sábado, 25 de março de 2023

MINISTRO FLÁVIO DINO: TRIBUTO AO MÉRITO

 

Se a meritocracia é odiosa, por pretender dizer estarem em situação de igualdade pessoas que se encontram concretamente em desvantagens, o mesmo não se pode dizer do mérito. Mérito é o conjunto de características, aptidões ou valores que tornam alguém digno de apreço; são atributos ou qualidades morais ou intelectuais, bem como a aptidão ou capacidade de uma pessoa.

Podemos dizer que o Brasil tem um ministro da Justiça que tem mérito e deve ser reconhecido. A César o que é de César! Em momentos conturbados da vida político-institucional brasileira o Ministro Flávio Dino demonstrou e, tem demonstrado, excepcional capacidade de dar soluções adequadas, com absoluto respeito ao Estado de Direito e à ordem democrática.

No dia 08 de janeiro, quando os prédios dos poderes do Estado em Brasília, incluindo a sede do Supremo Tribunal Federal (STF), foram alvo de ataques terroristas preparatórios para uma intervenção golpista, o Ministro Flávio Dino editou decreto de intervenção federal na área de segurança do Distrito Federal e, sob seu comando, restabeleceu os poderes da legítima autoridade do Estado Democrático de Direito que era desafiada.

Está registrado para a história a eficiência do ministro. Rascunhou um decreto de intervenção, ainda que não numerado, remeteu por WhatsApp ao Presidente da República que o assinou e o devolveu, imprimiu o decreto assinado, sem numeração, e entregou uma cópia ao interventor nomeado para que pudesse tomar as decisões de restabelecimento da ordem na Praça dos Três Poderes. Fora sugerido ao ministro a decretação de uma GLO, Garantia da Lei e da Ordem, com convocação das Forças Armadas.

GLO é um instrumento jurídico excepcional que permite ao presidente da República empregar as Forças Armadas em casos de esgotamento das tropas de segurança pública e perturbação da ordem. Foi a prática desarrazoada das GLOs, notadamente no Rio de Janeiro, o que retirou os militares dos quarteis e os trouxe para a política, possibilitando que alguns ameaçassem os próprios poderes do Estado com o fundamento, autodeclarado, de que são um poder moderador.

Tivesse no dia 08 de janeiro sido decretada uma GLO alguns militares golpistas talvez pretendessem estar no Plano Piloto da Capital Federal até esta data. Não tendo havido tal designação dos militares, o que a eficiência da atuação do Ministro Dino demonstrou a desnecessidade, hoje, diante dos transtornos causados por criminosos, oportunistas e vândalos no Rio Grande do Norte, há quem volte a propor o emprego das Forças Armadas para atuação interna no país. Em recente entrevista o ministro deu lapidar aula de institucionalidade. Disse:

“Diante de uma crise você não pode ter posição dogmática; posição rígida. Você adequa o seu planejamento à necessidade. O artigo 144 da Constituição Federal define o que é segurança pública no Brasil. E isso não inclui as Forças Armas. As Forças Armadas são uma espécie de remédio extremo. Quando o sistema de segurança pública federal e estadual entram em colapso absoluto - que não é a situação que nós no RN - é que você busca a chamada GLO, Garantia da Lei e da Ordem, [com aplicação do] art. 142 da Constituição, lembrando que as Forças Armadas não integram o sistema de segurança Pública. Ás vezes por razões ideológicas apenas, ou da violência política a que fiz alusão, há uma fantasia sobre GLO. Se GLO fosse remédio para tudo não existiria mais desmatamento na Amazônia brasileira, porque já houve dezenas de GLOs na Amazonia. Se GLO fosse remédio para tudo não haveria mais violência no Rio de Janeiro, porque já houve várias GLOs no Rio de Janeiro. Então é preciso dimensionar as coisas com seriedade. E nós temos seriedade. Se precisar de GLO quem vai pedir é a governadora. E, claro que nós vamos atender, se for necessário. Ou seja, não há uma posição ideológica nossa. Nem no sentido de fazer amanhã, nem no sentido de rejeitar. Isto é uma decisão técnica. E essa decisão técnica é definida não por vontade política de quem quer fazer espetáculo político. Mas é definida exclusivamente por indicadores. Os indicadores [hoje] justificam uma GLO? Não! E amanhã? Vamos ver! Se houver (...) uma nova escalada nós vamos conversar com a governadora. Neste momento o sistema de segurança pública está conseguindo enfrentar a crise. Forças Armadas fazem guerra. Forças Armadas são para a defesa da soberania; guerra externa. Só se coloca as Forças Armadas na segurança pública quando há um colapso absoluto da segurança. Esta é a definição doutrinária, jurídica e constitucional que nós vamos cumprir. Porque nós não estamos aqui para sermos irresponsáveis ou para fazer fake News ou espetáculo político”.

