Cavalcanti. Dirce nunca deixou de expor o
problema no qual seu pai esteve envolvido e luta para mudar a percepção do
público a respeito dele.
Os sucessores de Georgiana Cochrane e José de
Alencar igualmente não hão de se incomodar com a conexão do romance com a
realidade. Afinal, juntamente com Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e
Quincas Borba (1891), que formam a trilogia realista, Dom Casmurro (1899) tem
um ligeiro e soslaio olhar para o Romantismo. Quanto aos parentes do outro M. de
A. não sei o que lhes poderíamos dizer para enchê-los de orgulho por serem
descendentes do Bruxo do Cosme Velho.
Publicado originariamente em https://www.criativos.blog.br/post/machado-de-assis-talaricagem-catarse-ou-fake-news-este-%C3%A9-o-enigma,
no dia 02/07/2024.