MANIFESTAÇÃO NA 5ª AUDIÊNCIA PÚBLICA
DA COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E LEGISLAÇÃO PARTICIPATIVA DO SENADO FEDERAL,
VISANDO INSTRUIR A SUGESTÃO 8/2014, QUE TRATA DA REGULAMENTAÇÃO DO USO
RECREATIVO, MEDICINAL OU INDUSTRIAL DA MACONHA, RELATIVAMENTE SOBRE OS IMPACTOS
NO JUDIÁRIO E NO SISTEMA PENAL, REALIZADA EM 22/09/2014.
Exmo. Sr. Senador Cristovam Buarque,
na pessoa de quem saúdo os demais senadores,
Meus colegas da Associação Juizes
para a Democracia,
Componentes da mesa,
Senhores e senhoras,
E com satisfação que participo da
continuidade das discussões nesta Casa do Congresso Nacional sobre a
regulamentação do uso recreativo, medicinal e industrial da maconha. Tenho
ciência da falta de consenso nesta casa e na sociedade sobre a liberação desta
droga para uso recreativo e do apoio à regulamentação do seu uso para fins
medicinais.
Por diversas razões aqueles que se
ocupam dos problemas criados pelo proibicionismo defendem a regulamentação da
produção, comércio e consumo das substâncias que o Estado finge poder controlar
exclusivamente por meio de seu aparato repressivo.
Aqueles que se favorecem do
tráfico não têm motivo para participar deste debate. Afinal, têm mercado
garantido e não sofrem as limitações que adviriam da regulamentação. Os que
usam também não têm necessidade do debate, pois têm fornecimento garantido.
O que se ocupam do tema e dos
problemas gerados pelo proibicionismo e são contra o tráfico é que têm motivos
de sobra para se manifestarem pela regulamentação..
Ser a favor da legalização, com
regulamentação, da produção, comércio e consumo das drogas não implica ser a
favor do seu consumo. O que se pretende é reduzir os efeitos danosos do
proibicionismo e que a ordem jurídica não tem o poder de normatizar.
Há os que são contrários à produção,
comércio e consumo da maconha e, portanto, da sua regulamentação, ante o risco
de a maconha levar ao consumo de drogas consideradas mais nocivas.
Não há registro confiável de que o
uso de uma substância possa levar ao uso de outra, assim como o consumo de
bebidas alcoólicas fermentadas não é caminho para o uso de bebidas destiladas
ou outras drogas legais ou ilegais.
Fala-se tão somente dos efeitos
danosos das drogas e o Estado se envolve numa campanha salvacionista sem se
atentar para o outro lado da questão: o bem-estar provocado pelas drogas. Os
que condenam as drogas não concebem o bem-estar que elas proporcionam e os que
as utilizam não concebem os malefícios comprovados e apontados pelos seus
detratores. E no meio destas concepções inconciliáveis surge o Estado com seu
aparato legal e com sua violência a fim de promover a arbitragem por meio da
proibição.
A concepção de bem-estar daqueles
que usam, e pela demanda forçam a oferta, e a concepção de malefícios daqueles
que não querem o uso não pode ser arbitrada pelo Direito e pela força
repressiva do Estado.
A questão é antecedente.
Diversamente das sociedades que conviveram com as drogas para fins religiosos
ou celebrações tradicionais vivemos numa sociedade que difunde a infelicidade
coletiva e propicia a busca da satisfação individual. E para marcar os insatisfeitos o Estado
adentra com o proibicionismo.
É o proibicionismo e a guerra às
drogas que geram a violência contra crianças, idosos, trabalhadores e outras
pessoas que jamais tiveram contato com drogas ilícitas, que pavimentam o
caminho para a corrupção e que matam policiais mandados irresponsavelmente para
o confronto. Morre-se e mata-se em razão da proibição em número assustador,
quando os casos de morte por overdose são raros. Não é o uso das drogas que
mata, mas a luta contra elas. A vida e a saúde pública não são defendidas com o
proibicionismo, pois apenas serve para justificar o aparato repressivo do
Estado e o controle da sociedade.
