O primeiro clássico da literatura brasileira que li foi A
Moreninha. Ainda pré-adolescente minha mãe o entregou-me e explicou como se lê
um livro. Primeiro o título e nome do autor. Depois as orelhas e contracapa, se
tiver. Em seguida os dados sobre a edição, o sumário, a apresentação e o
prefácio. Situado sobre o que se tem na mão começa-se a leitura. O livro tinha
a biografia de Joaquim Manuel de Macedo apresentada por M. Cavalcanti Proença e
prefácio de Raquel de Queiróz. Era um livro de bolso da Ediouro. Guardo-o como
se guarda uma relíquia. Fiquei encantado com quem escrevera a biografia.
Julguei ser alguém que sabia tudo de literatura, tudo sobre a obra e tudo sobre
o autor. Não me enganei. Mais tarde soube que era o professor, literato e
General Manuel Cavalcanti Proença, que introduziu o estudo de literatura na
Academia Militar/AMAN, matéria suprimida depois do golpe empresarial-militar de
1964.
Quando conheci seu filho, o professor, literato e Coronel
Ivan Cavalcanti Proença, cassado pela ditadura por seu legalismo, falei da
admiração que sempre tive por seu pai, desde sempre. E pude conversar com ele
sobre a mais clássica polêmica da literatura brasileira: o possível adultério
de Capitu. Ivan Proença analisa sob o olhar de um crítico literário e afasta
qualquer conclusão ou relação com a realidade. Para ele a obra de Machado de
Assis tem a característica do enigma e, portanto, não faz sentido tentar chegar
a uma conclusão. É um enigma e ponto, tal como o é o estilo machadiano!
Nesta semana chegou-me às mãos um livro usado editado pela
Nova Fronteira, em 2008, intitulado “Quem é Capitu?”. Organizado por Alberto
Schprejer, textos de quatorze notáveis tentam responder à pergunta: Luis
Fernando Veríssimo, Lya Luft, Luiz Fernando Carvalho, Lygia Fagundes Telles,
Mary Del Priore, Fernanda Montenegro, Silviano Santiago, John Gledson, Roberto
DaMatta, Gustavo Bernardo, Luiz Alberto P. de Freitas, Daniel Piza, Otto Lara
Resende e Carla Rodrigues.
O texto do Otto eu o lera quando publicado na Folha de S.
Paulo, em 1992. Eu era leitor do Otto e senti sua morte como de alguém com quem
tivesse convivido pessoalmente. Substituiu-o na coluna da Folha Carlos Heitor
Cony, que também escreveu sobre Capitu, mas não foi incluído no livro. Custei
acostumar ler a coluna do Cony, tendo sempre o Otto como referência da primeira
leitura depois do café da manhã.
Muitos outros autores e textos poderiam ser incluídos na
obra, além de Cony. Não faltam polemistas quando se trata da obra, notadamente
depois do livro “O Enigma de Capitu”, de Eugênio Gomes, de 1967. Aparentemente
até o surgimento desta obra era certo o adultério de Capitu. Este livro foi
quem trouxe a dúvida. É o que escreveu Dalton Trevisan, com quem concordou Otto
Lara Resende.
As conclusões dos autores da obra são diversas.
Fernanda Montenegro não reconhece o adultério, nem o nega.
Sua compreensão da relação está em consonância com aqueles que acreditam
Bentinho seja tal como Otelo e escreve: “Os olhos mostram o que desejamos
ver por meio deles. É sempre também o reflexo, a projeção de quem olha. (...)
Bentinho descreve seu próprio olhar, olhando Capitu”.
Luiz Fernando Carvalho não responde à pergunta e retoma a
questão do enigma surgido a partir de 1967 e diz que “O benefício da dúvida
que Santiago acaba por nos conceder com seu relato é que finda sendo sua
verdadeira redenção”. Mas ao afirmar que “as omissões –
propositadas ou apenas falha de memória – nos fazem intuir que algo parece
sempre fora do lugar”, permite uma interpretação equivalente à que deu
Luiz Fernando Veríssimo e Millôr Fernandes, descritas adiante.
