sábado, 13 de dezembro de 2025

Os julgamentos de Sócrates, de Cristo e de Glauber Braga

 

No ano 399 a.C. o filósofo grego Sócrates foi acusado de não crer nos deuses da cidade, introduzir culto a novas divindades e de corromper a juventude ateniense, incentivando-a a questionar as tradições e autoridades. Foi acusado de ameaça à ordem política e social. A nova divindade sobre a qual Sócrates falava aos jovens seria uma voz ou sinal interior que os proibia de fazer certas coisas, mas não lhes dizia o que fazer, tal como a consciência ética que nos impede de certos comportamentos. A condenação à morte foi uma forma política de silenciar sua filosofia crítica, que desafiava as crenças e estruturas de poder.

Do julgamento de Sócrates podemos tirar ao menos duas conclusões: quando o destino da minoria fica entregue à sanha da maioria instala-se a tirania e aqueles desafiam as estruturas consolidadas correm o risco de linchamento. Platão, discípulo de Sócrates, dedicou sua vida a pensar a questão da justiça, diante da injustiça que presenciara.

O pensador alemão Hans Kelsen disse que, dentre os que se ocuparam da questão da justiça, duas cabeças alçam-se muito acima de todas as demais: Platão e Cristo. Este dedicou sua vida à justiça e aquele dedicou sua obra. Quatro anos antes da condenação de Cristo, seu primo, João Batista, fora decapitado porque denunciava as iniquidades do rei da Judeia.

Tanto no julgamento de Sócrates quando no de Cristo a maioria não se importou com a inocência dos acusados. Dentre os 500 juízes que compunham o Conselho de Sentença de Atenas, poucos foram os que votaram pela absolvição do filósofo. No julgamento de Cristo não se tem notícia de voto em seu favor. A literatura religiosa registra que o povo clamava por Barrabás, incentivado por um sacerdote, Caifás, que chegou a rasgar as próprias vestes para incentivar a multidão a condenar o inocente. Há sempre um líder religioso na defesa das injustiças sociais.

Assisti aos julgamentos de cassação dos deputados Glauber Braga e Carla Zambelli. Os julgamentos podem se realizar sob o rito e tipo ideal, com honesta narrativa dos fatos, sua reconstituição e aplicação racional da lei prevista para o caso concreto. Mas também podem ser enviesados para atender a interesses escusos. Nestes, narrativas substituem a reconstituição dos fatos e o Direito pode merecer “piruetas interpretativas” para distorcer o resultado. Mas há julgamentos em que sequer há o requinte de substituição dos fatos por versões ou de “interpretação conforme do Direito” para prejudicar o acusado. São os julgamentos orientados pela cólera. Não são julgamentos. São vinganças por quem detenha o poder momentaneamente. Foi o que assisti no julgamento do deputado Glauber Braga.

O deputado Glauber Braga vem se notabilizando por denunciar a apropriação do orçamento público em forma de emendas parlamentares. Cerca de 50 bilhões de reais do orçamento público vem sendo apropriado anualmente por parlamentares com destinação a prefeituras de suas bases eleitorais, onde são convertidos, também, em espetáculos sertanejos superfaturados ou outros gastos dos quais lhes possam resultar financiamentos de campanhas, compra de voto, pagamentos a cabos eleitorais e ao próprio enriquecimento. Para se ter uma ideia do montante do orçamento consumido em emendas parlamentares, imaginemos alguém que gaste R$ 1,00 por segundo. Tal pessoa consumiria um salário-mínimo em 25 minutos. Mas levaria 12 dias para consumir um milhão e 32 anos para consumir um bilhão. Para consumir 50 bilhões seriam precisos 1.600 anos. A verba destinada aos banqueiros e ao agronegócio ainda é maior. Por denunciar isto é que o deputado Glauber Braga irritou seus pares.

A acusação que lhe fizeram, capaz de anular os mais de 70.000 votos de cidadãos fluminenses, não poderia ser mais espúria. Acusaram-lhe de dar um chute na bunda de um provocador que injuriava sua mãe, que se encontrava no CTI e que morreu dias após o evento. Não tendo improbidade para fundamentar uma acusação idônea arranjaram-lhe um pretexto. E o presidente da Câmara marcou a data da cassação para o mesmo dia em que deveria ser cassada a deputada Carla Zambelli, presa na Itália.

O julgamento caminhava para a cassação do deputado Glauber Braga. Sua esposa, a deputada Sâmia Bomfim, o expressou de forma a emocionar até quem assistia à sessão. O próprio acusado não se defendeu. Ao contrário. Manteve a altivez e repetiu que sua participação no parlamento não seria para se acomodar aos vícios. Mas, aproximando-se o final da sessão, alguém que usa o cérebro para pensar e não o fígado, sugeriu a substituição da pena de cassação pela pena de suspensão pelo prazo de seis meses, o que foi acolhido até pelos seus companheiros. O Parlamento estaria por demais exposto se consumasse a iniquidade. A Bancada BBB (boi, bala e Bíblia) manteve a proposta de linchamento. Mas perdeu. Pelo exercício de legítima defesa da honra da mãe, o deputado Glauber Braga foi condenado à suspensão do mandato por seis meses. Na mesma noite foi votada a cassação da deputada Carla Zambelli. O número mínimo de votos pela cassação não foi atingido. O resultado dos julgamentos foi: um deputado popular a quem não se pode acusar de ato de improbidade foi suspenso por seis meses e uma deputada condenada criminalmente por decisão transitada em julgado, presa no exterior, inelegível, com os direitos políticos suspensos em razão da condenação, permanece detentora de mandato parlamentar.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 13/12/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/12/7178908-joao-batista-damasceno-os-julgamentos-de-socrates-de-cristo-e-de-glauber-braga.html