A Lei Seca nos Estados Unidos
incentivou o desenvolvimento da máfia, da qual Al Capone foi o ícone.
Regulamentado o comércio de bebida alcoólica, a máfia estadunidense teve que
buscar novos negócios. Pessoas que cultivavam videiras e proprietários de
pequenos alambiques clandestinos puderam produzir para consumo familiar sem
necessidade de se armar ante o risco da violência para roubo do produto
proibido.
Diversas entidades pugnam pela
redução dos efeitos danosos resultantes da guerra às drogas a fim de diminuir a
incidência de mortes, crimes e dependência decorrentes da proibição.
Estamos dentre os que advogam a
eliminação da política de proibição das drogas e a introdução de uma política
alternativa de controle e regulação, com medidas restritivas à produção, comércio
e consumo de drogas em razão da idade e dos locais para sua realização, da
mesma forma que existem outras restrições para aquisição ou consumo de álcool,
de tabaco, para direção de veículos e operação de equipamentos pesados.
Uma criança ou adolescente pode
ter dificuldade em comprar bebida alcoólica ou cigarro na maioria dos
estabelecimentos comerciais do país, pois é regulamentado. Mas nada a impede de
adquirir o tipo de droga ilícita que quiser. Aqueles que ganham com o comércio
ilegal têm razões justificáveis, por seus interesses, para a manutenção do
proibicionismo e a guerra às drogas.
Mas, há outro efeito danoso. A violação
da liberdade individual do usuário. Com quase 21 anos de magistratura e tendo
atuado em todas as regiões do Estado do Rio de Janeiro, nos últimos dois anos
assumi a titularidade da 1ª Vara de Órfãos e Sucessões da Comarca da Capital.
Nela deparei-me com os pedidos de interdição de usuários de drogas a fim de
burlar a proibição de internação compulsória e permanente para tratamento.
O que se pode fazer é interditar uma
pessoa usuária de drogas e, pela vontade de seu curador, obter-se o
consentimento para a internação, tal como se fosse internação voluntária. A
vontade do internado pode ser manifestada pelo seu curador, ante a interdição e
nomeação de pessoa para por ele exprimir o consentimento.
Desde a edição da lei nº 10.216 de
06 de abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas
portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde
mental, parcela da comunidade psiquiátrica ficou ouriçada. Nem Simão Bacamarte,
personagem de Machado de Assis, teria sido mais criativo. Clínicas de
tratamento de usuários de drogas, sob pretexto de serem portadores de
transtornos mentais, têm até advogados a postos para obtenção das liminares em
processos de interdição a fim de legalizarem a internação e promoverem a
captação da clientela.
A questão da regulamentação das
drogas há de ser também analisada pelo seu principal viés: o econômico. Todos
os demais fundamentos são subsídio para a análise da questão.
Vou abordar
rapidamente a questão da internação compulsória, que é um viés perverso ao lado
das políticas de combate às drogas que tanta violência propiciam no seio da
sociedade.
Assim é que o interditado, por uso de
drogas, passa a ter sua vontade manifestada por quem seja curador. E,
considerado doente mental, se torna sujeito à internação psiquiátrica, ainda que demandante de laudo médico circunstanciado que
caracterize os seus motivos. Se o médico estiver vinculado à clínica de
tratamento não será difícil caracterizar a necessidade da internação.
A internação
voluntária somente se dá com o consentimento do usuário; a internação
involuntária sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro em casos que
demandem a intervenção e auxílio e internação compulsória é aquela determinada
pela Justiça. O que acontece em alguns casos é que a interdição é utilizada
para transformar a internação compulsória em voluntária, ante a substituição da
vontade do curatelado pela do curador.
A pessoa que solicita
voluntariamente sua internação, ou que a consente, deve assinar, no momento da
admissão, uma declaração de que optou por esse regime de tratamento.
Nas internações psiquiátricas
involuntárias, a fim de prover assistência emergencial, há a necessidade de
comunicação, no prazo de setenta e duas horas, ao Ministério Público Estadual.
Não tenho ciência se isto acontece, tampouco o local para o qual se deveria
dirigir o comunicante.