Mary Del Priori é enfática: “Capitu traiu pois Bentinho
conhecia a regra das Escrituras e não a exerceu com competência: ‘Vós maridos,
coabitai com vossas esposas’. Em resumo, se Capitolina não dormia, é porque
Bento, seu marido, adormecia de cansaço”. Tal como numa “tragédia de
costumes” rodriguiana seria Bentinho que haveria de pedir à Capitu perdão por
ser corno.
A crônica de Gustavo Bernardo é narrada por Simão Bacamarte,
que acaba por internar todos na Casa Verde de Itaguaí, inclusive o próprio
Machado de Assis, convertido em personagem de suas obras.
Carla Rodrigues, numa sofisticada narrativa fundada em Freud,
Derrida, Lacan e Nietzsche, se aproxima da discreta narrativa de Luiz Fernando
Carvalho, que igualmente identifica algo fora do lugar: “Os deslocamentos se
multiplicam aqui: Machado desloca o privilégio da feminilidade de Capitu e faz
aparecer também em Bento/Casmurro. (...). A feminilidade se transforma no
elemento traiçoeiro: das verdades asseguradas, das certezas definitivas, da
estabilidade. É com esse feminino que Bentinho se depara, primeiro em Capitu,
depois em sua própria reconstituição narrativa: o feminino que indica a
ausência de certezas em que se apoiar, o feminino da instabilidade e da
impossibilidade de chegar à verdade”. A leitura de Carla Rodrigues tem
por referência sobretudo a obra de Helen Caldwell, O Otelo brasileiro de
Machado de Assis.
Lya Luft admite o enigma e diz que “não sei o que de
verdade houve, não sei qual é a verdadeira Capitu, nem se tive (sic) esse
romance ou se aquilo tudo existiu, provavelmente não saberei nunca”.
Silviano Santiago absolve Capitu: “Instado a dizer
quem é Capitu, respondo: Capitu é o ciúme – ou seja, é a malícia de Dom
Casmurro; é a ‘regra de composição’ do romance machadiano. (...) O ciúme é o
esterco literário de Capitu, garantia de seu florescimento em mulher secreta ou
enigmática, pouco importa”.
John Gledson igualmente coloca Capitu numa posição de
passividade, incapaz de optar seja pelo adultério, seja por um dos personagens.
Diversamente de Virgília, personagem de Memórias Póstumas de Brás Cubas que faz
expressa opção pelo casamento e pelo adultério, Capitu teria sido incapaz de
qualquer opção. Deixou a vida levá-la. “... as mulheres de Machado
frequentemente ‘optam por não optar’; no caso de Virgília, isto significa ter
um casamento feliz e um adultério feliz ao mesmo tempo, ou usar a religião como
uma veste, uma roupagem interior, aconchegante, mas que não é para ser vista de
fora. No caso de Capitu, a frase tem outro significado: seria possível
argumentar que, mais corajosa e de uma classe social diferente da de Virgília,
ela de fato tenta optar, fazer a escolha, mas acaba, fatalmente para ela, por
ser forçada a não optar, a aceitar uma solução de meio-termo em que nenhuma das
questões reais envolvidas no seu casamento não trazidas à superfície”.
Otto Lara Resende escancara a denúncia do adultério de
Capitu. Tratando em crônica na Folha de S. Paulo, em 08 de janeiro de 1992, de
uma questão do vestibular de uma universidade paulista, afirma categoricamente
que “a hipótese aí estampada, de que Capitu não traiu Bentinho, um Bentinho
paranoicamente ciumento qual Otelo, está fundamentada em “O enigma de Capitu”.
Apareceu de fato no ensaio de intepretação de Eugênio Gomes, publicado em 1967.
(...) Dom Casmurro saiu em 1900. Machado morreu em 1908. Nenhum crítico nesses
oito anos jamais ousou negar o adultério de Capitu. Leiam a carta do Graça
Aranha, amigo pessoal do Machado: ‘Casada, teve por amante o maior amigo do
marido.’ Voltem ao artigo de Medeiros e Albuquerque. Dar o Bentinho como ‘o
nosso Otelo” é pura fantasia. Bestialógico mesmo”.