O Ministro Flávio Dino tem notável formação intelectual, bem como traquejo para as formulações de políticas públicas, sem gerar problemas para a ordem institucional, como demonstrou nestas duas ocorrências analisadas. Tem vida pregressa orientada pelos princípios que regem o Estado de Direito e a democracia, bem como - em outras oportunidades - já provou ser imune à mosca azul da ambição política ou da soberba capaz levar os homens públicos ao cadafalso. Neste rumo será possível recolocar o Brasil nos trilhos para seguirmos adiante.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 25/03/2023. Pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/03/6600047-joao-batista-damasceno-ministro-flavio-dino-tributo-do-merito.html


quarta-feira, 15 de março de 2023

DEMOCRACIA E RECONSTRUÇÃO NACIONAL

 

 

Inicialmente gostaria de saudar o Movimento de Defesa da Economia Nacional/MODECON, pela retomada de suas atividades, bem como o Instituto Brasileiro de Estudos Políticos/IBEP organizadores deste nosso encontro.

Solicitou-me o presidente do Movimento de Defesa da Economia Nacional/MODECON, Prof. Lincoln Penna, viesse a um encontro para reflexão sobre o tema ´Democracia e Reconstrução Nacional´.

Não poderia recusar uma convocação dessa natureza, notadamente por se tratar de um movimento fundado por Barbosa Lima Sobrinho, jornalista e advogado, que se notabilizou pela defesa dos interesses do povo brasileiro, das liberdades e da democracia.

Se esta já seria razão suficiente para impossibilitar o declínio ao convite outra razão se apresentou de imperativa aceitação: a situação na qual se encontra o MODECON, que sempre foi acolhido na Casa de Barbosa Lima Sobrinho, a ABI, e neste momento somente lhe disponibilizam possibilidade de reunião mediante pagamento por horas da sala ocupada, com o aluguel de no mínimo 3 (três) horas por reunião.

Não se trata de decisão de toda a ABI. Na qualidade de Conselheiro titular não endosso tal exigência que afronta o legado de Barbosa Lima Sobrinho. Trata-se de decisão de sua atual diretoria.

Mas há outros lugares nos quais aqueles que defendem a democracia, as liberdades e os interesses do mundo do trabalho podem se reunir. E neste sentido há que se registrar a recepção por este Clube de Engenharia cuja história está vinculada aos interesses do povo brasileiro.

Antes de adentrar o tema reconstrução nacional falemos de democracia. Mas que democracia?

Podemos abordar a democracia por pelo menos 3 (três) vertentes:

·       - Teoria clássica aristotélica contida nas três formas de governo (monarquia, aristocracia e democracia x tirania, oligarquia e demagogia);

·       - Teoria medieval de origem romana: soberania popular ascendente, do povo para o príncipe ou descendente do príncipe até o povo.

·       - Teoria contemporânea: republicana.

 E mesmo quando falamos do conceito de república precisamos decodificar de que república falamos. Quando Maquiavel fala nas formas de domínio sobre as pessoas, República e Principado, pode não estar se reportando à democracia e à aristocracia, embora historicamente a democracia fosse identificada com a república.