sábado, 29 de novembro de 2025

Escatologia política: o nome do fenômeno

Reagindo a vaias, enquanto discursava no Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em 2023, o ex-ministro do STF, Luís Roberto Barroso enfatizou o seguinte: "Saio daqui com as energias renovadas pela concordância e discordância porque essa é a democracia que nós conquistamos. Nós derrotamos a censura, nós derrotamos a tortura, nós derrotamos o bolsonarismo para permitir a democracia e a manifestação livre de todas as pessoas". A fala foi mal interpretada e não faltou quem acreditasse haver referência ao ex-presidente da República derrotado nas eleições de 2022 e, atualmente, cumprindo pena privativa de liberdade em regime fechado, em decorrência dos crimes tentados de Golpe de Estado e Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito.

O evento de 08 de janeiro de 2023, além de tentativa de golpe, foi o ápice de um processo degenerativo das relações sociais e institucionais que se acumulava desde a abertura política lenta, gradual e segura dirigida pelo general-presidente Ernesto Geisel e da anistia que impediu uma justiça de transição com responsabilização daqueles que transformaram os quartéis em centros de torturas, mortes e desaparecimentos dos opositores do regime empresarial-militar. Do trinômio memória-verdade-justiça temos apenas o esforço por memória e verdade, uma vez que a justiça foi sepultada pela autoanistia que os algozes das liberdades se concederam.

A transição para a democracia não compreendeu os quartéis. Nestes se mantem o adestrando das novas gerações para acreditarem na legitimidade da truculência da ditadura. Mas a degeneração institucional e social na qual estamos mergulhados não pode ser debitada exclusivamente ao ex-presidente golpista. Trata-se de fenômeno mais profundo do qual o presidiário foi apenas o porta-voz momentâneo. Mesmo com o ícone defenestrado, o fenômeno incivilizatório se mantém em certos setores da sociedade e, sobretudo, nas casernas. Falta muita gente na Papuda, notadamente da elite militar.

O nome do fenômeno que desagrega as pessoas, inimiza familiares, converte templos religiosos em centros de doutrinação totalitária despidos de teologia e fé, rejeita a cultura, ataca as instituições democráticas, desrespeita a justiça, viola o Estado de Direito, reivindica para as Forças Armadas o papel de Poder Moderador, pede intervenção estrangeira no país, produz narrativa diversa dos fatos, abomina livros, desqualifica professores, deslegitima universidades, ofende gays, discrimina mulheres e negros, nega a ciência, afirma o terraplanismo, duvida da eficácia das vacinas e não demonstra compaixão ante doenças pandêmicas ou mortes não é bolsonarismo. O personagem é menor que o fenômeno. O personagem passará, mas o fenômeno poderá persistir com novos atores, para o horror daqueles que desejam uma sociedade justa, humana e igualitária.

O fenômeno incivilizatório que nos remete à barbárie não pode ser substantivado como bolsonarismo, nem como fascismo. Embora fascismo tenha multiplicidade de definições, todas estão associadas à historicidade da política europeia de 1919 a 1945. Tanto o fascismo italiano quanto sua vertente alemã, o nazismo, tinham em comum serem um sistema autoritário de dominação caracterizado pelo monopólio da representação política por meio de um partido único, de massa, hierarquicamente organizado e com uma ideologia fundada no culto a um chefe, na exaltação da coletividade nacional, no desprezo pelos direitos e garantias individuais e fundamentais próprios do liberalismo, no ideal de colaboração entre as classes sociais e na organização corporativa da sociedade. No fascismo, em suas diversas expressões, era clara a tentativa de organização da sociedade visando a uma socialização política planificada, com expansão imperialista. O quadro no qual estamos inseridos não tem estas características. Não é bolsonarismo, porque o personagem é pífio diante do fenômeno. Não é fascismo, porque não tem suas características. Trata-se de ‘escatologia política’ ou ‘escatologismo político’.

Escatologia é termo teológico sobre o fim do mundo e sobre o que se acredita possa ser o triste destino de parte da humanidade. Mas também pode expressar, no campo da biologia, o estudo científico sobre excrementos. Num ou noutro sentido, o termo designa degenerescência.

Vivemos tempo escatológico de exposição pública do que é bizarro, estranho, incomum ou extravagante. A ignorância ou estultice, que antes envergonhava, hoje é exibida com orgulho. O desprezo pela civilidade, que antes era escamoteado, hoje é exposto como troféu. Além dos dois sentidos já conhecidos para escatologia, podemos dizer que os novos tempos nos permite um terceiro sentido: ‘escatologia política’.