Luis Fernando Veríssimo se manifesta por meio de um
personagem, que é detetive particular, contratado por Bentinho para descobrir o
que faz Escobar e narra: “Juro que uma vez os vi, num momento descuidado, de
mãos dadas, o que me pareceu natural entre colegas de tantas coisas”. Na
sua atividade profissional de investigador viu Escobar entrar com uma mulher “num
quarto alugado por horas e ocupado por duas” e não fez constar do
relatório entregue ao cliente “o nome de quem acompanhava Escobar no
quarto sórdido da Lapa. Era d. Capitu”. Mas o que deveria ser um
encontro entre os quatro para esclarecer a situação revelou-se trágico:
“Na hora acertada, cheguei à praia, onde já estavam os
dois ex-seminaristas. Escobar lia o meu relatório. Com dificuldade, pois
sobrara pouca luz do pôr do sol. Só levantou a cabeça para me olhar quando
terminou a leitura. Sacudiu o relatório e disse:
“- A mulher que estava comigo não está aqui.
“Comecei a responder, mas Bentinho me interrompeu.
“- Não interessa quem era a mulher.
“- Como, não interessa?
“Fui eu que fiz a pergunta, espantado. Não interessava que
a mulher era a d. Capitu?
“- O que interessa – continuou Bentinho – é que você me
traiu.
“Levei alguns segundos para entender. A alegoria moral não
era bem a que eu esperava. Bentinho ainda estava falando.
“- Essa mulher é só uma. Você dever ter me traído com
muitas”.
Millôr Fernandes não fez por menos. Além de afirmar o
adultério ainda descreve cenas das quais resultam a conclusão de uma relação
homoafetiva entre os dois ex-seminaristas:
“PUBLIQUEI, ATRAVÉS DE ANOS, no Estadão, no O Dia e no
Jornal do Brasil – ao todo aproximadamente dois milhões de exemplares -,
‘pesquisa” sobre Dom Casmurro, a obra magna de Machado de Assis. Como minha
página era a capa exterior dos jornais citados, e o assunto era picante – se
Escobar, ‘herói’ do romance, tinha ou não tinha comido a Capitu, eterna e tola
discussão entre beletristas -, devo ter alcançado pelo menos cem mil
desprevenidos. Bom, não apenas mostrei que Escobar comeu a Capitu, como, não
sei não, acho que tirei Dom Casmurro do ‘armário’.”.
Luiz Alberto Pinheiro de Freitas deixa em suspensa a possível
infidelidade de Capitu, ainda que afirme que “havia sido criada uma
propensão ao encantamento de Capitu por Escobar, em virtude da fragilidade de
Bento e das qualidades de Escobar”. Igualmente aponta o encantamento
de Bentinho por Escobar: “Contudo, com um pouco mais de certeza, poderemos
interpretar que o ciúme delirante de Dom Casmurro fala, como mostrou Freud,
muito mais do seu desejo por Escobar do que do desejo por Capitu. Então
horrorizado diante de sua paixão homossexual, ele poderia dizer: Eu, Bento, não
amo Escobar; é ela, Capitu, quem o ama – ao que o psicanalista responderia:
bela denegação!”.
Roberto DaMatta faz coro com a Eugênio Gomes: “A proeza de
Machado de Assis foi transformar um drama cultural num enigma. Se nos
adultérios comuns há sempre uma culpada, neste há mistério”.
Daniel Piza igualmente coloca em questão os comportamentos de Bentinho: “Numa
cena que também poderia ser de uma história romântica, Bento até espera um
último aceno de Escobar antes de dobrar a esquina” e quando
Ezequiel reaparece: “Depois diz que fará uma viagem científica à Grécia,
Egito e Palestina com dois amigos. Bento Pergunta: ‘De que sexo?’. O
filho responde que as mulheres são da moda, não entendem ruínas.”
Por fim, Lygia Fagundes Telles, também no sentido da
incerteza: “E daí, houve mesmo a traição? Olhei-o nos olhos e respirei
fundo. Ah! Confesso que não sei, não sei. É tudo misterioso como aquele mar
acima de qualquer suspeita com suas ondas espumejantes arrebentando nas
pedras”.
Muitos literatos escreveram sobre a obra. Em publicação na
Folha de S. Paulo de 28 de março de 1999 temos os seguintes trechos de textos
ou depoimentos:
José Veríssimo: "(‘Dom Casmurro’ trata de) um
homem inteligente, sem dúvida, mas simples, que desde rapazinho se deixa iludir
pela moça que ainda menina amara, que o enfeitiçara com a sua faceirice
calculada, com a sua profunda ciência congênita de dissimulação, a quem ele se
dera com todo ardor compatível com o seu temperamento pacato."