Platão já definira a democracia como “governo do número”, “governo de muitos” e “Governo da multidão”. Da concepção romana (de poder popular) surgiu e cresceu na Idade Média a distinção entre a titularidade e o exercício do poder, reconhecendo o povo como titular do poder, porque pelos seus costumes e práticas é que dá eficácia ao comando emanado do Estado.

Ao longo do século XIX a discussão democrática foi acentuada entre a concepção liberal e socialista.

Para a concepção liberal de democracia basta-lhe a força numérica. Daí se dizer que a democracia é a força política do número, pouco importando o interesse a ser defendido pelos representantes da maioria transitória, a defesa efetiva dos interesses da maioria consultada ou o dever de coexistência respeitosa com a minoria.

Hoje, diante da barbárie que se avizinhou tomamos a defesa da democracia tal como a concebem igualmente os liberais, como um sistema de livre manifestação de pensamento, alternância de poder com eleições livres e com instituições estatais garantidoras da ordem e redutoras das incertezas do futuro.

Este modelo de democracia que hoje se apregoam, diante das nuvens da calamidade que se avizinharam e que ainda não se dispersaram, é o modelo reformado da democracia instituída quando a burguesia concluiu a tomada do aparelho de Estado, cujo símbolo – e talvez não seja o marco – é a Revolução Francesa.

O modelo de democracia liberal, com instituições jurídicas e repressivas garantidoras dos interesses da classe que chegou ao poder destronando a nobreza, foi formatada por juristas. E por isto os juristas têm sido tão demandados no presente momento. Fosse outra a demanda dos interesses hegemônicos não seriam os juristas os agentes demandados, mas aqueles que detém as armas.

Para compreender a relevância das instituições jurídicas, em nome das quais se falam no presente momento, precisamos recorrer uma afirmativa de Max Weber. Na Assembleia Constituinte Francesa a maioria dos constituintes era composta de advogados. Diz ele que:

“Quem percorra os registros do Parlamento de Paris ou os anais dos Estados Gerais franceses, desde o século XVI até 1789, aí encontrará presente o espírito dos juristas. E quem passar em revista as profissões dos membros da Convenção, quando da Revolução, encontrará um único proletário – embora escolhido segundo a mesma lei eleitoral aplicável a seus colegas burgueses. Em oposição a isso, encontrará numerosos juristas de todas as orientações, sem os quais seria absolutamente impossível compreender a mentalidade radical desses intelectuais ou os projetos por eles apresentados. Desde essa época, o advogado moderno e a democracia estão ligados. Por outro lado, só no Ocidente é que se encontra a figura do advogado no sentido específico de uma camada social independente e isso desde a Idade Média, quando eles se multiplicaram a partir do “intercessor” (Fursprech) do processo germânico, sob influência de uma racionalização de procedimentos. (Weber, Max. Ciência e Política: duas Vocações. São Paulo: Ed.  Cultrix, 1993:77).

Discussão tomou como base a concepção de Benjamin Constant exposta em discurso sobre A liberdade dos antigos comparada com a dos modernos. Para Benjamin Constant, tribuno eloquente, na segunda parte da Revolução Francesa a liberdade que dever ser promovida é a liberdade individual perante o Estado. E tratava a liberdade dos antigos danosa, por permitir a todos participação nos problemas do Estado e nos destinos da sociedade.

A democracia liberal se coloca no dilema entre a liberdade do indivíduo perante o Estado x liberdade de participação na elaboração das leis.

A democracia liberal é aquela na qual o Estado reconhece e garante alguns direitos fundamentais, como os direitos de liberdade de pensamento, de religião, de imprensa, de reunião etc...

Na democracia liberal o poder de fazer leis fica restrito a um corpo de representantes, excluída participação direta.

A questão da democracia liberal está restrita ao tamanho do corpo eleitoral. Porém, pugna pela manutenção dos interesses estabilizados, sem ampliação da participação geral no produto do trabalho social.

A democracia liberal se fez ampliando paulatinamente o corpo eleitoral: grau de instrução, idade, sexo ...

