“...um louco que se
diz rei é menos louco que um rei que se acredita rei acima das circunstâncias.
Todos os papéis sociais que desempenhamos decorrem das circunstâncias nas quais
estamos inseridos. Afinal, desde a decapitação de Luiz XVI o povo descobriu que
o sangue da nobreza também é vermelho e que o poder lhe pertence, ainda que —
numa democracia representativa — diga-se que em seu nome é exercido. Mas, mesmo
ali, o povo continua titular do poder e pode exercitá-lo diretamente”.
Passou o Reinado de Momo. Os
prefeitos das cidades que abdicaram de seus mandos e entregaram as chaves ao
rei da folia sem qualquer cerimônia reassumiram suas funções. As cidades hoje
não são muradas, já não são circundadas por fossos, não têm pontes levadiças
que impeçam a entrada, nem portões que se fechem à noite. Mas a entrega da
chave é um símbolo de um período que não tem governo nem nunca terá. Nenhuma
‘loucura carnavalesca’ é considerada excesso. Tudo é debitado à alegria, à
irreverência e, portanto, justificado. Palhaços, blocos de piranhas com homens
travestidos e outras fantasias caracterizam a fantasia de cada um. É tempo no
qual a loucura é a normalidade. Cada um retira sua máscara cotidiana, se veste
de si mesmo, e as hierarquias se diluem ou se subvertem. Mas, passada a festa,
torna-se tempo de voltar aos papéis sociais que cada um escolheu ou que lhe foi
incumbido exercer.
Os que se dizem reis voltam a se
dizer tais, os governantes, governadores, e os profissionais reassumem os
encargos dos seus ofícios. Mas ninguém é socialmente o que deseja ou pensa que
é. Cada um é aquilo que o próprio meio social reconhece. Um engenheiro só será
um bom profissional se outros lhe atribuírem tal qualidade, pouco importando o
sentido que faça de si.
Pós-Momo, as hierarquias se
restabelecem, e a ordem — ainda que iníqua, degradante e expressiva da desordem
— é reconstituída, com certo grau de reconhecimento por aqueles que poderiam
contestá-la. O sociólogo alemão Norbert Elias, analisando a corte francesa de
Luiz XIV, reconstituiu as práticas sociais palacianas e as hierarquias do velho
regime. As normas informais de comportamento denunciavam o status de cada um.
Mesmo o rei, colocado no trono sob a visão de todos, tinha um comportamento
exigido para continuar no posto soberano. A falta de reconhecimento pelos
súditos podia ser um perigo. Afinal, quem se acreditou soberano suficiente para
desconsiderar seus deveres de buscar reconhecimento acabou guilhotinado.
É Elias quem diz que um louco que se
diz rei é menos louco que um rei que se acredita rei acima das circunstâncias.
Todos os papéis sociais que desempenhamos decorrem das circunstâncias nas quais
estamos inseridos. Afinal, desde a decapitação de Luiz XVI o povo descobriu que
o sangue da nobreza também é vermelho e que o poder lhe pertence, ainda que —
numa democracia representativa — diga-se que em seu nome é exercido. Mas, mesmo
ali, o povo continua titular do poder e pode exercitá-lo diretamente.
Artigo publicado originariamente
no jornal O DIA em 22/02/2015, pag. 20. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2015-02-21/joao-batista-damasceno-reinado-momo-e-loucura.html