Assim, ‘escatologia política’ designa o fenômeno no qual estamos inseridos, com similar natureza a tudo que expressa decomposição. Cabe-nos transformar o que se apresenta deteriorado em fertilizante para a construção de um mundo fraterno com padrões de sociabilidade, humanidade e institucionalidade, tal como o adubo que pode ser assimilado pelas plantas para a produção de matéria viva.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 29/11/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/11/7171541-joao-batista-damasceno-escatologia-politica-o-nome-do-fenomeno.html


domingo, 23 de novembro de 2025

A floração da Palmeira do Amor, que enfeita o Rio





 

No verão de 2020 algumas “palmeiras do amor” localizadas no Aterro do Flamengo floriram. Uma ficava perto da passarela da Marina da Glória e outras em frente ao antigo Hotel Glória, junto ao posto de gasolina. Eu as fiquei namorando. Fui visitá-las enquanto floriam. Durante os meses de janeiro e fevereiro de 2020 eu as visitei várias vezes na espera das sementes.

No início de março de 2020 eu vi que em pouco tempo teria as sementes desejadas. As flores estavam secando e caindo e as sementes que não vingaram já se desprendiam. O próximo passo seria a queda das sementes germináveis, o que poderia durar até um ano a contar do início da floração. Mas em 17 de março foi decretado o lockdown para evitar a propagação do coronavírus e fiquei confinado em casa. Não coletar.

A Palmeira Talipot ou Palmeira do Amor, cujo nome científico é Corypha umbraculifera, floresce apenas uma vez na vida e depois morre. Desta vez a floração foi na primavera. Há nove floridas no Aterro do Flamengo. Cinco estão pelo meio do Aterro, bem perto da praia. Três perto do posto de gasolina em frente ao antigo Hotel Glória e uma entre o Monumento dos Pracinhas e o MAM. Fui visitá-las. As copas carregadas de flores chamam a atenção. No alto das árvores, milhões de pequenas flores amareladas formam uma espécie de grande coroa. Duas delas, que floriram primeiro, já estão secando e soltando os frutos.

A espécie é nativa do sul da Índia e do Sri Lanka e foi introduzida no Aterro do Flamengo na década de 1960 pelo paisagista Roberto Burle Marx. A árvore é rara. E sua floração mais ainda. O motivo da raridade da floração é que demora de 40 a 70 anos para florescer. Antes da introdução no Aterro do Flamengo por Burle Marx, dois exemplares já haviam sido plantados no Jardim Botânico, e – também - floresceram nesta primavera.

O parque tem cerca de 70 palmeiras dessa espécie. Ao longo dos anos de 1960 foram plantadas mais de cem. Algumas palmeiras em floração foram vistas próximas ao MAM, em 1992. Ou seja, menos de 30 anos depois da inauguração do parque, em 1965. Burle Marx morreu em 1994, logo depois. Não chegou a ver a floração da palmeira plantada no seu sítio, em Barra de Guaratiba. Uma semana depois de sua morte ela iniciou o processo de floração.

A árvore pode atingir até 30 metros de altura o que equivale a um prédio de 10 andares. É um raro caso de morte admirada. A palmeira do amor fica bonita antes de se despedir da vida.

Hoje, peguei a bicicleta e fui ao encontro delas. Queria apenas localizá-las e calcular quando poderia apanhar as sementes. Ao chegar uma semente caiu sobre o capacete de ciclista que usava. Pronto! Tive a atenção chamada peça própria árvore de que já era tempo de coleta. Eu não conhecia a semente e fui apresentado da forma mais incomum. Como ameaçava chover tinha levado um saco plástico para proteger o aparelho celular. Deixei de lado a finalidade daquele invólucro e o enchi de sementes.

Enquanto coletava um senhor magro, barbudo e com roupas rotas e sinais de vida sofrida se aproximou e me perguntou se aquelas sementes eram comestíveis. Disse que não. Ele quis saber porque eu as apanhava. Disse que as plantaria e expliquei que árvore era e que somente em 50 anos ela floresce e depois morre. Disse que havia fotografado aquelas que estavam floridas e morriam e que plantaria as sementes para ver nova florada daqui a 50 anos. Ele riu e me disse que não era para ele, porque já tem 67 anos. Eu respondi que tinha mais de 60, mas que esperaria a florada. Afinal, não tenho pressa. Ele riu e me disse: “Se é assim, eu vou esperar também”. E partiu rindo.

Continuei a coleta. Umas senhoras acompanhadas de várias crianças e adolescentes passaram por mim. Era uma família típica da periferia que viera à praia e que a estava deixando porque o tempo se tornara nublado e ameaçava chuva. Um dos meninos se aproximou de mim e perguntou: Isto que o senhor está pegando se come? O menino, magro, olho fundo, tinha a expressão de uns 10 anos. Mas certamente tinha mais idade. O que eles desejavam é que aquilo fosse comestível. Imaginei que tinham fome. Bastou dizer que não era comestível e foram embora. Sequer tive tempo de falar da origem, beleza e outras características da Palmeia Talipot. Quem tem fome tem pressa e não pode parar por questão estética.

Brizola talvez tenha sido o governante que melhor entendeu este país. Ele sabia que tendo comida na escola as crianças não se tornam faltosas. Ao contrário, desejam frequentar até nas férias. Um político “de esquerda”, oposicionista dos CIEPS, tinha presença constante no noticiário de certa empresa de comunicação onde dizia que “escola não é restaurante”. Por ser um professor de história, atribuíam-lhe autoridade para criticar a alimentação escolar.  É verdade que escola não é restaurante, mas pela alimentação podem-se estabelecer vínculos de sociabilidade. E escola não se destina apenas a transmitir conteúdo.