Eleição sempre houve, assim como partidos. Mesmo nas monarquias absolutistas a nobreza formava partidos palacianos e promovia votações. Tratava-se de um sistema no qual o povo não participava, nem se admitia que tivesse direito de participar dos debates.

A restauração do Trono português após a União Ibérica decorreu de um ajuste e portanto, da votação entre as Casas que almejavam o trono. Da mesma forma, quando das Guerras Napoleônicas que propiciaram a vinda da Família Real para o Brasil em 1808 havia os partidos inglês e francês na nobreza portuguesa.

Claro, não estamos falando de partidos, constituídos como pessoas jurídicas, com objetivo de captação de voto popular, tal como os que conhecemos. Mas grupos de interesses articulados e que influíam nas decisões da realeza.

Um exemplo de que eleição sempre ocorrem, mesmo nos regimes mais fechados, é a ditadura empresarial militar que elegia general a ser empossado na presidência da República. Claro que o corpo eleitoral estava limitado ao Estado Maior das Forças Armadas, com direito a desconsideração do resultado e golpe no “eleito” como o foi em detrimento do general Albuquerque Lima, que obtivera a maioria dos votos, e em favor do General Garrastazu Médici.

Foi a ampliação do corpo eleitoral, para além da nobreza, estendendo-se ao povo (inicialmente à burguesia) que propiciou a formação de partidos, tal como o conhecemos hoje.

O conceito de democracia liberal é meramente formal e indica uma institucionalidade despida de fim e onde todos são colocados em igualdade jurídica, mesmo que ostentando status distintos na ordem econômica e social. Daí que perpetua a desigualdade. Diversamente um conceito de democracia substancial indica um conjunto de fins, dentre os quais a igualdade social, juridica e econômica.

Para o liberalismo o sufrágio universal é o ponto de chegada da democracia formal; para Engels o sufrágio universal é o ponto de partida para a democracia substancial.

Se a democracia não se restringe ao sufrágio universal, e se este é o ponto de partido para aquela, que democracia almejamos?

O liberalismo nos permite a democracia representativa. Diversamente uma democracia substancial, que pode ser tanto direta quanto forem as distribuições de centro de poder, se faz com a participação popular e controle dos órgãos políticos. Uma democracia substancial não só possibilita a participação nos órgãos encarregados da edição das leis, mas sobretudo na participação do resultado do trabalho social.

E se hoje falamos da participação no que foi socialmente produzido, para o que é fundamental a ampliação do controle popular sobre o aparelho do Estado, não podemos descuidar que a acumulação capitalista propiciou o deslocamento dos centros de poder dos órgãos tradicionais do Estado para as corporações e destas para centros financeiros.

Na empresa tradicional algum controle do poder era possível com os conselhos de fábrica; no capitalismo financeiro o poder se encontra além da direção da empresa, da corporação ou do conglomerado. O gerente, presidente ou CEO (Chief Executive Officer) é mero empregado de um poder que está invisibilizado.

As concepções sobre a democracia enquanto capacidade de intervir nos órgãos do Estado, controlando sua atuação, ganha realce se considerarmos o deslocamento do centro de poder. No capitalismo financeiro mesmo a empresa se torna refém e agente da apropriação do trabalho social e transferência de renda do mundo do trabalho para o mundo do capital.

Esta problematização se faz relevante quando abordamos o tema RECONSTRUÇÃO NACIONAL.

O que reconstruir?

·           Instituições estatais ameaçadas pela barbárie negacionista ou

·           Economia, dilapidada pelo sistema financeiro internacional, que Leonel Brizola dizia promover as ´perdas internacionais´.

A reconstrução institucional, com fortalecimento dos órgãos do Estado, esbarra na multifacetação da sociedade. A precarização do mundo do trabalho dificulta a organização dos trabalhadores na defesa de seus interesses de classe. Assim, setores da sociedade têm se aglutinado em torno de bandeiras identitárias: gênero, etnia, etarismo etc, com subcategorias (diversidade sexual, colorismo etc...) e discursos, por vezes, antagônicos que se contrapõem aos interesses comuns da classe na qual estão inseridos.

