A análise dos discursos oficiais
provoca inquietação em decorrência da diversidade existente entre o discurso e
a ação. Dentre os fenômenos que podem explicar tal dicotomia está a
esquizofrenia, que é doença, ou o cinismo, anomalia no caráter.
Esquizofrenia designa transtorno
psíquico caracterizado pela dissociação entre ação e pensamento. Podem ser
delírios ou alucinações. Delírios são crenças no que não é verdadeiro, baseadas
em um julgamento incorreto sobre a realidade.
A condenação de Rafael Braga e a
visualização de potencialidade de dano em sua conduta de morador de rua somente
se justificam pelo delírio que acomete a classe dominante no Brasil que teme o
povo. As alucinações são falsas percepções da realidade.
A Súmula 70 do Tribunal de
Justiça, dispondo sobre a suficiência da alegação policial para efeito de
condenação criminal à qual se reconhece presunção de veracidade, decorre de
falsa percepção do que ocorre na periferia.
O cinismo implica descaso pelos
valores sociais, tais como a invocação da origem divina dos julgamentos e
desconsideração de que o poder é legitimado pelo povo, que os agentes públicos
somente podem fazer o que e a lei manda e que a democracia mais que a razão da
maioria e alternância de poder implica respeito às minorias.
Em tempo no qual o Judiciário se
coloca a reboque da polícia, legitimando arbitrariedades, e quando juízes
garantistas dos direitos dos acusados são perseguidos, surge no seio da
instituição discurso de que o Judiciário precisa se humanizar.
A humanização não pode ser mero
discurso daqueles que vilipendiam a dignidade da pessoa humana. Há de
significar a efetiva realização dos valores com os quais está comprometida uma
ordem que tenha por primado os direitos da pessoa humana.
De nada adianta falar que o
Judiciário precisa se abrir para a sociedade quando tais interações dos juízes
ficam sujeitas a controle disciplinar, salvo se em resorts e custeadas pelo
capital. De nada adianta falar que o juiz deve ser participativo e que a
Justiça não pode ser mera espectadora se cerceia-se o encontro com a sociedade
no seio da magistratura e extinguem-se foros de debates onde estes encontros
eram possíveis. Não se trata de distância entre intenção e gesto. Mas de
discurso e prática. Talvez o problema não seja doença.
Publicado originariamente no
jornal O DIA, em 25/03/2016, pag. 9. Link: http://odia.ig.com.br/opiniao/2017-03-25/joao-batista-damasceno-esquizofrenia-ou-cinismo.html