Colhi algumas dezenas de sementes. Já tenho a informação do professor Danilo, coletor de semente que deu aula de ecologia para meu filho desde o jardim de infância, que não deve ser transplantada. É recomendável que seja semeada no recipiente que irá ser colocado na terra. Já busquei outras informações para aumentar a capacidade de germinação. Não me foi possível coletar há 5 anos, por causa do coronavírus, que me impôs reclusão, mas foi possível hoje. Daqui a 50 anos postarei novas fotos, com as floradas que advierem.

sábado, 15 de novembro de 2025

Marginalidade oficial, tráfico de drogas e terrorismo

Ante o bombardeio de barcos venezuelanos pelos EUA, um senador fluminense sugeriu ao governo Trump que igualmente bombardeasse a Baía de Guanabara. O antipatriotismo bárbaro propõe que potência estrangeira ataque a nossa soberania. Trump disse que para combater traficantes não é necessário declarar guerra ao país onde estejam. O presidente Lula contra-argumentou dizendo que os consumidores estadunidenses incentivam traficantes a lhes remeter drogas e que o problema naquele território deve ser resolvido entre eles: autoridades e consumidores estadunidenses.

Há um conluio contra a soberania do Brasil. A jornalista Malu Gaspar disse que o governador do estado do Rio de Janeiro entregou relatório ao embaixador dos EUA, prestando contas da chacina no Complexo da Penha, onde cerca de 130 pessoas foram mortas. Em tempo de guerra híbrida tal conduta implica colaboração com o inimigo. Nos EUA, similar comportamento implicaria prisão perpétua ou pena de morte. Quando juiz de Órfãos e Sucessões remeti ofício a diplomata estadunidense solicitando informações sobre eventuais herdeiros da viúva do antropólogo Darcy Ribeiro. O Cônsul Brendan Mullarkey remeteu-me a seguinte resposta:

O Consulado Geral dos Estados Unidos cumprimenta V. Exma. e vem pelo presente instrumento informar que sempre teve a honra de manter um canal aberto de comunicação e cooperação junto às autoridades judiciais do governo brasileiro. O Setor de Serviços a Cidadãos Americanos tentará procurar pelos supostos sucessores da senhora Jenny Simoza ou Genny Gleizer, que teria falecido em 1995 e irmã e única herdeira de Berta Gleizer Ribeiro. Todavia, temos que seguir regras restritas estipuladas pelo governo dos Estados Unidos com relação à liberação de informações sobre cidadãos norte-americanos, de acordo com a Lei de Privacidade dos Estados Unidos (Privacy Act). Sentimos, portanto, informar que, mesmo em se encontrando tais herdeiros, não poderíamos fornecer os endereços dos mesmos.”

Nem para receber herança as autoridades estadunidenses podem fornecer informação a autoridade estrangeira. Assim age um país soberano.

Vivemos momento de guerra híbrida, modalidade que combina táticas militares tradicionais com táticas não convencionais para desestabilizar países e governos, incluindo guerra de informação por meio da disseminação de desinformação e uso de redes sociais, ciberataques, pressão econômica e influência política visando à manipulação de processos eleitorais.

As guerras sofreram modificações estratégicas, fazendo surgir vários tipos, que se classificam por seus métodos: como convencionais, não convencionais, biológicas, químicas, nucleares, cibernéticas ou econômicas; pelo número de participantes ou finalidade: como civil, internacional, localizada ou total; bem como por suas características táticas: como guerrilha, preventiva, por procuração ou híbrida.

A guerra convencional utiliza forças armadas regulares e pode incluir táticas de guerrilha e conflitos assimétricos que fogem das regras convencionais. A guerra biológica usa bactérias ou vírus para causar doenças e mortes. Biológica e nuclear também são não convencionais. A guerra cibernética ataca os sistemas de informação, as redes e as infraestruturas digitais. A guerra econômica utiliza tarifas, bloqueios e o que mais possa enfraquecer o agredido.

A guerra fria caracterizou-se por conflito ideológico e geopolítico. Mesmo com a ausência de confronto militar direto, não foram poucas as guerras por procuração. Os EUA jamais declararam guerra ao Vietnã, mas forneciam, em seu proveito, meios humanos e materiais para o conflito.

A guerra híbrida conjuga uso de forças militares tradicionais, uso de forças irregulares, ataques digitais, ataques econômicos, ataque a sistemas de informação, disseminação de propaganda, fake News, apoio a movimentos políticos oposicionistas, uso de sanções ou agressões econômicas e lawfare caracterizado pela utilização estratégica do sistema judiciário para atacar adversários políticos.

O principal objetivo da guerra híbrida é desestabilizar um país ou derrubar um governo, sem a necessidade de um confronto militar direto. Ela busca explorar as vulnerabilidades de um país em proveito do agressor, combinando táticas militares, sociais e psicológicas.

A tentativa dos EUA de classificar como terrorismo a venda ilegal de drogas é parte da guerra híbrida, visando a possibilitar atuação aos que sejam considerados ameaçadores da sua segurança na região. Não há narcoterrorismo no Brasil. Uma das características do terrorismo é sua motivação ideológica. O comércio de drogas, seja no atacado pelos magnatas do negócio ou no varejo das favelas e periferia, é uma atividade ilegal que envolve violência, mas meramente comercial visando lucro. É crime, mas não é terrorismo.

