sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Adeus ao amigo Sílvio Tendler!

 


As fotos registram dois dos muitos encontros que tive com meu amigo Sílvio Tendler. Todos recheados de ironia, sarcasmo e seriedade. Mas nenhum com sisudez.

O pássaro no meu ombro, na foto à esquerda, é Renè. O nome francês é porque o Silvio não sabia o sexo do animal. Daí que poderia manter o nome quando descobrissem ou ele declarasse ser do sexo masculino, feminino, interssex ou neutro. Sem embarcar no identitarismo, Sílvio ria da situação. Passei longos momentos conversando com Sílvio, com a participação do Renè. Renè participava das conversas e repetia o som que emitíamos ao fim de cada frase. Renè assobiava A Internacional (quando queria). Na maioria das vezes emitia uns sons que não sabíamos o que significava, mas o incluíamos na conversa. E era muito divertido. A foto é de 02 de março de 2024. Numa das internações hospitalares do Sílvio, Renè – sentindo sua falta – saiu pela janela para procurá-lo e nunca mais voltou.

A outra foto registra a exibição e debate do documentário do Sílvio “Os Advogados Contra A Ditadura”. Nela estão o Silvio, a inigualável Eny Moreira, Modesto da Silveira e eu. Sem os três eu me sinto órfão mais uma vez.

Com o Sílvio eu me divertia fazendo coisas sérias. Numa delas foi numa reunião do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), onde ambos éramos Conselheiros Titulares, e uma corja indecente queria punir um idoso que – durante a pandemia – se descuidara e trocara de roupa diante da câmera. O ancião supunha ter desligado a câmera, quando o havia feito tão somente do microfone. Os moralistas, sem ética, queriam compor uma comissão para investigação da conduta do velhinho. Opus-me que os próprios acusadores formassem a Comissão Torquemada para investigação da nudez inadvertida. Retiraram um deles da Comissão Savonarola e incluíram o Sílvio. O Sílvio era o único opositor da formação da comissão e da punição do descuidado ancião.

Ao fim da reunião, satisfeito com a inclusão do Sílvio na Comissão de Investigação por Ato Atentatório à Moralidade dos e das Vestais da ABI, sugeri que a apresentação do Relatório da Comissão de Investigação fosse precedida da apresentação do filme “Toda Nudez Será Castigada”. O Sílvio se escancarou de rir e um escroto, que hoje ocupa cargo de Conselheiro da Presidência da República, nos recriminou, dizendo que aquela comissão era coisa séria.

Nas reuniões que fizeram, para apurar a nudez, o Silvio preparou um parecer que começava relatando o julgamento d`As Bruxas de Salém e outras atrocidades registradas na história, bem como relembrou a história de cada um dos algozes do ancião. Todos se calaram, a comissão encerrou seus trabalhos, não fez qualquer relatório e o assunto jamais voltou a ser comentado nas reuniões da ABI. Em consequência o velhinho que se descuidara e trocara de roupa com exibição online deixou de viver sob a espada de Dâmocles que o sujeitava a situação vexatória. Tratou-se de uma comissão criada, instalada e esquecida, sem ato de encerramento dos seus trabalhos. Era coisa de gente moralista, com a ética própria dos moralistas, ou seja, de gente desocupada que não tinha outra coisa a fazer senão promover o mal-estar a terceiros. Os escrotos são maus e desejam a infelicidade alheia. Este é o sentido do termo.

Não faltaram trapalhadas. Na exibição do filme, também do Sílvio, “Ousar Viver! Histórias da Maria”, no antigo Estação Botafogo, em 11 de março passado, às 18h00, o Sílvio me mandou áudio da porta do cinema: “Estou te esperando! Estou te esperando! Já estou aqui no cinema”. Fui prá lá. Estava nas proximidades e cheguei em minutos. A exibição começaria às 20h00.

Foram muitos os encontros, conversas e provocações com o Sílvio. Todas com muito humor. Nossos últimos desencontros e mensagens foram no início de julho. Num ele reclamou que eu não estava num restaurante que ele esperava me encontrar. Noutro, ele me chamou para ir à sua casa. Mas eu acabara de chegar em casa cansado e fiquei de ir outro dia. Entrei em férias, viajei em julho, retomei às atividades no Tribunal e na universidade em agosto, quando ele já estava internado, e não fui ao seu encontro.

Sílvio não era tímido quando queria reclamar a visita dos amigos. Numa das suas internações eu lhe mandei mensagem perguntando como estava. Ele não disse do seu estado. Disse onde estava e o número do quarto. Fui imediatamente vê-lo. Ao entrar no quarto ele caiu na gargalhada e disse: “Você entendeu que o que eu queria era visita". Rimos juntos.

Rirei toda vez que lembrar das conversas que tivemos. Algumas impublicáveis!

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Ciclismo, morte e legado dos grandes eventos

Trafegando pela Avenida Pasteur, em Botafogo, à minha frente um ciclista pedalava pela pista de rodagem. A partir do entroncamento com a Rua Repórter Nestor Moreira tal avenida não mais dispõe de ciclovia. O Código de Trânsito Brasileiro reconhece a precedência do ciclista sobre os automóveis, se inexistir ciclovia. Conduzi o carro em baixa velocidade, possibilitando ao ciclista continuar transitando, com prioridade, à minha frente. Uma ultrapassagem somente seria permitida se pudesse fazê-lo com um metro e meio de distância, o que a largura da via não permitia. Ao chegar ao semáforo existente em frente à Policlínica de Botafogo, pensei que o ciclista fosse parar, pois o sinal estava fechado para veículos de qualquer espécie. Mas sem se importar com a norma de trânsito, o ciclista avançou o sinal ameaçando de atropelamento um casal de idosos que se amparava reciprocamente para atravessar a rua na faixa de pedestres.

Nossa realidade está permeada por exigências de comportamentos alheios sem condutas similares às que exigimos de terceiros. É o problema do moralismo. O moralismo é a ética de quem não tem ética. O ciclista transgressor, certamente, exige respeito e cuidado, mas não atuou com a mesma reciprocidade com os idosos que saíam do hospital. Isto ocorreu no domingo passado, dia 17.

Na sexta-feira, dia 15, meu assessor Danny Rogers Coelho Teles fora atropelado por uma bicicleta e morreu. Ele fora meu aluno na faculdade de Direito. Ao fazer seleção para assessor no Tribunal de Justiça ele, que se tornara serventuário da justiça por concurso público, se candidatara à função. Fora bom aluno. Era da turma do fundão da sala, que juntamente com outros eram os mais bagunceiros e participativos das aulas. Num semestre dei aula pela manhã. No semestre seguinte pedi transferência para a noite. Mas deles não me livrei. Eles se inscreveram à noite e continuaram os cursos comigo. E assim estabelecemos uma relação de ensinagem, processo pedagógico no qual quem aprende também ensina e quem ensina aprende. O clima era de seriedade, compromisso com os objetivos dos cursos e muita camaradagem.

Ao ser informado do atropelamento por uma bicicleta e do óbito do meu assessor, duvidei da notícia. Afinal, uma bicicleta não é capaz de causar dano tão acentuado. Mas era verdade. Meu assessor, voltando de encontro com amigos atravessava a Avenida Vieira Souto, em Ipanema, na proximidade da Rua Maria Quitéria e, terminando a travessia, foi atropelado por um ciclista profissional que, em alta velocidade, treinava naquela madrugada. O ciclista igualmente sofreu fraturas, mas sem gravidade. Ambos foram socorridos para o Hospital Miguel Couto. Meu assessor não saiu de lá vivo. O ciclista foi imediatamente transferido para um hospital, desses existentes na Zona Sul do Rio de Janeiro destinados ao atendimento de quem tenha dinheiro que atribua o direito à saúde.