("História da Literatura Brasileira").
Lúcia-Miguel Pereira: "Capitu, se traiu o marido, foi
culpada ou obedeceu a impulsos e hereditariedades ingovernáveis? É a pergunta
que resume o livro. (...) Há a ideia central de saber se Capitu foi uma
hipócrita ou uma vítima de impulsos instintivos. Em outras palavras, se pode
ser responsabilizada." ("Machado de Assis").
Augusto Meyer: "Capitu é o melhor exemplo daquilo que
Bentinho afirmava, a propósito de si mesmo: "Chega a fazer suspeitar que a
mentira é, muita vez, tão involuntária como a transpiração". Capitu mente
como transpira, por necessidade orgânica." ("Capitu", em
"Textos Críticos").
Antonio Candido: "Dentro do universo machadeano, não
importa muito que a convicção de Bento seja falsa ou verdadeira, porque a
consequência é exatamente a mesma nos dois casos: imaginária ou real, ela
destrói sua casa e a sua vida." ("Esquema de Machado de
Assis", em "Vários Escritos").
Antonio Callado: "Respeitemos um dos dogmas da nossa
literatura, que é o da maculada conceição do filho de Capitu com Escobar.
Cultuemos a sua infidelidade e não afastemos de nós a negra inveja que sentimos
de Escobar." (Na Folha, em 12/10/1994).
Dalton Trevisan: "Até você, cara - o enigma de
Capitu? Essa, não: Capitu inocente? Começa que enigma não há: o livro, de 1900,
foi publicado em vida do autor - e até sua morte, oito anos depois, um único
leitor ou crítico negou o adultério?" (Na Folha, em 23/5/92).
Roberto Schwarz: "("Dom Casmurro') solicita três
leituras sucessivas: uma, romanesca, onde acompanhamos a formação e
decomposição de um amor; outra, de ânimo patriarcal e policial, à cata de
prenúncios e evidências do adultério, dado como indubitável; e a terceira, efetuada
a contracorrente, cujo suspeito e logo réu é o próprio Bento Santiago, na sua
ânsia de convencer a si e ao leitor da culpa da mulher. Como se vê, uma
organização narrativa intrincada, mas essencialmente clara, que deveria
transformar o acusador em acusado. Se a viravolta crítica não ocorre ao leitor,
será porque este se deixa seduzir pelo prestígio poético e social da figura que
está com a palavra." ("A Poesia Envenenada de Dom Casmurro",
em "Duas Meninas").
Em artigo na Folha de S. Paulo, em julho de 1999, Carlos
Heitor Cony, também da Academia Brasileira de Letras, depois de ter sido
testemunha de acusação num julgamento simulado que teve o ex-ministro do STF
Sepúlveda Pertence como presidente do júri, sentenciou: “Capitu traiu o
marido. Nem por isso merece ser condenada. Entre os moradores da rua Cabuçu que
condenavam o Pires por adulterar o leite, e o Cristo que perdoou a adúltera,
fico mesmo com o Cristo”.
As três propostas de leitura de Dom Casmurro feitas por
Roberto Schwartz estão presentes nos textos da publicação que me chegou às
mãos: romanesca, patriarcal-policial e a leitura contracorrente, retirando o
holofote sobre Capitu e direcionando-o para Bentinho, tal como sugerem
escancaradamente Otto Lara Resende, Luiz Fernando Veríssimo e Millôr Fernandes,
e – sofisticadamente – Luiz Fernando Carvalho, Carla Rodrigues, Luiz
Alberto Pinheiro de Freitas e Daniel Piza.
Mas e se a obra for autobiográfica e Machado a tiver escrito
como um mea culpa ou catarse, explicitando o que não poderia
dizer publicamente e às claras? Há criminosos que decorridos tempos de seus
delitos procuram autoridades e relatam o que cometeram, sem o que jamais se
saberia sobre a autoria do delito. Trata-se de modo de se liberar de algo que
aflige; que se pensa sobre alguma situação ou pessoa. A catarse em tal caso é
compreendida como um desabafo e, assim, a pessoa experimenta um estado de
alívio por ter posto para fora o que lhe atormentava.