Se o governador do estado do Rio de Janeiro entregou relatório ao governo dos EUA, estaremos, ao menos em tese, diante do crime tipificado no Código Penal como atentado à soberania, definido por ato de “negociar com governo ou grupo estrangeiro, ou seus agentes, com o fim de provocar atos típicos de guerra contra o País”.

Ao invés de tipificar o comércio de drogas ilegal como terrorismo o Congresso Nacional tem a incumbência de tipificar como crime contra a soberania nacional o ajuste de autoridades brasileiras com autoridades estrangeiras. É hora de limitar as colaborações e relações institucionais internacionais ao corpo diplomático da nação, sem prejuízo de interlocuções culturais, acadêmicas ou científicas. Para as relações institucionais temos os qualificados quadros funcionais do Itamaraty e o Ministério das Relações Exteriores.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 15/11/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/11/7163526-joao-batista-damasceno-marginalidade-oficial-trafico-de-drogas-e-terrorismo.html

 


sábado, 1 de novembro de 2025

O presidente Lula e a invenção do traficante

 

A declaração do presidente Lula, na Indonésia, de que “Toda vez que a gente fala em combater as drogas, possivelmente, fosse mais fácil a gente combater os nossos viciados internamente” e que “os usuários são responsáveis pelos traficantes, que são vítimas dos usuários também”, precisa ser contextualizada. Ele a fez ao ser questionado sobre afirmativa do presidente estadunidense Donald Trump, de que não é necessária declaração de guerra para matar traficantes de drogas. O governo Trump tem afundado barcos em águas do Caribe, próximo à Venezuela, dizendo estar mirando em traficantes de drogas. Embarcações afundadas podem ser de pescadores. A agressão que se pratica contra a Venezuela visa a criar um clima que favoreça uma intervenção armada e instituição de um governo subordinado aos interesses estadunidenses. A invasão do Panamá e sequestro do presidente Manuel Noruega, por ocasião da retomada do Canal do Panamá, é exemplificativa. A escalada de agressividade à Venezuela inclui autorização à Agência Central de Inteligência (CIA) para sabotagens, terrorismo ou eliminação física em território venezuelano.

A declaração do presidente Lula foi endereçada ao presidente Trump. Se drogas são enviadas aos EUA, há um problema com os cidadãos daquele país que os tem levado ao consumo. Qualquer livro de introdução à economia ensina que a oferta é pressionada pela demanda. Existindo consumidor que procura, haverá fornecedor que oferte. Não adianta oferta sem procura. Além do que, das mais de duzentas substâncias catalogadas e proibidas que alteram o metabolismo apenas três têm sido objeto da preocupação dos EUA: Maconha, coca e papoula. É questão de geopolítica. Sem se ocupar com os problemas no mercado interno, os EUA criminalizam a maconha para justificar pressão sobre o México, a cocaína para atuar da mesma maneira em relação à América do Sul e a papoula por seus interesses na Ásia. Nenhuma outra droga é objeto de preocupação do governo estadunidense. As drogas sintéticas produzidas em laboratórios nos EUA e Europa e que fazem o caminho inverso das drogas naturais, não são objeto de preocupação do presidente Trump. Tampouco ocorrem grandes apreensões em território estadunidense, o que enseja a suspeita de que os próprios órgãos governamentais traficam para aquele país, a exemplo do que a CIA e o Departamento de Estado fizeram no Caso Irã-Contras.

Tráfico, tráfego, trânsito, contrabando e descaminho são termos empregados sem preocupação com os significados. Enquanto trânsito é o mero deslocamento de um lugar para outro, o tráfego é o deslocamento com transporte lícito de coisa ou pessoa. Descaminho é a entrada ou saída de mercadoria do território nacional sem o pagamento de imposto. O muambeiro que traz mercadorias lícitas não é contrabandista. Seu crime é sonegação fiscal; pratica descaminho. No entanto, se a mercadoria for proibida o crime será de contrabando. Por isso, contrabando e tráfico internacional são sinônimos. Mas a política de guerra às drogas difundiu no imaginário social que tráfico é de pessoas, de órgãos ou de drogas. Para diferenciar dos demais criminosos que contrabandeiam mercadorias proibidas, pintaram a figura do traficante de drogas com as piores tintas.
O presidente Lula tem razão. Raramente dou razão a ele, notadamente porque seu discurso – em regra – não é compatível com sua prática. Brizola dizia que era como uma galinha que cacareja para a esquerda e põe o ovo para a direita e Darcy Ribeiro dizia que era a esquerda que a direita gosta. O registro do seu partido, com referência a classe social, contrariava a Lei dos Partidos Políticos vigente desde 1979.

No governo do general-presidente Geisel foi instituída a Operação Radar, visando à eliminação e desaparecimento de dirigentes e simpatizantes do PCB, razão dos assassinatos de Vladimir Herzog e Manuel Fiel Filho, dentre muitos outros. A diferença de tratamento aos dois partidos somente é compreensível à luz da contradição entre o mundo do trabalho e o mundo do capital. As reivindicações de melhores salários e condições de trabalho, ainda que com emprego de greve ou ocupação de empresas, são toleradas pelo capital porque sugerem a conciliação de classes quando atendidas. Aqueles que foram eliminados fisicamente, antes da abertura política, tinham proposta mais radical, porque iam na raiz do sistema.
A criação da figura do traficante, expressão do mal dentre os demais contrabandistas, foi internalizada na lei brasileira em 1971, no governo do general-presidente Médici. Antes, o Código Penal, em seu artigo 281, não distinguia usuário e traficante e ambos eram igualmente criminosos. Em relação à entrada ou saída de drogas do território nacional, a lei se limitava a dizer que era crime importar ou exportar sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