A dinâmica do acidente ainda precisa ser investigada e esclarecida. É certa a materialidade. É certo que uma pessoa morreu em decorrência de um acidente envolvendo um ciclista. Mas antes de questionar sobre o comportamento dos dois envolvidos no evento, é preciso apreciar o comportamento do poder público que autoriza o uso das vias públicas para treinamento por desportistas de alto rendimento.

Sem iluminação, sem motor que faça barulho, com pequeno volume e alta velocidade, uma bicicleta de corrida é imperceptível à noite. Trata-se de inegável irresponsabilidade política e administrativa a decisão do poder público de autorizar tal prática desportiva em via pública. O ciclismo é o esporte, dentre todos os outros, que mais promove fraturas, proporcionalmente ao número de acidentes. Já não bastam as motos, os ciclomotores, os patinetes e as bicicletas elétricas por calçadas, ciclovias e entre os carros? As ruas serão transformadas em velódromo à noite, colocando em risco a vida e a integridade física das pessoas? Na ausência de autódromo na cidade, igualmente serão permitidos os treinos de Fórmula 1 pelas ruas do Rio de Janeiro? Onde estão os legados dos grandes eventos que consumiram centenas de bilhões em recursos do erário para alegria dos cartolas que não nos deixaram ao menos um velódromo?

Dispõe a lei que quem de qualquer forma concorre para um crime incide nas penas a ele cominadas. A responsabilidade civil e a administrativa são regidas pelo mesmo princípio. E mais: A dimensão ética que há de permear as relações sociais e as relações dos cidadãos com o poder público não permite a isenção da responsabilidade das autoridades que contribuíram para o desfecho trágico. Além da responsabilidade civil da Administração pública também estamos diante da responsabilidade dos seus agentes.

É absurdo que uma cidade como o Rio de Janeiro não tenha um velódromo onde os ciclistas profissionais possam treinar. É impensável que desportistas profissionais usem as vias públicas em seus treinos colocando em risco os cidadãos. A cidade do Rio de Janeiro foi cenário de vários eventos que prometiam legados. Além da Copa do Mundo de Futebol de 2014, tivemos os Jogos Panamericanos de 2007, os Jogos Mundiais Militares de 2011 e as Olimpiadas de 2016. Onde está o velódromo que poderia ter poupado a vida de um pai de uma menina de dois anos? Não há via nas quais possam ocorrer treinamentos desportivos sem colocar em risco a vida dos cidadãos cariocas e fluminenses? Cabe ao poder público e aos seus agentes a resposta, a responsabilidade e tomada de providências.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 23/08/2025. Versão digital disponível no link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/08/7116016-joao-batista-damasceno-ciclismo-morte-e-legado-dos-grandes-eventos.html

terça-feira, 12 de agosto de 2025

Placa retirada, homenagem indevida apagada!

 




No dia 28 passado enviei para amigos e fiz postagem nas redes sociai do seguinte texto:

Há 40 anos eu passo pela placa acima na UFRJ, ignominiosa homenagem daquela universidade ao mais truculento dos ditadores do regime empresarial-militar. Médici foi responsável pelo período de torturas, mortes, desaparecimentos, estupros, roubos e muito mais. Lamento não a ter arrancado com um pé de cabra, quando era estudante por lá, e jogado ao mar. Nunca deixei de chamar a atenção dos meus amigos que exerceram cargos de mando naquela IES. Passei por lá e parei para ver se a homenagem da universidade ao sanguinário continuava por lá. Continua! Lamentável! Está entre o CT e o CCMN.

Hoje passei pelo Fundão e parei para ver se a placa continuava por lá. Não mais está! Finalmente foi retirada. Há 40 anos eu me incomodava com aquela indevida homenagem a quem foi politicamente responsável pela prisão, tortura, morte, estupro e desaparecimento de muitos estudantes.

É pouco! Mas alguma coisa foi feita. Não reescreveremos a história. Mas não podemos manter homenagens a quem fez parte de  um passado que não queremos ver repetido.

sábado, 9 de agosto de 2025

A atualidade de Joaquim Silvério dos Reis

Joaquim Silvério dos Reis é a expressão da traição, da delação e do entreguismo. Atuando em razão de seus interesses pessoais delatou os conjurados mineiros e foi premiado com dinheiro, títulos, propriedades imobiliárias, perdão de dívidas e anistia de penalidades. Tinha 23 anos quando delatou seus companheiros, dentre os quais Tiradentes, mas já era coronel da cavalaria da Vila de Borda do Campo, atual município mineiro de Antônio Carlos.

O ouro foi encontrado no interior do Brasil entre 1693 e 1695, tendo sido explorado por paulistas e baianos que contornavam a Serra do Mar. Subtraindo a influência destes, a Coroa portuguesa criou a Capitania das Minas Gerais, concedeu sesmarias e autorizou que fidalgos portugueses expulsassem da região os que nela viviam e haviam descoberto as riquezas que exploravam. Disto decorreu a Guerra dos Emboabas entre 1707 e 1709. Chacinados os possuidores originários, a partir de 1711, Portugal instituiu a cobrança da finta, que uns pagavam pelo arrendamento das terras, que eram do rei, e outros simplesmente por viverem na região. Era o caso dos “povos de nação”, que pagavam pelo direito de viver na colônia portuguesa. Dentre estes estavam os judeus sefarditas ascendentes de Tiradentes.

Depois de instituída a Intendência das Minas, subordinada diretamente a Lisboa, foi exigido o pagamento do “quinto” ou quinta parte de toda a riqueza produzida nas terras do rei. Era uma espécie de arrendamento. Não tinha a natureza de imposto como o conhecemos. Escasseado o ouro, a Fazenda Real exigiu o pagamento anual de 100 arrobas de ouro, equivalente a 1.500Kg. Para atingir tal montante, todos tinham que contribuir. Era uma espécie de vaquinha ou exigência pública de pix. Não atingido o valor, a Fazenda Real promovia a “derrama”, ou seja, confisco de casa em casa até completar a quantia requisitada.

As derramas eram feitas num clima de pavor e violência. A população vivia revoltada, mas com o quase esgotamento das minas e com a situação precária de Vila Rica (atual Ouro Preto) os inconfidentes, entre eles, o tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrada, o desembargador Cláudio Manuel da Costa, os poetas Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto e o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, encabeçaram o levante contra a derrama prevista para 1789.


O clima era tenso. Desde 1788, sob as ordens da rainha Dona Maria I, A Louca, o governador, Visconde de Barbacena, confrontava a elite mineira assentada no controle do poder local e articulada com a intelectualidade fluminense. A mãe de D. João VI, avó de D. Pedro I e bisavó de D. Pedro II reinava com o apoio de uma aristocracia parasitária, depois do afastamento do Marquês de Pombal, primeiro-ministro de seu pai, D. José I, morto em 1777. A intensificação do controle sobre o comércio, as cobranças das dívidas dos contratos atrasados e a ameaça de mais uma derrama incendiavam os ânimos, propiciando as conjurações mineira e fluminense. Esta em 1794, sob a direção da Sociedade Literária do Rio de Janeiro, e aquela em 1789.

Diversamente de Joaquim Silvério dos Reis, que se pontuava como desleal, entreguista e vassalo do colonialismo, Tiradentes era contra a exploração colonial mediante taxações abusivas e cobrança desmedida de impostos e finta. Mas lutava sobretudo pela autonomia política, independência em relação à metrópole, liberdade de atuação, igualdade na tributação e solidariedade entre os nacionais.