Machado de Assis era gago e epilético. Eventual desconforto
na alma poderia lhe corroer, também, neurologicamente. Há argumentos e fatos
defensáveis de acordo com a preferência do interlocutor. Talvez, também por
isso, a obra e a vida do autor sejam interessantes.
Antonio Carlos Villaça transpõe a literatura para a
realidade. Assim, a obra deixa de ser romance e assume a natureza de crônica.
Diversamente de Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba, que foram
anteriormente publicados, capítulo por capítulo, em folhetins, Dom Casmurro foi
escrito na forma definitiva de livro, no vigésimo aniversário da morte do amigo
José de Alencar, ou seja, de 1897 a 1898. É dele a afirmação: “Teria Machado
como inspiração dona Georgiana, a inglesinha, a mulher de Alencar, tão sua
amiga, que ele conhecia intimamente. Era grande frequentador da casa de
Alencar. E, quando este morreu prematuramente, aos quarenta e oito anos, em
1877 teve o maior choque de sua vida. Um choque tremendo. Ficou doente. Foi
para Friburgo. Nunca a morte lhe causou uma impressão tão profunda. Continuou
amigo de Mário de Alencar. Jantava com ele aos domingos, na casa de Botafogo. E
ia vê-lo diariamente na Biblioteca da Câmara. Era como um filho. Dom Casmurro é
um romance que se inspira na vida, na vida real. Num drama existencial.
‘Consolava-os a saudade de si mesmos’, como escreveu no Memorial de Aires”.
Villaça foi direto e objetivo ao afirmar não só a relação
entre Capitu e Escobar, do qual resultou o infante Ezequiel, como subtrai a
obra do campo da criação literária e a coloca como narrativa da realidade. Para
ele a obra é biográfica e Machado de Assis tinha um caso com a mulher do amigo
José de Alencar.
Machado de Assis fundou a Academia Brasileira de Letras e
ocupou a cadeira nº 23 cujo patrono é seu amigo José de Alencar, instituidor da
literatura brasileira. Alguns dos autores do livro que acabo de ler foram ou
são membros da ABL. Nenhum deles negou a infidelidade de Capitu. Três foram as
categorias de respostas à pergunta: Capitu traiu Bentinho, a obra é uma
narrativa de um marido ciumento e paranoico e a terceira categoria na qual
estão Otto Lara Rodrigues, Luiz Fernando Veríssimo e Millôr Fernandes: O affair era
entre Bentinho e Escobar.
Para Antonio Carlos Villaça, Machado de Assis era um
Talarico, gíria que expressa quem tenta ou tem relacionamento com mulher
de um amigo ou conhecido; é o fura-olho.
Além de transar com a mulher do amigo, Machado de Assis teria
tirado da sua experiência pessoal o fio condutor do mais celebrado romance da
literatura brasileira.
Machado nasceu em 1839 e seu melhor amigo era José de
Alencar, 10 anos mais velho, filho de um padre. José de Alencar foi casado com
Georgiana Augusta da Gama Cochrane, (Georgiana Cochrane Alencar,
depois de casada), 17 anos mais jovem que o marido, com quem teve seis filhos,
dois homens e quatro mulheres: Augusto Cochrane de Alencar, Elisa Cochrane de
Alencar, Clarice Crochrane de Alencar, Mário Cochrane de Alencar, Cecy Cochrane
Pinto Alencar Alves e Adélia Cochrane de Alencar.
Quando José de Alencar morreu em 1877, Georgiana, a
Inglesinha, tinha 31 anos e seis filhos. Machado de Assis tinha 38 anos. Mas só
o órfão Mário de Alencar, nascido em 1872, “era como um filho” para Machado de
Assis. E foi por toda a vida, tendo ingressado na Academia Brasileira de Letras
em 1905, tornando-se desde logo figura de relevo na sua administração.
Foi Humberto de Campos em seu Diário Secreto quem
possibilitou a difusão da história de que Mário de Alencar poderia ser filho de
Machado de Assis, oportunizando a interpretação de que José de Alencar, filho
de padre, era o Bentinho; Machado de Assis, o Escobar; Georgiana Cochrane, a
Capitu e Mário de Alencar (M. de A.), o Ezequiel. Mas outro M. de A., que
também era querido de Machado de Assis, pode ser o Ezequiel. E o próprio
Humberto de Campos faz a confusão.