Em 1971, enquanto estimulava golpes militares na América do Sul, o presidente estadunidense Richard Nixon anunciou que as drogas eram o inimigo número um dos Estados Unidos. Com isso, criminalizou a população negra estadunidense, consumidora ou não, e estendeu seus tentáculos sobre a América do Sul. A partir desta declaração foi concebida a política conhecida como “guerra as drogas”. Sabujo dos interesses estadunidenses a ditadura empresarial-militar editou, em 28 de outubro de 1971, a lei 5724 que em seu artigo primeiro dizia que “é dever de toda pessoa física ou jurídica colaborar no combate ao tráfico e uso de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica”.

Não há guerra às drogas. Há guerra a pessoas tratadas como indesejáveis e a países que não se subordinam aos interesses dos EUA.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 01/11/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/11/7155374-joao-batista-damasceno-o-presidente-lula-e-a-invencao-do-traficante.html


segunda-feira, 20 de outubro de 2025

STF, instituições e identitarismo

Quando aluno de Ciências Sociais, no IFCS/UFRJ, um colega afirmou em sala que as mulheres são mais sensíveis e melhores na direção das instituições. A professora, notável antropóloga brasileira, questionou a afirmativa: “Que pesquisa você fez que comprova sua hipótese?” Apesar de professora associada à Fundação Ford, instituição estadunidense que contribuía com a construção das bases ideológicas que afastavam a sociedade brasileira de referências opostas aos interesses estadunidenses, tinha honestidade intelectual. Em seguida, citou nomes de mulheres que exerceram poder com mão de ferro ou desumanidade.

A primeira a ser citada foi Margaret Thatcher, apelidada de “dama de ferro”, primeira-ministra do Reino Unido e cuja imagem até hoje é usada para amedrontar os eleitores britânicos que pensam em votar nos conservadores. Seguiram-se Golda Meir, Benazir Buttho, Imelda Marcos, Violeta Chamorro e outras.

Golda Meir foi primeira-ministra de Israel de 1969 a 1974. Embora as Cortes internacionais de justiça não a tenham condenado por crimes contra a humanidade e genocídio, não há quem deixe de lhe imputar tais crimes. Teria ordenado operações de caça e assassinato, pelo Mossad, de opositores do sionismo, seus familiares e membros da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), além de negar a possibilidade de existência do povo palestino. Benazir Bhutto, primeira-ministra do Paquistão de 1988 a 1990 e de 1993 a 1996, foi figura emblemática do Partido Popular do Paquistão. Imelda Marcos, conhecida como "Borboleta de Ferro", exerceu várias funções ativas no governo das Filipinas. Foi governadora da região metropolitana de Manila, ministra dos Assentamentos Humanos, deputada na Assembleia Nacional e embaixadora extraordinária e plenipotenciária. Violeta Chamorro, oligarca dona de uma empresa de comunicação na Nicarágua, foi a expressão política dos Contras que lutavam contra a Frente Sandinista de Libertação Nacional, responsável por derrubar a ditadura de Anastasio Somoza. Foi eleita presidenta em 1990. Os Contras, guerrilha anti sandinista, e o jornal de Violeta Chamorro eram financiados pelos Estados Unidos, por meio da Central Intelligence Agency (CIA), com recursos advindos de tráfico de armas e drogas, no que ficou conhecido como Caso Irã-Contras. Órgãos e autoridades estadunidenses financiavam seus parceiros na Nicarágua com o produto da traficância. Violeta Chamorro não expressou a vitória de uma mulher na Nicarágua, mas dos interesses estadunidenses contra o povo nicaraguense. Pouco importava o gênero. O que os EUA precisavam era de fantoche que lhes garantisse a apropriação das riquezas daquele país.

Depois de falar sobre estrangeiras chefes de estado, a professora falou de Lygia Lessa Bastos e Sandra Cavalcanti, personagens femininas brasileiras cujas atuações políticas se caracterizaram pela desumanidade no trato com os direitos dos excluídos. A remoção das favelas e alocação dos seus moradores em lugares distantes, favorecendo a especulação imobiliária na Zona Sul do Rio de Janeiro, foi uma dessas políticas. Mas aconteceram coisas piores.

Atualmente, a premiação da venezuelana Maria Corina Machado com o Prêmio Nobel da Paz, ao invés de significar a luta de uma mulher pela democracia na Venezuela, tem o objetivo de preparar uma incursão militar dos EUA naquele país para subtrair seu petróleo. Sua premiação está a serviço do imperialismo e do colonialismo.

Em momento no qual os critérios identitários são propostos como fundamento para a próxima escolha para o STF, é relevante refletirmos sobre a questão. Será tal critério o que melhor atende aos interesses sociais ou pode servir para camuflar outros interesses? Que a sociedade manifeste seus desejos de representação é legítimo. Mas a pressão de membros de poder ou de empresas de comunicação é indevida ingerência na prerrogativa de escolha do presidente da República.