Antes de Joaquim Silvério dos Reis a história registra a existência de outro entreguista antipatriota: Calabar. Quando da expulsão dos holandeses do nordeste brasileiro ficou ao lado dos holandeses e contra a retomada da região invadida. Chico Buarque escreveu peça sobre o personagem e relativizou sua traição. É possível relativizar o posicionamento de Calabar, a partir da análise dos seus interesses. Mas foi um traidor da sua pátria, como sempre existiu por cá e em todos os tempos.

Joaquim Silvério dos Reis era coronel remunerado pelos interesses da Coroa portuguesa, mas o que visava ia além do seu soldo. Tiradentes e seus companheiros pretendiam impedir a saída das riquezas que passavam por Portugal, mas se direcionavam ao país pirata europeu de língua inglesa. Tiradentes foi fiel aos interesses da nação a que pertencia. Não foi inconfidente, mas conjurado. A história demonstra que aqueles que atuaram em favor da ordem internacional e contra os interesses da nação brasiliana eram os traidores do seu próprio povo.

Se a história se repete o é como farsa. Se há traição aos interesses nacionais, sobreposição dos interesses particulares aos interesses do povo brasileiro e entreguismo das riquezas nacionais ao estrangeiro, a figura de Joaquim Silvério dos Reis se torna atual, ainda que representada por outros personagens. Seja Calabar, Joaquim Silvério dos Reis ou outro qualquer em qualquer tempo, quem se coloque contra os interesses do povo brasileiro em favor de interesses estrangeiros é entreguista, traidor da pátria e do povo merece aversão. Tiradentes é referência para os que almejam um país soberano, justo e solidário. Foi traído, mas não traiu jamais. Não se submeteu à exploração estrangeira, nem mesmo para poupar sua vida. Não pediu clemência, nem anistia. Não chantageou quem quer que fosse para livrar a própria pele. Ao contrário, disse: “Mil vidas eu tivesse, mil vidas eu daria pela libertação da minha pátria”. Esta é a diferença entre um pária e um patriota.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 09/08/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/08/7106880-joao-batista-damasceno-a-atualidade-de-joaquim-silverio-dos-reis.html


segunda-feira, 28 de julho de 2025

MÉDICI, CRUDELÍSSIMO DITADOR DOS ANOS DE CHUMBO, CONTINUA HOMENAGEADO NA UFRJ

Há 40 anos eu passo pela placa acima na UFRJ, ignominiosa homenagem daquela universidade ao mais truculento dos ditadores do regime empresarial-militar. Médici foi responsável pelo período de torturas, mortes, desaparecimentos, estupros, roubos e muito mais. Lamento não tê-la arrancado com um pé de cabra, quando era estudante por lá, e jogado ao mar. Nunca deixei de chamar a atenção dos meus amigos que exerceram cargos de mando naquela IES. Passei por lá e parei para ver se a homenagem da universidade ao sanguinário continuava por lá. Continua! Lamentável! Está entre o CT e o CCMN.

sexta-feira, 25 de julho de 2025

O PARTIDO DE TIRADENTES

 

O imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) e saudoso presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Barbosa Lima Sobrinho, dizia que no Brasil sempre teve apenas dois partidos: O Partido de Tiradentes, nacionalista, autonomista e da independência e o Partido de Joaquim Silvério dos Reis, dos entreguistas e partidários da subordinação nacional.

Quando falamos em partidos o que nos vem à mente são as organizações criadas para a disputa do voto, visando aos cargos eletivos estatais. Partidos sempre existiram. Mas o direito ao voto é recente. Somente a partir da metade do século XIX, depois das revoluções liberais e publicação do Manifesto Comunista de 1848, o voto foi instituído e ampliado para a sociedade. Embora se dissesse universalizado, grandes parcelas das sociedades estavam excluídas. No Brasil a universalização do voto ocorreu com o advento da República, mas com exclusão de mulheres, analfabetos, mendigos, militares de baixa patente, indígenas, menores de 21 anos e religiosos sujeitos a voto de obediência.

Hoje, além da função de cabalar votos, os partidos também têm a função de organizar as correntes de opinião, formar quadros para a direção do Estado ou representar interesses. Mas antes que os partidos tivessem a forma atual, as aristocracias monárquicas já se dividiam em ‘partidos’, com tomadas de posições distintas relativamente a certos temas. Durante as guerras napoleônicas, no final do século XVIII e início do XIX, a Corte Portuguesa se dividia entre os partidários da Inglaterra e da França. Ganharam os partidários da Inglaterra, país que trouxe a Família Real para o Brasil em 1808 para fugir de Napoleão Bonaparte.

No mesmo ano em que os franceses fizeram a grande revolução burguesa, em 1789, no Brasil houve insurreição. Foi a Conjuração Mineira. E nela tivemos dois partidos: O de Joaquim José da Silva Xavier, O Tiradentes, e o de Joaquim Silvério dos Reis. Este inaugurou a delação premiada no Brasil e aquele “foi traído, mas não traiu jamais”, conforme o clássico samba-enredo ‘Exaltação a Tiradentes!’ da Império Serrano, de 1949, de autoria de Mano Décio da Viola, Penteado e Estanislau Silva.

Mineiro que sou, sempre admirei o ideário dos posseiros que partiram de São Paulo, contornaram a Serra do Mar visível ao fundo da Baía de Guanabara e fundaram Mariana e Vila Rica, hoje Ouro Preto, até serem chacinados pelos Emboabas que chegaram com suas escrituras de propriedade no início do século XVIII, sempre admirei o ideário dos conjurados de 1789, bem como dos liberais de 1842 que tinham à frente Teófilo Otoni.

Depois do ciclo da cana, espécie de agronegócio exportador, monocultor, devastador e latifundiário, no Nordeste e em Campos do Goytacazes, Minas Gerais foi a expressão da economia e cultura nacional. Ouro Preto é um monumento a céu aberto. São Paulo ganhou relevância posteriormente e o Rio de Janeiro foi povoado por mineiros que desceram a serra, O cidadão honorário iguaçuano, Zanon de Paula Barros, diz que a Conjuração Mineira desabrochou em Vila Rica mas foi gestada no Rio de Janeiro, tanto que igual movimento com ideias de liberdade e autonomia, expressando descontentamento com o domínio português, eclodiu em terras fluminenses em 1794. Mineiro ou fluminense ninguém nega o caráter autonomista e nacionalista dos movimentos e a grandeza de Tiradentes.

O pesquisador e historiador Cristiano Dornelas empreendeu estudo relevante sobre a sua genealogia e a ocupação da Zona da Mata mineira. Era zona proibida ao tráfego até a metade do século XIX, pois o ouro tinha que ser escoado pelos caminhos oficiais. Quem nela fosse encontrado era apenado por contrabando ou descaminho, crimes que subsistem na ordem penal brasileira. Somente com o fim do ciclo do ouro foram os sertões do leste liberados para ocupação. Após a Revolução Liberal de 1842 um ascendente comum ao pesquisador e a mim, Jacob Dornellas, migrou para a região e sua genealogia remonta aos avós de Tiradentes: Domingos Xavier Fernandes e Maria de Oliveira Colaça.