As internações compulsórias
são determinadas pela justiça levando em conta as condições de segurança do
estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e
funcionários. Como juiz de interdição desconheço o que expressam estes termos,
a fim de justificar a supressão da liberdade de uma pessoa. Mas, posso
assegurar que direitos e liberdades constitucionais são violados em razão da
demonização das drogas caracterizadas como ilícitas.
Em data recente fui
procurado por um pai que queria interditar o filho, pois era usuário de drogas.
Disse-lhe que o caminho era inadequado e que buscasse outros meios de ajudar a
seu filho. O mesmo pai procurou-me posteriormente querendo interditar sua mãe,
pois era quem estaria doando dinheiro ao seu filho, com o qual adquiria drogas.
De novo disse-lhe que deveria ser grato à sua mãe, pois doando dinheiro ao neto
evitava que cometesse crime para sua obtenção ou que fosse morto por dívidas
junto ao comércio ilegal. E de novo disse-lhe buscasse outros meios de ajudar a
seu filho.
Os malefícios à vida
e à liberdade proporcionadas pelo combate às drogas tem sido muito maiores que
as próprias drogas. O proibicionismo mata, mas também deforma um sistema que
deveria ser de saúde. Quando o usuário é pobre ou morador de rua o problema é
mais grave.
Posso afirmar que a internação
compulsória, promovida no Rio de Janeiro no contexto na luta contra as drogas e
que compreende o que se chama de guerra contra elas, não é medida em prol da
saúde ou da sociedade, mas de higienização em favor de interesses econômicos. E,
lamentavelmente o Poder Judiciário do qual sou integrante e que deveria ser
reconhecido pela garantia dos direitos, por vezes, contribui para a violação deles.
Na ‘guerra às
drogas’, as medidas que autorizam a internação compulsória de usuários são um
retorno aos séculos XIX e XX quando se internavam os indesejáveis à ordem política
a pretexto de curá-los.
O proibicionismo tem
gerado mortes, internações, corrupção policial e desestruturação dos serviços
públicos. O recente episódio no Rio de Janeiro envolvendo parlamentar que
comandava o Choque de Ordem e que recolhia usuários de drogas nos dá dimensão
dos problemas criados pelo proibicionismo. Aquele episódio somente não mereceu
maior apuração porque é apenas um tentáculo de um híbrido de polvo com a Hidra
de Lerna.
No combate às drogas A
conduta das autoridades públicas tem mudado de estado para estado. Nos estados
do Rio de Janeiro e São Paulo a ação das autoridades tem sido mais intensa.
Mas, em todo o Brasil, se tem praticado este tipo de violação aos direitos dos
indivíduos tratados como indesejáveis aos olhos de interesses não confessados.
A internação
compulsória de pessoas por motivos diversos não se faz sem custeio e o que
muitos buscam é o lucro decorrente deste tipo de intervenção.
A internação
compulsória de pessoa acometida de transtorno mental, que somente se pode
realizar com autorização judicial, difere da internação involuntária, a pedido
da família, que se faz para atender à necessidade imediata de ajuda a quem
esteja demandando socorro. A diferença pode estar no momento posterior ao
socorro. Já na internação compulsória, a vontade do internado continua a ser desconsiderada
mesmo se voltar a ter condições de manifestá-la. É este tipo de internação que
se tem feito pelo Brasil com as pessoas usuárias de drogas, a pretexto de que
estão acometidas de transtorno mental e para salvá-las do seu uso.
A questão da violação
dos direitos em razão do consumo de drogas denominadas ilícitas está
diretamente relacionada com a classe e o status dos indivíduos na sociedade. A
Lei da Reforma Psiquiátrica, 10.216 de 2001, foi um retrocesso na questão. As
internações de pessoas como Lima Barreto e o líder da Revolta da Chibata João
Cândido, que estiveram em manicômio, haveriam de ser referência para pensarmos
a questão. O médico Juliano Moreira atestou que João Cândido era um líder
rebelde e não deveria ser mantido em manicômio, possibilitando seu julgamento e
absolvição dois anos após a Revolta da Chibata. De forma diferente, poderia ter
ficado confinado por toda a vida.
