terça-feira, 8 de outubro de 2019

Necropolítica: por que a polícia atira em favelados?

O filósofo e pensador camaronês Achille Mbembe, Professor de Ciência Política na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, África do Sul, é autor do livro “Necropolítica”, onde diz que “a expressão máxima da soberania reside em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer”, razão pela qual “matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais”. O soberano ou quem age em seu nome pode matar de várias formas, inclusive “mirando na cabecinha”.

Uma desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, das mais competentes e coerentes, perguntou-me porque eu acreditava que policiais atiravam a esmo para dentro das favelas. A pergunta me estagnou. Não adiantaria relatar conversas com policiais que me disseram já terem se protegido atrás de uma pilastra de concreto, apoiado o fuzil no ombro e “sentado o dedo” na direção que poderiam estar os que pretendiam atingir. Já ouvi a expressão “com certeza acertei gente”, sem demonstração de preocupação se acertara quem desejava, um pai de família, uma dona de casa ou uma criança.

Para a resposta à amiga, de quem divirjo quase sempre, precisava de uma reflexão e resposta que não se limitasse à minha limitada experiência, apesar de 26 anos de contínuo exercício como juiz, sendo 18 na Baixada Fluminense, além das relações que me possibilitam juízo sobre tais ocorrências.

A resposta do porquê policiais atiram a esmo para dentro das favelas está no exercício do poder e na necessidade de afirmarem o senso de autoridade que acreditam ter. Além do desmedido senso de autoridade, quando policiais não o são, pois se reduzem a meros agentes de autoridade, acresce-se a desumanização daqueles que são tratados como indignos de viver, porque não rentáveis. As empresas de comunicação dão a sua colherada de contribuição promovendo a espetacularização das ocorrências.

Num país que desumanizou pretos durante 300 anos e os tratou como objetos não é de se estranhar a permanência do sentimento que possibilita a exclusão, que é capaz de abominar o princípio constitucional da inocência e de negar o direito à vida. Por isso, há instituições capazes de julgar um praça que seja pego para bode expiatório. Mas, inexistem instituições nacionais capazes do controle da politica de extermínio e submissão da cadeia de comando ao banco dos réus. Talvez o único apelo seja para o Tribunal Penal Internacional que julga autores de crimes contra a humanidade.


Quem exercita poder costuma rotineiramente impor alguma sanção ou promover alguma premiação a fim de relembrar quem exerce a autoridade e manter a legitimidade conquistada. Por vezes, a violência que é própria do exercício do poder é exercida tão somente para reafirmar o senso de autoridade. Na medida em que os cidadãos não mais legitimam a autoridade e seus agentes, há uma tendência a instituir o mando pela força, instalando-se o autoritarismo. Policiais, sem efetivo poder de mando, descrentes da própria hierarquia a que estão subordinados, tentam estabelecer sobre moradores na periferia e favelas um comando desmedido não amparado pela lei; por meio da violência tentam obter uma obediência incondicional que não conseguem com base na crença da legitimidade de suas ações, porque as mazelas de alguns são testemunhadas por quem não vive em gabinetes. É neste contexto que autoridades se tornam autoritárias e agentes de autoridades em agentes do extermínio, arregimentando-se em milícias. A situação adquire maior gravidade quando avançando sobre o poder político, as milícias chegam ao poder.


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 08/10/2019, pag. 10. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2019/10/5805860-joao-batista-damasceno--necropolitica--por-que-a-policia-atira-em-favelados.html

Necropolítica: por que a polícia atira em favelados?


O filósofo e pensador camaronês Achille Mbembe, Professor de Ciência Política na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, África do Sul, é autor do livro “Necropolítica”, onde diz que “a expressão máxima da soberania reside em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer”, razão pela qual “matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais”. O soberano ou quem age em seu nome pode matar de várias formas, inclusive “mirando na cabecinha”.
Uma desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, das mais competentes e coerentes, perguntou-me porque eu acreditava que policiais atiravam a esmo para dentro das favelas. A pergunta me estagnou. Não adiantaria relatar conversas com policiais que me disseram já terem se protegido atrás de uma pilastra de concreto, apoiado o fuzil no ombro e “sentado o dedo” na direção que poderiam estar os que pretendiam atingir. Já ouvi a expressão “com certeza acertei gente”, sem demonstração de preocupação se acertara quem desejava, um pai de família, uma dona de casa ou uma criança.
Para a resposta à amiga, de quem divirjo quase sempre, precisava de uma reflexão e resposta que não se limitasse à minha limitada experiência, apesar de 26 anos de contínuo exercício como juiz, sendo 18 na Baixada Fluminense, além das relações que me possibilitam juízo sobre tais ocorrências.
A resposta do porquê policiais atiram a esmo para dentro das favelas está no exercício do poder e na necessidade de afirmarem o senso de autoridade que acreditam ter. Além do desmedido senso de autoridade, quando policiais não o são, pois se reduzem a meros agentes de autoridade, acresce-se a desumanização daqueles que são tratados como indignos de viver, porque não rentáveis. As empresas de comunicação dão a sua colherada de contribuição promovendo a espetacularização das ocorrências.
Num país que desumanizou pretos durante 300 anos e os tratou como objetos não é de se estranhar a permanência do sentimento que possibilita a exclusão, que é capaz de abominar o princípio constitucional da inocência e de negar o direito à vida. Por isso, há instituições capazes de julgar um praça que seja pego para bode expiatório. Mas, inexistem instituições nacionais capazes do controle da politica de extermínio e submissão da cadeia de comando ao banco dos réus. Talvez o único apelo seja para o Tribunal Penal Internacional que julga autores de crimes contra a humanidade.
Quem exercita poder costuma rotineiramente impor alguma sanção ou promover alguma premiação a fim de relembrar quem exerce a autoridade e manter a legitimidade conquistada. Por vezes, a violência que é própria do exercício do poder é exercida tão somente para reafirmar o senso de autoridade. Na medida em que os cidadãos não mais legitimam a autoridade e seus agentes, há uma tendência a instituir o mando pela força, instalando-se o autoritarismo. Policiais, sem efetivo poder de mando, descrentes da própria hierarquia a que estão subordinados, tentam estabelecer sobre moradores na periferia e favelas um comando desmedido não amparado pela lei; por meio da violência tentam obter uma obediência incondicional que não conseguem com base na crença da legitimidade de suas ações, porque as mazelas de alguns são testemunhadas por quem não vive em gabinetes. É neste contexto que autoridades se tornam autoritárias e agentes de autoridades em agentes do extermínio, arregimentando-se em milícias. A situação adquire maior gravidade quando avançando sobre o poder político, as milícias chegam ao poder.