Paulo Mercadante, autor de A Consciência Conservadora no Brasil, escreveu que entre nós nenhuma revolução fora feita em nome da liberdade e que todas contestavam pagamento de imposto. É verdade! Mas em alguns momentos a cobrança de impostos ou taxações são formas de opressão e a resistência é uma luta pela liberdade e independência. Tiradentes morreu numa luta contra a finta, uma vez que já não subsistia o sistema de cobrança do quinto. Documento comprova que sua ancestral “Izabel de Carvalho Peixoto teve o valor de suas terras listado para o pagamento de finta, imposto cobrado das pessoas listadas como pertencentes à nação Judaica”. Não só pela ocupação e exploração das terras realengas da Capitania das Minas Gerais, tinha-se que pagar uma porção do que dela se retirasse, fosse o quinto ou a finta, como também havia cobrança sobre a qualidade da pessoa, por ser considerada “gente de nação”, como eram os ascendentes de Tiradentes, judeus sefarditas.

A luta de Tiradentes era contra a exploração colonial mediante cobrança abusiva de taxas, impostos e finta. Mas era sobretudo pela autonomia política, independência em relação à metrópole, liberdade de atuação, igualdade na tributação e solidariedade entre os nacionais. Barbosa Lima Sobrinho tinha razão. O Partido de Tiradentes era o Partido da Independência que se opunha aos vassalos do colonialismo, entreguistas personificados em Joaquim Silvério dos Reis.

 

Fonte: Publicado originariamente no jornal O DIA, em 26/07/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/07/7099141-joao-batista-damasceno-o-partido-de-tiradentes.html


segunda-feira, 14 de julho de 2025

Entreguistas traidores da pátria!

Em 1862 o governo inglês promoveu um conjunto de exigências impróprias ao governo imperial brasileiro, dentre elas uma indenização pelo saque da carga de um navio britânico que encalhara no Rio Grande do Sul, a demissão dos militares que haviam prendido uns oficiais ingleses que, bêbados, haviam se metido em arruaça no Rio de Janeiro e um humilhante e formal pedido de desculpas. Apesar de soltos logo depois de identificados, o embaixador inglês William Christie, arrogantemente, exigia que os militares brasileiros que efetuaram a prisão fossem demitidos. Não aceitadas as imposições, embarcações inglesas invadiram as águas nacionais, adentraram na Baía de Guanabara e apreenderam cinco navios brasileiros como indenização pelo que requeriam.

A crise com a Inglaterra levou à derrubada do governo que era presidido por Duque de Caxias, cuja atuação não contemplava o interesse nacional. Mas o incidente contribuiu para o fortalecimento do sentimento nacionalista e o Brasil passou a buscar maior autonomia em relação à Inglaterra. Até Teófilo Otoni, crítico do Imperador D. Pedro II, apoiou o monarca ante a necessidade de prevalência dos interesses nacionais.
O nacionalismo crescente e a vitória na Guerra do Paraguai, que terminou em 01 de março de 1870, influiu no ânimo dos militares que acabaram se sobrepondo ao Estado, culminando com o golpe da Proclamação República em 1889. Desde então várias foram as intervenções militares no funcionamento dos poderes do Estado. O judiciário contribuiu para que tal acontecesse, acolhendo o que se chamava “Objeção do Caso Político”. Tratava-se do afastamento da apreciação de um caso pelo judiciário, se a questão envolvesse interesses políticos. Rui Barbosa insistia que mesmo em casos com interesses políticos, cabe ao judiciário a arbitragem com fundamento na lei, no que tivesse sido alegado e no que tivesse sido provado. Mas Rui perdia sempre.

Os militares usurparam poder e se julgaram árbitros de conflitos políticos em toda a República. A Marinha, formada sob orientação de oficiais ingleses, sempre manteve pretensão aristocrática e antipopular. A Aeronáutica, pelo momento de sua criação em 1941, luta na Segunda Guerra Mundial e orientação dos EUA, tinha expressiva parte dos seus quadros ligados ao elitismo asséptico da UDN. A Força Aérea Brasileira teve seus quadros formados a partir da aviação do Exército. Este parecia uma Arca de Noé, com bicho de todo tipo e era plural até 1964.

O golpe empresarial-militar de 01 de abril de 1964, tramado por militares e empresários entreguistas brasileiros, com o apoio dos EUA, buscou suprimir das Forças Armadas os militares democratas, nacionalistas, liberais, socialistas ou com qualquer concepção que pudesse ser considerada popular ou à esquerda do espectro político. Restou a gentalha, também conhecida como “Linha Dura”, responsável pelo que se fez nos porões dos quartéis. Até os quadros oriundos ou influenciados pelo tenentismo foram perseguidos. Restaram os entreguistas, interesseiros, lambedores de botas ianques e grileiros de terras nas regiões submetidas aos seus comandos.

O golpe de 1964 foi tramado por brasileiros que colocaram seus interesses acima dos interesses nacionais e para satisfação dos EUA. A abertura dos arquivos dos EUA revelou a atuação do presidente Lyndon Johnson, a possibilidade de divisão do Brasil a exemplo do que fora feito com outros países (Coreia, Vietnã, Iemen etc) e o envio da Quarta Frota para apoiar os golpistas, nominada de Operação Brother Sam. O documentário ‘O Dia que Durou 21 anos’ expõe os documentos já publicizados nos EUA.
Neste momento, a decisão do governo Trump de impor sanções comerciais ao Brasil visando a pressionar o funcionamento do STF é mais um embate desses que já vivenciamos na construção da nossa soberania. Felizmente sempre tivemos brasileiros de matizes ideológicas diversas que tinham visão institucional e não se renderam às chantagens estrangeiras. Aqueles nacionalistas inadmitiram pressão sobre o funcionamento de nossas instituições que hão de ser harmônicas e independentes. Os poderes são harmônicos quando cada um se limita às suas funções e serão independentes se não precisarem, para funcionar, de autorização dos demais. Nem dos demais, nem de potências estrangeiras.

O nazifascismo é tosco e desumano. Sua indigência intelectual não lhe permite compreender padrões de civilidade. Por isso não compreende o conceito de soberania nacional, autodeterminação dos povos, independência de poderes e limites civilizatórios. O filme estadunidense ‘Amistad’, de 1997, de Steven Spielberg, baseado em eventos reais, retrata a luta de um grupo de africanos escravizados em território estadunidense, desde a revolta a bordo do navio ‘La Amistad’, em 1839, até o julgamento por um tribunal e sua libertação. A rainha da Espanha não compreendia a falta de poder do presidente dos EUA em liberar o navio apreendido e sua carga humana. Não adiantava a explicação de que a questão estava subordinada a um tribunal, que não haveria de sofrer ingerência para contemplação dos interesses de Sua Majestade.

Além da pressão ao STF para satisfazer entreguistas, o que contraria os EUA é a formação dos BRICs, a viabilidade de comércio intermediado pelas próprias moedas e a possibilidade de criação de uma moeda comum que não seja o dólar americano. Como escreveu o Estadão em seu editorial de quinta-feira (10), “que o Brasil não se vergue diante dos arreganhos de Trump. E que aqueles que são verdadeiramente brasileiros não se permitam ser sabujos de um presidente americano”, porque isso é “coisa de mafiosos’.

 

Fonte: Publicado no jornal O DIA em 12/07/2024, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/07/7091156-joao-batista-damasceno-entreguistas-traidores-da-patria.html


sexta-feira, 27 de junho de 2025

Machado de Assis e a criminalização dos juízes

 

A caçada aos imigrantes nos EUA propiciou a prisão da juíza Hannah Dugan, no estado do Wisconsin, acusada de facilitar a fuga de um perseguido pelo serviço de imigração. Juízes estadunidenses criticam o trabalho da imigração, pois a detenção de imigrantes, quando nos tribunais, os leva a recusarem comparecimento em audiências como testemunhas e mesmo quando vítimas. Por todo o mundo os marcos civilizatórios sofrem ataques. A ofensiva aos juízes e a criminalização da jurisdição não fica de fora da sanha neofascista. Até setores autodenominados ‘progressistas’ caem no conto do punitivismo.