Por outro lado, a reconstrução econômica não pode ser feita sem consideração aos interesses diretos e concretos do mundo do trabalho e daqueles que o compõe.

Uma reconstituição que vise a atribuir poderes aos conglomerados, a pretexto de competirem com conglomerados estrangeiros pode tão somente constituir oligarquias nacionais associadas ou a serviço de conglomerados outros, controlados – todos – pelo capital financeiro internacional.

Exemplo disto temos a formação de um gigante no ramo dos frigoríficos, das cervejarias, da rede de fast foodies, instituições privadas de ensino etc... Nada vou falar de um dos acionistas, que juntamente com outros dois eram majoritários de uma das maiores redes varejistas do Brasil e que é – ou foi - o CEO de alguns desses conglomerados.

O controle de alguns conglomerados é de fundos de investimentos. Muitos adquirem empresas sólidas. Sugam os seus recursos e os entregam à recuperação judicial, muitas vezes com algum prejuízo aos credores, ou à falência, com total prejuízo aos credores, tal como os gafanhotos que destroem uma plantação.

As empresas hoje se constituem reféns de fundos de investimentos que lhes sugam os recursos, tal como igualmente faz o capitalismo financeiro com as nações. Esta é a tônica do embate atual entre o presidente da república com o Banco Central. A alteração de alguns décimos na taxa de juros pode implicar na transferência de vultosas importâncias do mundo do trabalho para os integrantes do mundo do capital. Uma ínfima alteração na taxa de juros pode constituir um bilionário da noite para o dia, sem a possibilidade de intervenção do Estado, uma vez que constituída uma autoridade monetária imune aos poderes conferidos pelo voto popular. Autoridade monetária imune ao poder político é a característica da autonomia do Banco Central.

Assim, não é possível falar em democracia, quando a economia está gerida por quem não se submete à vontade popular. Da mesma forma não se pode pretender a reconstrução nacional, sem um projeto efetivamente nacional, visando aos nacionais, destinado ao mundo do trabalho. A constituição de conglomerados a pretexto de reconstrução da economia nacional, no máximo poderá resultar em formação de oligarcas, precarização do mundo do trabalho, e dispensa massiva de mão de obra a depender de programas assistenciais que por vezes podem se transmudar em assistencialismo asfixiador da própria democracia.

Vivemos sob escombros, ouvi hoje da professora Nadine Borges. Mas estamos vivos e fortes. Qualquer raio de luz pode nos encantar, tal como a democracia liberal, mas ao nos livrarmos do entulho precisamos removê-lo, continuar a caminhada para uma democracia substancial e iniciar a reconstrução do país que almeja a classe trabalhadora do campo e das cidades.

Muito obrigado.


Palestra proferida no Clube de Engenharia, no dia 14/03/2023.

sábado, 11 de março de 2023

Terceirização e trabalho escravo

 

Ao fim da Idade Média o expansionismo português se estendeu ao mundo. O capitalismo comercial estabeleceu definitivamente a globalização. O Estado Português construiu fortificações em toda a costa brasileira, nas costas oriental e ocidental da África, na Índia, na China, nas Filipinas e outros lugares do Oceano Pacífico. Ao tempo da ocupação do Brasil, Portugal tinha uma população de dois milhões de habitantes. Quase metade rumou em direção às novas terras conquistadas em busca de riquezas. Mas um problema se apresentou: quem trabalharia? Não seriam os fidalgos portugueses que se disporiam a lavrar a terra, escavar para tirar ouro, plantar cana para fazer açúcar ou a fazer os carregamentos dos fardos para encher os navios com as riquezas pilhadas dos povos dominados.

A história das sociedades é a história das lutas daqueles que são forçados a realizar os trabalhos com aqueles que se apropriam e gozam do resultado do trabalho. Assim foi a colonização do Brasil. Havendo demanda por mão de obra num reino tão vasto como o Português depois das navegações, a aristocracia portuguesa lançou mão da escravização da população africana. Com esse propósito estimulou rivalidades, promoveu guerras entre povos e instituiu um largo comércio de pessoas pelo mundo.