Quando da implicância desarrazoada com o Programa Mais Médicos, o humorista José Simão escreveu que pouco importava se o médico era Cubano, Venezuelano, Colombiano ou Boliviano. O que ele esperava é que o médico fosse humano. O Presidente Lula já caiu no conto do identitarismo, com acentuado custo para a sociedade. Que a indicação recaia sobre quem tenha compromisso incondicional: com os valores jurídicos próprios do Estado Democrático de Direito; com a realização substancial e não apenas formal dos valores, direitos e liberdades do Estado Democrático de Direito; com a defesa da independência do Poder Judiciário não só perante os demais poderes como também perante grupos de qualquer natureza, notadamente os econômicos e internos da magistratura representativos do patrimonialismo; com a democratização da magistratura, seja no ingresso, nas condições do exercício profissional e na ascensão funcional; com o fortalecimento das prerrogativas funcionais da magistratura de primeira instância, acessada por concurso; com a Justiça considerada como autêntico serviço público que, respondendo ao princípio da transparência, permita ao cidadão entender os mecanismos de seu funcionamento; com a promoção e a defesa dos princípios da democracia pluralista e a difusão da cultura jurídica democrática, bem como consciência de que a função judicante há de ser exercida para a proteção efetiva dos direitos da pessoa humana, individual e coletivamente considerada, notadamente os vulneráveis. Seja quem for com estas características, o presidente da República estará repetindo o virtuoso comportamento do presidente Afonso Pena quando indicou Pedro Lessa, conforme relato do ex-ministro do STF Paulo Brossard.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 18/10/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/10/7147462-joao-batista-damasceno-stf-instituicoes-e-identitarismo.html

 

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

CET-Rio interdita entorno do Maracanã para jogos e torna inviável funcionamento da UERJ. Cartolagem e negócios desportivos ou educação e ciência? Que opção há de fazer o Brasil?

CET-Rio interdita entorno do Maracanã para jogos e torna inviável funcionamento da UERJ. Cartolagem e negócios desportivos ou educação e ciência? Que opção há de fazer o Brasil?

E inadmissível o descompromisso com a educação neste país. Um jogo de futebol impede que alunos e professores tenham acesso a uma universidade. Já vivenciei situação de impedimento de chegada à faculdade e ter que voltar do ponto de interdição.

Isto é algo que o prefeito e o governador precisam se ocupar. Um jogo de futebol não pode impedir o funcionamento de uma universidade. Ou educação é mero discurso a se fazer em tempo de eleição?

A notícia publicada no site da CET-RIO é a seguinte:

CET-Rio preparou esquema especial de trânsito para jogo no Maracanã - Marcos de Paula/ Prefeitura do Rio

A CET-Rio montou um esquema de trânsito para o jogo entre Fluminense e Juventude, nesta quinta-feira (16/10), às 21h30, no Maracanã, pelo Campeonato Brasileiro. A partir das 19h30 haverá interdições ao tráfego de veículos na região do estádio. E, além dos locais regulamentados com proibição de estacionamento, outras vias estarão restritas a partir das 10h.

A operação contará com agentes da CET-Rio e apoiadores, veículos operacionais e motocicletas que estarão empenhados na orientação do trânsito. E, ainda, no reforço das informações do trânsito, 13 painéis de mensagens variáveis informarão sobre os horários dos fechamentos e as rotas alternativas. Todo o conjunto é em prol da segurança viária, fluidez do trânsito, manutenção dos cruzamentos livres, como também na orientação dos pedestres, torcedores e motoristas.

Técnicos da CET-Rio no Centro de Operações Rio (COR) vão monitorar toda a movimentação do trânsito por meio das câmeras para que, se necessário, sejam feitos ajustes na programação semafórica com o objetivo de garantir as boas condições viárias.

 

Interdições

 

Das 19h30 (16/10) à 1h30 do dia seguinte (17/10)

– Rua Professor Eurico Rabelo

– Rua Artur Menezes Rua Conselheiro Olegário

– Rua Isidro de Figueiredo

– Rua Visconde de Itamarati, entre a Rua São Francisco Xavier e a Rua Professor Eurico Rabelo

– Avenida Rei Pelé, duas faixas no sentido Centro, entre a Avenida Professor Manoel de Abreu até a altura do Museu do Índio

– Avenida Maracanã, sentido Centro, entre a Rua São Francisco Xavier e a Rua Mata Machado

 

Das 23h10 (16/10) à 1h30 do dia seguinte (17/10)

– Avenida Professor Manoel de Abreu, sentido Centro, entre a Rua São Francisco Xavier e a Avenida Rei Pelé

– Rua Dona Zulmira, entre a Avenida Professor Manoel de Abreu e a Rua São Francisco Xavier

 

Proibição de estacionamento

Das 10h (16/10) à 1h30 do dia seguinte (17/10)

– Rua Professor Eurico Rabelo

– Rua Visconde de Itamarati, entre a Rua São Francisco Xavier e a Rua Professor Eurico Rabelo

– Rua Isidro de Figueiredo

– Rua Artur Menezes

– Rua Conselheiro Olegário

– Avenida Paula Sousa, lado esquerdo, entre a Rua São Francisco Xavier e a Rua Professor Eurico Rabelo

Rotas alternativas

Provenientes do Centro e Zona Sul

– Para a Tijuca: utilizar a Avenida Paulo de Frontin e Rua Dr. Satamini, ou seguir pela Praça da Bandeira, Rua Pará ou Rua Paraíba e, em seguida, Rua Mariz e Barros