Após a Constituição
de 1988 o Poder Judiciário no Brasil goza de garantias e possibilidade de
funcionamento em prol da dignidade da pessoa humana, mas as condições
históricas de sua formação ainda tornam os juízes vinculados ao poder político dominante
e interesses econômicos. Muitas decisões reproduzem trechos de discursos
oficiais ou editoriais televisivos. Os juízes, em regra, se vinculam aos
interesses ideológicos de setores hegemônicos e fundamentam suas decisões em
tais retóricas, apartados da ordem jurídica.
A lei 10.216, pensada
tão somente para a internação de pessoas com transtornos psiquiátricos, tem-se
prestado à internação indiscriminadamente de usuários de drogas, sob o
argumento de que um em cada dois dependentes químicos apresenta algum
transtorno mental, e que lhes é comum a depressão. A estigmatização propiciada
pela ilegalidade das drogas se presta a todo tipo de violação aos direitos
fundamentais. Tive acesso a um conjunto de laudos de um medico que sempre
apontava no sentido positivo da interdição de usuário de droga, sob o pretexto
de que a pessoa tinha variação de humor ao longo do dia. Desconsiderava-se que
não era a droga que levava à depressão. O processo era o contrário. Era a
depressão que levava à droga.
Programas de combate aos males decorrentes
do uso de drogas estão produzindo euforia em alguns profissionais e religiosos,
similar ao de algumas drogas.
O abuso no uso de drogas, lícitas ou
ilíticas, é tema de saúde pública, mas, ganhou um viés policialesco ou
salvacionista, pelos que desejam efetuar encarceramento e pelos que se julgam
capazes de salvar almas alheias, não sem remuneração.
Desde que a internação psiquiátrica
compulsória fora vedada, havia profissionais desalentados com a perda do poder
de encarceramento. Hoje, assanham-se com a possibilidade de internação que
chamam involuntária e que distinguem de internação compulsória, embora com o
mesmo efeito sobre o corpo do 'interno'.
O viés de saúde pública quando do
abuso foi abandonado e a questão transferida para as sedes policiais. Em artigo
no jornal fluminense O DIA, por mim replicado em outro artigo, um psiquiatra,
embevecido com a possibilidade de 'internações involuntárias', escreveu que “o
próximo passo é acabar com as marchas da maconha”, ainda que o STF já tenha
decidido que a liberdade de manifestação pela descriminalização e regulametação
das drogas não se confunde com o uso delas.
É indiscutível que uma pessoa drogada
que puder causar dano a outrem há de ser contida; se o causar, deve ser
responsabilizada; se em situação de risco inconsciente deve ser ajudada, mesmo
contra a sua vontade. Mas, uma vez recolocada fora de risco e cientificada do
perigo não se lhe pode negar o direito de conduzir sua vida, ainda que seja
para a autodestruição.
Nenhuma sociedade se
constituiu sem o uso de drogas em suas festividades e cerimônias, notadamente
religiosas, às celebrações e à alegria coletiva. Somente a nossa sociedade
difundiu o uso da droga para a busca do prazer individual.
O problema não está
no uso que se faz da droga ou nas conseqüências posteriores. Nosso problema
está num modelo econômico-político-social que produz a insatisfação, a exclusão
e a infelicidade e propicia a busca do prazer por meio do consumo de drogas
lícitas ou ilícitas. Usuários de drogas mais baratas, por sua maior
vulnerabilidade e desprestígio social, estão mais sujeitos às violações aos
seus direitos de pessoa humana.
A regulamentação da
produção, comércio e uso de drogas pode ser o começo para passarmos a tratar da
questão à luz do dia e vislumbrarmos os efeitos danosos do proibicionismo.
A regulamentação do
uso recreativo, medicinal e industrial da maconha pode não ser a porta de
entrada para o consumo de drogas mais pesadas, mas será a porta de entrada
neste assunto a fim de podermos tratar esta questão com a seriedade que demanda
ser tratada em proveito da sociedade, da ordem jurídica que cotidianamente é
violada em razão do proibicionismo e das instituições que a sociedade
constituiu e que demanda sejam aperfeiçoadas.