No Brasil o poder judiciário se fortaleceu ao longo da República, mesmo com algumas vacilações e falta de entusiasmo institucional. João Mangabeira afirmou que o STF foi “o poder que mais falhou” na República, por não haver cumprido seu papel político-constitucional, apesar da fustigação de Rui Barbosa. Na Primeira República, até mesmo o controle de constitucionalidade das leis era por ele recusado. A ilegalidade nas instituições tanto pode decorrer da exorbitância quanto da omissão. No Império inexistia controle de constitucionalidade das leis, porque a sanção imperial excluía qualquer vício do processo legislativo. O decreto que organizou a justiça federal, quando da Proclamação da República, assegurou ao STF o poder de interpretar as leis e verificar sua conformidade com a Constituição. Mas os ministros, oriundos do Império, não assumiam tal poder. Hoje, há na sociedade quem demonstre estranhamento ao ver o STF exercitando, plenamente, suas competências constitucionais.

No âmbito dos Estados, os juízes, quando não integrantes do quadro das oligarquias, estavam sujeitos à sedução ou à vingança. Dentre os meios utilizados para submeter a magistratura estavam a disponibilidade e a retenção de vencimentos, disse o ministro do STF Victor Nunes Leal, mineiro de Carangola. Mas apesar das ameaças, o juiz gaúcho Alcides Mendonça Lima, em 28 de março de 1896, declarou a inconstitucionalidade de uma lei estadual. Em razão do exercício de sua competência, o Ministério Público recebeu ordens do governador Júlio de Castilhos para processar o juiz. E o fez alegando que “ousou o denunciado afrontar o regime constitucional do Estado e arvorar-se em supremo e original poder moderador”.

O juiz foi condenado pelo tribunal gaúcho. Rui Barbosa emitiu parecer em sua defesa demostrando que um juiz estadual podia reconhecer a inconstitucionalidade de lei estadual que contrariasse a Constituição da República e que não podia ser punido pelo exercício da jurisdição. O STF reformou a decisão e o absolveu, mas atuou timidamente no caso, esquivando-se de apreciar a inconstitucionalidade da lei gaúcha em face da Constituição da República. Um dos votos explicitou a negativa de adentrar ao cerne da questão da validade da lei estadual gaúcha, sob o fundamento de que o recurso se restringia ao julgamento do juiz pela sua atividade.

Machado de Assis, também escreveu sobre o tema. Não se pode pretender que o “Bruxo do Cosme Velho” tivesse familiaridade com o conceito de supremacia da Constituição, oriunda do ‘poder constituinte’, sobre as leis, oriundas do ‘poder constituído’. Sem considerar que de decisão judicial se recorre e não se pode criminalizar a jurisdição, sob pena de esmorecimento do sistema de justiça, escreveu Machado de Assis em A Semana, no dia 05 de abril de 1896: “Faço igual reflexão relativamente ao juiz da comarca do Rio Grande, que, segundo telegramas desta semana, vai ser metido em processo. A causa sabe-se qual é. Não consentiu o juiz em que os jurados votem a descoberto, como dispõe a reforma judiciária do Estado; afirma ele que a Constituição Federal é contrária a semelhante cláusula. Não sou jurista, não posso dizer que sim nem que não. O que vagamente me parece, é que se o estatuto político do Estado difere em alguma parte do da União, é impertinência não cumprir o que os poderes do Estado mandam."

É indiscutível que Machado de Assis é o maior romancista da literatura brasileira. É denso e enigmático. Sua produção literária abrangeu praticamente todos os gêneros, incluindo poesia, romance, crônica, dramaturgia, conto, folhetim, jornalismo e crítica literária. Após sua morte não faltaram impiedosas acusações à sua memória. Os poucos que o criticaram foram esquecidos pelo tempo. Silvio Romero disse ter sido “capacho de todos os governos”. Hemetério José dos Santos disse que, logo que o casamento e a posição social o levaram para outro ambiente, ao lado de gente branca, desprezara a madrasta, por ser negra. E Pedro do Couto dizia que sua obra não tinha filosofia ou psicologia e só lhe restava o mérito de “escrever bem”.

A leviandade dos críticos não lhes permitiu entender a grandeza da obra de Machado de Assis. No último dia 21 comemoramos 186 de seu nascimento. Sua obra precisa ser lida e estudada e seus equívocos pessoais, como a defesa da condenação de um juiz pelo exercício de sua atividade, precisam ser relevados. Se Cristo, considerado filho de Deus, secou uma figueira porque não tinha fruto, sem considerar se era estação frutífera, por que condenar Machado de Assis por uma opinião em tema que não era da sua especialidade? Basta-nos a obra que nos legou. E já é muito. Se tivesse escrito em língua das potências europeias estaria melhor posicionado mundialmente que Shakespeare, Cervantes e muitos outros autores clássicos, e somente disputaria o podium com Dostoievski.

 

Fonte: Publicado originariamente no jornal O DIA, em 28/06/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/06/7082553-joao-batista-damasceno-machado-de-assis-e-a-criminalizacao-dos-juizes.html


sexta-feira, 13 de junho de 2025

Essa polícia é de matar!

Numa monarquia autocrática ou teocrática o poder se legitima como se emanasse do próprio trono ou de Deus. A ideia do poder emanando de Deus chegou a ser teorizada em obra do jurista francês Jean Bodin, de 1576, no nono ano da fundação da Cidade do Rio de Janeiro, após expulsão dos protestantes franceses.

Posteriormente a Bodin outros filósofos escreveram que o poder não emana de deus, mas se constitui por um pacto civilizatório entre os cidadãos. Assim, em 1789, os franceses fizeram uma revolução, cortaram a cabeça do rei e mostraram que seu sangue não era azul, mas vermelho como o de todos. E numa assembleia nacional constituíram um novo modelo de Estado, declarando que todo o poder emana do povo.

Nas monarquias absolutistas tinha-se a concepção de que o rei não erra e que aqueles que agem em seu nome têm a presunção de estarem realizando sua vontade. Daí a presunção de legitimidade de seus atos. Mas nas democracias, onde o poder emana do povo, os agentes públicos não podem pretender privilégios que os sobreponham aos cidadãos.

Embora seja signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, o Estado brasileiro mantém a tipificação do crime de desacato. Tal crime cerceia as liberdades públicas e foi instituído em favor dos agentes públicos contra a cidadania. No Rio de Janeiro o Tribunal de Justiça editou súmula (nº 70) reconhecendo que a palavra do policial é prova suficiente para a condenação. A revisão da súmula não afastou a presunção de veracidade. Portanto, se o policial diz que foi desacatado o cidadão está no sal. O Brasil já foi condenado algumas vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos pela violação ao pacto por ele firmado e ratificado em defesa dos direitos humanos. Mas a condenação recai sobre o Estado e os governantes e agentes políticos que autorizam ou legitimam as violações nada sofrem.

O assassinato do office boy Herus Guimarães Mendes, de 23 anos (é preciso dizer que tem profissão para afastar a legitimação da execução), no Morro Santo Amaro, entre os bairros da Glória e Catete na Zona Sul do Rio de Janeiro, durante uma festa junina, é emblemático e mostra do que é capaz a política de extermínio instituída no Rio de Janeiro. Se na Zona Sul, durante uma festa junina, a polícia é capaz de ferir e matar moradores, imaginemos do que é capaz à noite nas ruas e becos não iluminados da Baixada Fluminense. A supremacia das armas e da truculência acanha e subjuga qualquer resquício de cidadania. E tudo sob o manto protetor da presunção de legitimidade dos atos de autoridade e de seus agentes. É o próprio estado policial em sua mais brutal aparição!