Realizando pesquisa para sua tese de doutorado, a
historiadora literária Mara Cristina Vergueiro, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), disse ter confirmado a existência do que desde a publicação
dos Diários Secretos de Humberto de Campos se tornou tema de especulação
pública: o affair de Machado de Assis com a mulher de José de
Alencar. A prova seria um romance inédito de Machado de Assis intitulado
Georgiana.
A tese é controversa. O doutor em Letras Domício Proença
Filho, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras, acredita que é preciso
cautela antes de atribuir tal romance ao escritor: “É um estilo ousado,
transgressor e atirado demais para o próprio Machado”, observa. “Ele até
chegou a cometer lá seus desvios de estilo, mas só quando era mais novo. Não
acredito que ele tenha sido capaz duma prosa tão atrevida com Georgiana, mulher
de seu grande amigo e patrono na ABL”.
O professor Castelar de Carvalho, autor do Dicionário
de Machado de Assis e membro da Academia Brasileira de Filologia diz
que “Machado era zeloso das tradições. Sempre foi conhecido por prosas
corretas e estilo sóbrio. Por que querem lhe atribuir agora esse romance
adúltero, com vícios e impurezas?”.
Não faltam dentre os que afirmam a infidelidade de Capitu a
relação com Georgiana Cochrane, a Inglesinha, mulher do amigo José de Alencar.
Os dois que mais enfaticamente relacionaram a obra com a realidade foram
Humberto de Campos e Antonio Carlos Villaça. Este foi contundente.
Em agosto de 1999 Carlos Heitor Cony apareceu com outra
possibilidade e escreveu na Folha de S. Paulo:
“Tornou-se um lugar-comum crítico: Machado de Assis jamais
colocou em seus romances qualquer elemento autobiográfico. Recentemente, no
centenário de ""Dom Casmurro", houve uma enxurrada de
celebrações e estudos, a ninguém ocorreu que o caso de Capitu podia ser
confessional.
“Conto o que li em diários e crônicas daquele tempo, mantendo
as iniciais por conveniência, há parentes vivos da pessoa em questão.
“Todos sabiam da amizade filial de Machado por M. de A. -
simples coincidência nas iniciais. Ao fundar a Academia, indicou-o como membro
da primeira leva, o rapaz tinha então 20 e tantos anos, um único livro sem
valor. Fisicamente, tinha traços de Machado, a mesma testa, o mesmo cabelo
crespo, alguns tiques iguais.
“Indo a um médico, por causa desses tiques, teve
diagnosticada a epilepsia – doença hereditária que tanto maltratara Machado.
Tão discreto quanto o autor de ""Helena", viveu na sombra,
passou anos fora do Brasil. Ninguém entendia o amor que Machado tinha por ele.
Ninguém entendia como os dois poderiam ser tão parecidos fisicamente.
“Dos membros fundadores da Academia foi o último a morrer.
“Não fora a excepcional amizade de Machado, teria sido apenas
um diplomata a mais.
“Foram pouquíssimos os contemporâneos de Machado que notaram,
nele, a mesma coincidência do filho de Capitu, que se parecia com o amante dela
e não com o pai do rapaz. Há testemunhos disso: o médico Afonso Mac-Dowell, que
cuidava de vários acadêmicos, e Goulart de Azevedo, que contou a história a
Humberto de Campos.
“Sendo verdadeira a suposição, fica encerrada a questão do
adultério. O amante de Capitu era o próprio Machado”.
A discrição de Cony em nada ajuda a manter o anonimato do
membro da ABL que seria M. de A., filho de Machado de Assis, sem que o seja
Mário de Alencar. A revelação apenas afasta a relação de Machado de Assis com
Georgiana Cochrane Alencar, a Inglesinha.
Cony diz que o filho de Machado de Assis tinha 20 e tantos
anos, as iniciais do nome eram M. de A., foi um dos fundadores da ABL, dentre
todos eles o último a morrer e que fora diplomata. A ABL foi fundada em 1897 e
Mário de Alencar somente nela ingressou em 1905. Portanto, com esta descrição
M. de A. não seria Mário de Alencar.
Dos 40 fundadores da Academia Brasileira de Letras apenas quatro poderiam usar as iniciais M. de A., sendo um deles Machado de Assis.