Toda a atividade empresarial portuguesa no período das Grandes Navegações se fez com algum tipo de associação com a Inglaterra. O próprio surgimento do Estado Português coincide temporalmente com a conquista da Grã-Bretanha pelos normandos em 1066, dando origem à atual aristocracia e elite britânica. Portugal e Inglaterra constituem a mais antiga aliança entre nações que o mundo conhece. Até o padroeiro é o mesmo: São Jorge. Se a América demandava escravização de pessoas para trabalho forçado a Inglaterra cuidou de prover, tanto para suas colônias na América do Norte quanto para a América Central, do Sul e Antilhas. As cidades da costa oeste da Grã-Bretanha cresceram com seus portos exportadores de gente.

A voracidade da exploração exterminou a população indígena e escravizou pessoas da África para trabalhos nas minas e engenhos de açúcar.  O capitalismo e a escravidão africana uniram-se num laço indissociável e propiciaram a acumulação de capital em grande escala. Assim, se fez mundial e transmudou-se de comercial para industrial. O ouro das Minas Gerais, cuja pilhagem foi obstada por Borba Gato, Felipe dos Santos e por Tiradentes, acabou nos cofres ingleses e aceleraram o processo de industrialização daquele país.

Mas o sistema traz as suas próprias contradições. O desenvolvimento do capitalismo industrial demandou mercados e a Inglaterra, senhora do comércio internacional de pessoas escravizadas, passou a advogar a ‘libertação dos escravos’ a fim de constituir uma sociedade de consumo. A mesma Inglaterra que se constituíra e acumulara capital com a mão de obra escravizada demandava a mão de obra livre e assalariada propícia ao consumo das quinquilharias que produzia. O trabalho livre tornou-se mais lucrativo, pois a importação e manutenção da mão de obra escravizada demandava alto investimento de capital, constituía mercado consumidor e o trabalhador livre não demandava despesas com a manutenção de sua sobrevivência.

O trabalhador livre estava livre de tudo. Livre inclusive da possibilidade de ser proprietários dos meios para a produção. A Lei de Terras no Brasil, de 1850, impedia a ocupação de terra produtiva por quem não pudesse comprá-la. Foi uma forma de impor que algumas pessoas trabalhassem para quem as pudesse adquirir. Em discurso no parlamento alguns deputados imperiais chegaram a questionar a possibilidade de distribuição de terras aos pobres e perguntavam: se todos tivessem terra quem trabalharia nas suas? A propriedade dos trabalhadores livres se constituía – unicamente - na força de trabalho, passível de ser vendida aos empregadores nos meios de produção que detinham. Empregador é quem emprega força de trabalho alheia em seus meios de produção. O trabalho é o que produz.

A ameaça dos trabalhadores organizados de tomar os meios de produção domesticou o capital e foi razão da regulamentação das relações de trabalho, fornecimento de bens e serviços indispensáveis à vida com dignidade e instituição do estado do bem-estar social. Mas o neoliberalismo pretende o retorno do mundo do trabalho ao período anterior ao das leis trabalhistas. A reforma trabalhista que possibilita a terceirização, isentando de responsabilidade o tomador do serviço e empregador da mão de obra, expressa o retorno à exploração desmedida do mundo do trabalho. A prática das vinícolas gaúchas em cujas propriedades foram encontrados ‘boias-frias’ em situação análoga a de escravos expressa o rumo que a relação capital-trabalho está tomando. Se o mundo do trabalho não reagir sua precarização poderá se acentuar. Houve reação da sociedade e os produtos das vinícolas chegaram a ser rejeitados em certas empresas comerciais. A venda de suco no Armazém do Campo, que fica na Rua Mem de Sá, na Lapa, no Rio de Janeiro, produzido em cooperativas de trabalhadores do MST, portanto livres da precarização, chegou a aumentar 200%.  A humanidade por vezes tende retornar à barbárie. A história recente do Brasil nos comprova esta possibilidade. Mas também reinventa sua história rumo ao horizonte.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 11/03/2023, pag. 14.