Diante do bestial assassinato de Herus, a PM afastou 10 policiais que participaram da operação e exonerou o coronel André Batista, comandante do Comando de Operações Especiais (COE), bem como o coronel Aristheu Lopes, comandante do Batalhão de Operações Especiais (Bope). Um sargento, possivelmente escalado para bucha, diz ter sido o único a efetuar disparos. A coisa ganha ares estranhos. Se era um tiroteio contra traficantes, por que somente um dos agentes teria disparado sua arma?

A violência policial é tema que me levou a iniciar escrever neste jornal em 2007. Em 16/02/2019, em artigo intitulado “A Boa Polícia” , tratei de uma incursão da PM no Morro do Fallet que causou 15 mortes. Um erro de publicação atribuiu as mortes ao Bope. Mas o então comandante do BPChq, tenente-coronel André Batista, reivindicou a operação. Ele já havia comandado o 9° BPM de Rocha Miranda. Trata-se de policial da elite da tropa, com currículo premiado. Foi o negociador do sequestro do ônibus 174, onde morreram a professora Geisa Gonçalves e o assaltante Sandro Barbosa. Além disto, é coautor do livro Elite da Tropa em parceria com o ex-capitão Rodrigo Pimentel, reformado da PM por surdez, e com o literato Luiz Eduardo Soares. O personagem André Matias no filme Tropa de Elite, teria sido inspirado em André Batista. Foi subsecretário do literato Luiz Eduardo Soares em Nova Iguaçu, na gestão do então prefeito Lindbergh Farias.

A polícia violenta, mas incorruptível, retratada no filme Tropa de Elite 1, decorre da concepção de uma “boa polícia” da qual falam o literato Luiz Eduardo Soares, da Uerj, e os formuladores do curso de Segurança Pública, da UFF. Em suas formulações, a “boa polícia” há de ser incorruptível, mas pode ser violenta, pois corrupção é uma opção; é um desvio pessoal. Mas a violência é um desígnio inevitável da atuação policial.

Terminei aquele artigo dizendo que nos resta apelar para o Tribunal Penal Internacional, para que a cadeia de comando da política de extermínio e aqueles que para ela concorrem, por não exercitarem o regular controle externo da atividade policial, sejam julgados por eventuais crimes contra a humanidade, assim considerados os massacres, a desumanização, os extermínios e as execuções. O texto me propiciou um irado telefonema do então governador e bloqueio nas redes sociais, o que me tira o sono até hoje.

Em 08/05/2021 voltei ao tema em artigo intitulado “Polícia fluminense matou mais 27”, analisando a incursão da Core no Jacarezinho, na mais letal operação policial da história do Rio de Janeiro, salientando dúvida, fundada em precedentes, sobre efetivo confronto e exercício de legítima defesa.

Punir alguns policiais e manter a política de extermínio é a receita para legitimar a continuidade das execuções dos indesejáveis. Mas às vezes os matadores erram na execução e até a mídia reclama.


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 14/06/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/06/7074735-joao-batista-damasceno-essa-policia-e-de-matar.html


segunda-feira, 2 de junho de 2025

FILOSOFA NA PRAIA, COPACABANA E CHOQUE DE ORDEM


O prefeito Eduardo Paes editou um decreto no último dia 15 que causou mais reboliço na Praia de Copacabana que causariam correrias e gritos de que está havendo arrastão. Já presenciei uma cena dessas. Um segurança desconfiou de uns meninos que cruzavam por mim no calçadão e ao andar em direção a eles cada qual correu num sentido. Apareceram pessoas de todos os lados correndo atrás dos garotos sem saberem o porquê empreendiam a caçada. Outros meninos aproveitaram para fugir, antes que fossem confundidos com os que eram perseguidos. Banhistas igualmente se apressaram em sair da areia. Mães com suas bolsas, cangas, toalhas e filhos colocados debaixo do braço também corriam para deixar a praia, fugindo da violência imaginária. Continuei minha caminhada pois vira que nada tinha acontecido que justificasse aquela agitação. Fui até o fim do calçadão. Ao retornar pude ver que o alvoroço se ampliara. Havia carros de polícia com sirenes e giroflex ligados, guarda-vidas com seus quadriciclos rodando pela areia em alta velocidade tal como se estivessem num rally pelo deserto, guardas municipais empunhando seus cassetetes tais como D. Pedro I com sua espada proclamando a independência, crianças e adolescentes magrelos com os olhos arregalados detidos dentro das viaturas e uma multidão de curiosos no entorno contando suas versões. Todo mundo era um pouco cinegrafista, fotógrafo e repórter naquela cena. O furdunço começara do nada e ninguém sabia explicar o que tinha acontecido, mas não faltavam versões imaginárias. Eu que tinha visto o começo da história, testemunhei como um grande incêndio pode começar com uma simples fagulha.

Mas voltemos ao decreto do prefeito! Trata-se de um ato regulamentar que dispõe sobre a proibição de atividades que contrariem o ordenamento urbano e público na orla marítima da Cidade do Rio de Janeiro. Copacabana é a praia mais famosa do mundo e o bairro que, talvez, tenha a maior diversidade, inclusive de classes sociais. Pretender ordenar as múltiplas interações e relações estabelecidas em Copacabana deve ser mais dificultoso que a pretensão de impor moralidade em alguns estabelecimentos da Rua Prado Júnior, no mesmo bairro, com a ostentação de uma imagem de São Jorge. Mas se não é possível ordenar a vida social pelos meios normativos e repressivos é necessário que as instituições se imponham como referencial de ordem e redutoras das incertezas do futuro.

O decreto não tem novidade alguma. Tão somente trata da necessidade de preservar o ordenamento urbano, a segurança, o sossego público e a adequada utilização dos espaços públicos na orla da cidade, bem como visa a reforçar o combate a práticas que representem abusos, desordem ou usos indevidos da orla que interfiram na mobilidade, limpeza urbana, meio ambiente e qualidade de vida dos cidadãos. É só isto. E não poderia ser diferente. Um decreto apenas regulamenta direitos, deveres e interesses dispostos em lei. Não pode dispor de forma diferente da norma superior. A hierarquia das normas impede que uma norma inferior contrarie a superior. Uma lei é editada por dois poderes: o Legislativo e o Executivo. Um decreto é ato normativo que visa a explicitar um comando para o cumprimento daquela. O problema ficou no campo da interpretação. No decreto faltou explicitação de alguns temas e poderia oportunizar discricionaridades ou até mesmo arbitrariedades. E daí o pânico dos trabalhadores dos quiosques.

No dia 27 o prefeito editou novo decreto, com redação esclarecedora, revogando expressamente o anterior. Mas valeu o alerta. De vez em quando é preciso relembrar que a vida coletiva demanda restrição a interesses privados em proveito dos interesses coletivos ou sociais. Se cada qual quisesse conduzir seu carro no sentido que o nariz lhe aponta, nenhum de nós sairia do lugar. A imobilidade seria total.