Antônio Mariano Alberto de Oliveira tinha mais de 30 anos
quando a ABL foi fundada, mas era conhecido como Alberto Oliveira e se usasse o
nome Mariano Alberto poderia ser M. A. Jamais M. de A.
Oliveira Lima e Graça Aranha tinham menos de 30 anos quando
da fundação da ABL, mas suas iniciais não se compatibilizam com a descrição do
Cony.
O outro é Carlos Magalhães de Azeredo. Nascido em 1872 tinha apenas 25 quando da fundação da ABL.
M. de A. poderia não ser Mário de Alencar, mas Magalhães de Azeredo.
De todos os fundadores apenas um, Carlos Magalhães de Azeredo, tinha pouco mais de 20 anos
e viveu até a década de 60 do século passado. Em verdade não foi um fundador.
Mas um dos dez convidados pelos trinta fundadores para formar o quantitativo de
quarenta, tal como a Academia Francesa.
Carlos Magalhães de Azeredo era filho
póstumo de Caetano Pinto de Azeredo (morto três meses antes de seu nascimento)
e de D. Leopoldina Magalhães de Azeredo. Capitu pode ter sido inspirada em D.
Leopoldina.
Apesar de toda a especulação, Cony termina o artigo com uma
frase enigmática: “Sendo verdadeira a suposição....”.
A imputação é séria e há descendentes das distintas senhoras
que podem se incomodar com tal correlação. Cony viveu até 2018 e apesar da
descrição de quem poderia ser, não foi incomodado pelos parentes de M. de A.
Humberto de Campos e Antonio Carlos Villaça cuidaram de
morrer antes que suas obras, que tratavam do tema, fossem publicadas.
Até 28 de março de 2005 o adultério era tipificado como crime
no Brasil e a imputação falsa a pessoa, mesmo morta, poderia configurar crime
de calúnia. Dos crimes contra a honra (injúria, difamação e calúnia) somente o
último é punível no Brasil. Mas podem restar incômodos pessoais aos sucessores
da Inglesinha ou do “Filho do Padre” José de Alencar, como o chamava D. Pedro
II, ou aos descendentes da mãe do jovem fundador da ABL. Este talvez seja outro
enigma porque os que fazem a relação com a realidade não o façam
categoricamente, como o fez Antonio Carlos Villaça
Villaça morreu em 29 de maio de 2005, dois meses após a
descriminalização do adultério, mas antes da publicação d’O Livro dos
Fragmentos. Nem precisava ter morrido. Já não se poderia alegar imputação de
fato criminoso à morta e não poderia ser acusado de calunia.
Dois outros triângulos amorosos que tiveram como
protagonistas escritores brasileiros e, mesmo tendo resultado em violências, os
sucessores dos personagens não se vexam de reconhecer as virtudes de seus
antepassados: um é o caso da escritora feminista e sufragista Sylvia Thibau,
que matou Roberto Rodrigues, irmão de Nelson Rodrigues. O outro é Euclides da
Cunha, morto em legítima defesa por Dilermando de Assis, amante de sua esposa
Ana Emília Ribeiro da Cunha. Dilermando, absolvido, casou-se com a viúva. Dilermando
também se relacionou com Maria Antonieta de Araújo Jorge, prima do poeta J. G.
de Araújo Jorge, com quem teve uma filha, a escritora Dirce de Assis
Cavalcanti. Dirce nunca deixou de expor o problema no qual seu pai esteve
envolvido e luta para mudar a percepção do público a respeito dele.
Os sucessores de Georgiana Cochrane e José de Alencar
igualmente não hão de se incomodar com a conexão do romance com a realidade.
Afinal, juntamente com Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e Quincas Borba
(1891), que formam a trilogia realista, Dom Casmurro (1899) tem um ligeiro e
soslaio olhar para o Romantismo. Quanto aos parentes do outro M. de A. não sei
o que lhes poderíamos dizer para enchê-los de orgulho por serem descendentes do
Bruxo do Cosme Velho.
Publicado originariamente em https://www.criativos.blog.br/post/machado-de-assis-talaricagem-catarse-ou-fake-news-este-%C3%A9-o-enigma,
no dia 02/07/2024.