Copacabana é um bairro ímpar. Mas por vezes é impossível andar no calçadão dada a quantidade de tapetes, toalhas e cangas espalhadas com mercadorias expostas, por trabalhadores ambulantes que não deambulam. Na ciclovia às vezes é pior. Mães com carrinhos de bebê reborn, cachorros conduzidos por seus tutores, ciclomotores, bicicletas elétricas e patinetes infernizam a vida de quem deseja pedalar. Quem mora na orla tem a necessidade de janelas antirruído, em razão dos carros tunados com alto-falantes amplificados nos domingos e feriados e outros sons que se socializam sem a demanda dos demais ouvintes. Na pista fechada para uso dos pedestres se locomovem os ciclistas. Alguns quiosques se pretendiam casas de espetáculo ou salões de festa, sem preocupação com o sossego da vizinhança. Só isto!

A cada quinze dias no quiosque da Maria Alice, o Espaço A, em frente ao número 974 da Avenida Atlântica, das 11h00 ao meio-dia, um tema é exposto por um filósofo, cientista social ou escritor e debatido entre os presentes. O decreto originário chegou a perturbar alguns que frequentam a atividade cultural. Mas a ela não se destinava. Assim, hoje, teremos conferência do professor Carlos Frederico Gurgel, sobre “A consolação da filosofia”, de Severino Boécio, escrita por volta do ano 524. Trata-se da mais importante obra filosófica do Ocidente até o início da Renascença.

Estive com o Secretário Municipal de Ordem Pública, Brenno Carnevale, rimo-nos do alvoroço imotivado e lembramos que o decreto do prefeito funcionou tal como o sino da igreja que toca não para os fiéis, que sabem a hora da missa, mas para lembrar, àqueles que andam faltando, que o templo ainda existe. O decreto apenas rememorou que as atividades em público se subordinam ao interesse público.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 31/05/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/05/7065666-joao-batista-damasceno-filosofa-na-praia-copacabana-e-choque-de-ordem.html


Monteiro Lobato, Bacharelismo e o povo brasileiro

terça-feira, 27 de maio de 2025

SAÚDE MENTAL DOS POLICIAIS: O SILENCIOSO PROBLEMA DA SEGURANÇA PÚBLICA

 SAÚDE MENTAL DOS POLICIAIS: O SILENCIOSO PROBLEMA DA SEGURANÇA PÚBLICA[1]

 A questão da saúde mental dos policiais: o silencioso problema da segurança pública é questão que deve ser objeto de todos quantos queiramos uma sociedade pautada por padrões de bem-estar.

Não poderemos falar em tranquilidade e bem-estar se aqueles que velam pela nossa segurança não gozarem, previamente, de tal estado.

A questão da saúde dos profissionais da área de segurança é preocupante. E não me refiro tão somente aos cuidados médicos em face de doenças físicas ou acidentes. Mas sobretudo às doenças neuropsíquicas decorrentes das condições de trabalho. E para produzir um doente psíquico ou um suicida nada melhor que condições inadequadas de trabalho. E é somente isto o que abordarei.

Durante muito tempo estudei a questão da violência e dos grupos de extermínio na Baixada Fluminense, onde fui juiz por 18 anos, anteriormente chamados de Esquadrão da Morte, Mão Branca, Justiceiros e outros nomes que eram dados ao mesmo fenômeno. Mas aprofundando a questão e indo às suas origens pude constatar que o problema estava num tipo de política de segurança fundada na violação aos direitos humanos, de cidadãos e dos próprios agentes do Estado designados para sua execução.

E a origem remota foi um grupo de homens autorizados pelo General Amaury Kruel, que dirigiu o Departamento Federal de Segurança Pública de 1957 a 1959 nesta cidade, a combater - à margem da legalidade - os crimes dos outros.

Todos os que se embrenharam na execução das ilegalidades acabaram adoecidos ou descartados pelo poder a que serviram. Mas muitos dos que não prestaram tais serviços igualmente adoeceram por preterições em suas carreiras ou pelas inadequadas condições de trabalho.

Ainda hoje no Rio de Janeiro a bravura, com risco da própria vida e dos cidadãos, é motivo para a rápida ascensão funcional em preterição aos que empregam a inteligência.

A inadequada condição de trabalho do agente de segurança decorre não somente da sua colocação em situação de risco de vida, mas também em situação de afastamento de uma vida saudável ou de uma vida com abundância.

Condições de trabalho adequadas e a promoção do bem-estar são essenciais para um ambiente laboral saudável.

Bem-estar no trabalho refere-se à preocupação com a saúde mental e emocional dos trabalhadores, incluindo: 

1.       Um ambiente de trabalho que valorize a atividade desenvolvida, a carreira, a saúde mental e física dos trabalhadores policiais;

2.       Prevenção de riscos psicossociais, por meio de identificação de possibilidade de danos decorrentes do estresse ou das exposições impróprias que possam afetar a saúde mental;

3.       A oferta de apoio psicológico e programas de bem-estar que contribuam para a saúde dos trabalhadores policiais;

4.       Treinamentos sobre saúde mental e gestão do estresse que possam ajudar a lidar com os desafios do trabalho; 

5.       Promoção do equilíbrio entre vida pessoal e profissional.

Fui por algumas vezes titular em varas de interdição de incapazes, adoecidos por problemas psíquicos. E lidei com pessoas com problemas neurais (físicos), doenças mentais (transtornos mentais) e com transtorno da personalidade antissocial (psicopatia ou sociopatia).

A sociopatia foi o que mais me impressionou em minha atividade profissional, como juiz de interdição. A sociopatia é um transtorno de personalidade caracterizado por um padrão persistente de desrespeito e violação dos direitos dos outros. É frequentemente associado a comportamentos antissociais, falta de empatia, falta de remorso e dificuldade em seguir as regras sociais. 

Uma política de segurança que estimula a operacionalidade em desfavor da inteligência é propicia ao adoecimento dos agentes do Estado, proporcionando-lhes um quadro caracterizado por:

1.       Falta de empatia: Dificuldade em entender e compartilhar os sentimentos dos outros. 

2.       Falta de remorso: Não se sentir culpado ou arrependido por ações prejudiciais a terceiros.

3.       Manipulação: Utilizar estratégias para controlar e influenciar os outros. 

4.       Comportamento antissocial: Desrespeito por normas sociais e leis. 

5.       Ausência de culpa: Não se sentir culpado ou responsável por suas ações. 

6.       Narcisismo e egocentrismo: Foco excessivo em si mesmo e em suas próprias necessidades. 

7.       Desinibição e ousadia: Falta de medo ou preocupação com as consequências de suas ações.

Quaisquer dessas características acima podem decorrer de um ambiente inadequado para o trabalho. E precisamos evitar que os agentes do aparato de segurança do Estado sejam adoecidos nos seus ambientes de trabalho.

Além deste adoecimento, um caso grave em relação à saúde dos agentes de segurança é o suicídio, lamentavelmente crescente nas fileiras das diversas corporações estatais (policiais militares, policiais civis, bombeiros militares, policiais penais e guardas municipais).

O número de casos de suicídio tem crescido em todo o mundo, em razão da crise do mundo do trabalho, mas nos países periféricos muito mais. E dentre profissionais da área de segurança muito mais ainda.  Segundo a OMS, o ato de tirar a própria vida “é um problema complexo, para o qual não existe uma só causa nem uma só razão”, resultado de uma “complexa interação de fatores biológicos, genéticos, psicológicos, sociais, culturais e ambientais”.

Se o trabalho nem sempre é fonte de prazer e realização pessoal, não pode ser um ambiente que se transforme em fator de risco à saúde psicofísica que possa causar danos psicológicos, sociais e físicos ao próprio trabalhador ou à sociedade.

Nossa jurisprudência sedimentou-se no sentido de que não é improvável a ideação suicida por parte do trabalhador em razão das variadas formas de pressão psicológica que sofre no ambiente laboral, havendo casos em que se pode se caracterizar como evento equiparado a infortúnio trabalhista.

As normas legais consideram como acidente de trabalho não apenas aquele ocorrido no local e horário de trabalho que cause lesão, mas também diversos outros eventos, alheios ao local e ao horário de serviço, desde que com estes relacionados. Assim, os eventos danosos vinculados ao trabalho são equiparados a acidente de trabalho ou doença ocupacional.

Por isso é preciso estabelecer o correto enquadramento da sociopatia, causadora de insegurança, como doença propiciada pelas condições do trabalho policial.

Não há dúvida que os transtornos mentais adquiridos em ambiente de trabalho nocivo podem levar aos males acima descritos, em prejuízo dos próprios trabalhadores do campo da segurança pública e da sociedade.

O Estado tem o encargo de promover a proteção à saúde psicofísica do trabalhador policial. O descumprimento dos deveres gerais ou específicos de proteção, prevenção e segurança em relação aos trabalhadores que se colocam sob suas ordens e comandos gera a responsabilidade pelos danos que causarem a si próprios ou a terceiros.

Cuidar da saúde do trabalhador policial, em todas as suas esferas, há de ser uma obrigação do Estado e uma preocupação de toda a sociedade, a fim de poder exigir a segurança que almeja.

Assim, parabenizo a OAB/RJ, na pessoa de sua presidenta, Dra. Ana Basílio, pela instalação dessa Comissão Especial da Segurança dos Direitos dos Policiais Civis e Militares da OAB/RJ, presidida pelo Dr. Orlando Zaccone, que é o primeiro passo na preocupação social com a saúde do trabalhador policial.

 

João Batista Damasceno, desembargador no TJRJ e professor de Sociologia Jurídica da UERJ.



[1] Manifestação durante a instalação da Comissão Especial da Segurança dos Direitos dos Policiais Civis e Militares da OAB/RJ, no dia 27/05/2025 na sede da OAB/RJ.

sábado, 17 de maio de 2025

A imortalidade de Miriam Leitão



Não formularei juízo de valor sobre a eleição de Miriam Leitão para a Academia Brasileira de Letras (ABL). Miriam, jornalista das empresas Globo, foi eleita para a cadeira 7 da ABL no dia 30 do mês passado, ocupando a vaga deixada por Cacá Diegues. Recebeu 20 votos. Seu concorrente Cristovam Buarque, ex-reitor da UNB, ex-presidente do Conselho dos Reitores das Universidades Brasileiras (CRUB), ex-governador do DF, ex-senador e ex-ministro da Educação recebeu 14 votos. A eleição chegou a ser justificada pelo aumento da representatividade feminina na instituição, que agora conta com cinco acadêmicas. A genial poeta Cecília Meireles foi a primeira mulher a ser premiada pela ABL. Mas nela não ingressou; era cigana.

Foi ampliado o poder da bancada de jornalistas da Globo na instituição presidida por Merval Pereira. Miriam é mineira, da cidade de Caratinga, MG, a mesma de Ziraldo, Agnaldo Timóteo e do acadêmico Ruy Castro. É filha de um pastor protestante que, na direção de uma escola, possibilitou outra educação que não a dos padres da cidade, embora igualmente confessional. Até 1759, quando expulsos por Marquês de Pombal, os Jesuítas cuidavam da educação no Brasil. No século XX as diferentes igrejas passaram a disputar o poder educacional. Assim, tanto a Igreja Católica quanto as instituições protestantes criaram escolas para formar fiéis. E o reverendo protestante pai da Miriam o fez, brilhantemente.

Se a eleição na ABL foi orientada por critério identitário, alguma coisa está fora do lugar. Não sei o que Machado de Assis acharia disso. O identitarismo como critério precisa ser repensado. Vários grupos demandam representação e são legitimados, mas outros sequer são cogitados. Embora todas as instituições tenham em seus quadros integrantes de pequena estatura, nenhuma se dispõe a ampliar seus quadros com a oferta de vagas a pessoas de pequena estatura física, notadamente os anões. Reporto-me aos anões por dois motivos: o primeiro é literário porque, em se tratando da ABL, é preciso lembrar que os anões povoam a literatura nórdica e germânica; e o segundo é cordial, numa referência ao meu amigo André Pestaninha, assassinado em 2016 nesta cidade do Rio de Janeiro sem que até hoje a polícia tenha esclarecido o crime.

André Pestaninha foi o anão que liderou uma campanha para que houvesse telefones públicos (orelhões) em altura que pudessem usar, assim como as crianças. A TELERJ o atendeu. André Pestaninha nunca aceitou ser qualificado por outro termo e por isso a ele não me refiro com outros vocábulos. Ele dizia que era anão e que queria apenas acessos compatíveis com sua condição, sem privilégios ou palavras que não o ajudavam.

As cidades não têm responsabilidade pelo que fazem seus filhos. Carangola, MG, minha cidade natal, teve juízes de matizes diversas, dentre os quais o ministro Victor Nunes Leal, do STF, e a juíza Denise Frossard, além de outros e outras. Mas se manteve longe do poder eclesiástico e recusou abrir espaço para a instalação do bispado, que certamente influiria nas relações sociais locais. Mas Caratinga, terra da nova imortal, não! Na década de 20 do século XX ganhou o bispado.

Em 1938, Dom João Batista Cavati foi nomeado bispo Diocesano de Caratinga, ficando no cargo até 1956, quando renunciou. O motivo da renúncia não foi esclarecido. Deu nome ao distrito de Caratinga, criado em 1948, que emancipado em 1962 mantém o nome de município de Dom Cavati. Somente em 1987 Dom Cavati faleceu, na sede da Diocese de Caratinga, com grande prestígio dentre seus pares e muita influência nas decisões locais e é lembrado como o Bispo das Vocações Sacerdotais e das Escolas Católicas.

O contraponto ao educador católico na cidade foi o Reverendo Uriel de Almeida Leitão, pai da nova imortal, que em 1943 proferiu entusiasmado discurso no Ginásio Caratinga, falou sobre as finalidades da educação na sociedade e assumiu a instituição como seu Diretor Geral. O Reverendo Uriel se estabeleceu no ramo da educação privada e a cidade viveu o embate entre os ensinos religiosos com fundamentação católica ou protestante.

Com o golpe empresarial-militar de 1964 a primeira lei de diretrizes e bases da educação nacional, formulada por Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, promulgada em 1962, foi desnaturada. Assim, em 1968, entrou em vigência a “Reforma Universitária”. A partir dos anos 1970 foram estimulados os cursos superiores privados. Em 1971, o coronel-ministro Jarbas Passarinho implantou reforma educacional no ensino correspondente aos níveis fundamental e médio. Houve aumento do número de concluintes do ensino médio, demanda por curso superior e a instituição do Reverendo Uriel instalou a Faculdade de Ciências Contábeis de Caratinga. Depois criou os cursos de Serviço Social, Ciência da Computação, Comunicação Social e Direito. Em 2000 as cinco faculdades compuseram as Faculdades Integradas de Caratinga e desde 2004 é o Instituto Doctum de Educação e Tecnologia.

Ganhou a eleição na ABL a filha do Reverendo Uriel, fiadora da Operação Lava Jato, cujo filho foi o escriba da atuação politizada do “principado de Curitiba”. Perdeu a eleição da ABL um professor, um educador, um homem das letras, que tem como referência teórica Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira e Paulo Freire e, tal como estes, tem uma vida dedicada à educação pública, universal, gratuita e laica

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 17/05/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/05/7057385-joao-batista-damasceno-a-imortalidade-de-miriam-leitao.html