– Para Vila Isabel e Grajaú: utilizar a Avenida Paulo de Frontin e Rua Dr. Satamini, ou seguir pela Praça da Bandeira, rua Pará ou Rua Paraíba, Rua Mariz e Barros e, em seguida, Rua Major Ávila e Rua Felipe Camarão

– Para a região do Grande Méier: utilizar a Rua Visconde de Niterói

Provenientes da Tijuca, Grajaú, Vila Isabel e entorno

– Para o Centro e Zona Sul: utilizar a Rua Conde de Bonfim e a Rua Haddock Lobo

Provenientes do Grande Méier

– Para o Centro e Zona Sul: utilizar a Rua Visconde de Niterói

 

Fonte: https://prefeitura.rio/cet-rio/cet-rio-monta-esquema-de-transito-para-jogo-do-fluminense-no-maracana-5/

 


sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Popó, Wanderlei Silva, Neoliberalismo e barbárie

Ao longo da história as sociedades se organizaram com fundamentos em valores e princípios que lhes possibilitaram existir. Suas instituições tinham a função de referência de ordem e redutoras das incertezas do futuro. Chegamos ao século XX com a consciência de que a riqueza socialmente produzida precisava ser repartida e todos tinham o direito à participação na organização e destino da sociedade. O século XX foi a Era de Ouro do mundo do trabalho. Mas assistimos à derrocada de tal modelo e a vida se precariza.

As novas tecnologias dispensam massivos contingentes de mão de obra. A desregulamentação precariza as relações de trabalho e difunde-se a ideia de que cabe a cada um, por seus próprios meios, atingir seus objetivos. Tudo é desregulamentado, menos a propriedade. Tudo se transformou em mercadoria. Até a água teve sua natureza alterada. Desde 1997, no Brasil, água é bem econômico. Não mais é bem natural a todos acessível e sua captação não mais é livre.

O “Vale-Tudo” nos ringues foi renomeado de MMA. Mas ainda não há nome para designar o vale tudo nas relações sociais. Não é fascismo, evento que ocorreu na metade do século XX, nem é fenômeno que possa ser designado pela adjetivação do nome de indivíduo que simboliza a boçalidade. A selvageria que estamos revisitando está expressa na conduta de certos indivíduos, mas com eles não pode ser confundida. São bárbaros, mas não inventaram a barbárie. São incultos, mas não inventaram a ignorância. São negacionistas, mas não inventaram a irracionalidade.

Na semana passada a luta armada entre Popó e Wanderlei Silva, no Spaten Fight Night, foi exemplificativa do tempo no qual vivemos. O esporte, que é meio de exercício civilizado da violência própria da natureza animal do ser humano, foi igualmente afetado pelo desvalor que triunfa. Dois veteranos dos ringues, um no boxe, outro no MMA, nos deu a dimensão do fenômeno no qual estamos imersos. O boxe já foi proibido no Brasil, dada a sua lesividade e já teve negada sua natureza esportiva. O espetáculo, entre os gladiadores aposentados, patrocinado por uma cervejaria, não foi um evento esportivo. Tratou-se apenas de entretenimento para vender ingresso e gerar repercussão, tal como fazem-se nas rinhas de galo, lutas de cães ou arremesso de anão. Foi o espetáculo da barbárie contemporânea.

No ringue, um dos gladiadores ignorou as regras, cabeceou ilegalmente o oponente e acabou desclassificado. O vencedor foi aclamado por mera formalidade. Quem pagou para ver aquilo ou quem ficou acordado para assistir mereceu o que teve. Mas a bizarrice não acabou. As equipes dos gladiadores entraram em campo e ofertaram um aprimoramento da incivilidade: socos, chutes, empurra-empurra, nocaute depois do confronto, nariz quebrado, sangue e muito mais.

A rusticidade, com toda sua crueza, nos leva a refletir sobre as relações sociais no tempo presente, notadamente as relações que envolvem a política, a governabilidade e a administração do que é público. O evento era a própria desregulamentação da vida social demandada pelo anarcocapitalismo onde, tal como no Estado de Natureza, inexiste regra de bem viver e vale a lei do mais forte. O evento em si foi falso, não tinha qualquer importância, o primado foi o da violência injustificada e todos perderam, tanto os gladiadores, seus auxiliares e quem assistiu. Somente quem arrecadou na bilheteria pode se dizer ganhador.

O ministro Luis Roberto Barroso, do STF, acreditou termos vencido a incivilidade e a nomeou com adjetivo que é pouco para a definição. Precisamos de um nome. A lógica da luta tem o mesmo código do fenômeno que perpassa as atuais relações sociais: ignorância, violência, encenação, fake news e desprezo pelos valores civilizatórios. Já não é a sociedade do espetáculo. É o espetáculo do que é grotesco, ridículo, extravagante, da fanfarronice e da presepada sem base sólida que lhe dê sustentação, a não ser a polarização volátil em proveito de quem lucra.

O que se viu é corrosivo da civilidade. Não há vencedor nessas condutas, seja no ringue ou na arena política. Quem participa, assiste ou torce é um perdedor. Perdemos todos, pois tais condutas são as pás com as quais se cavam a sepultura do que a humanidade construiu ao longo da sua existência. O fenômeno no qual estamos mergulhados é corrosivo da civilidade e destrutivo da humanidade.

Os dois personagens e seus asseclas são a expressão do fenômeno que nos apavora. Aquele ringue era o extrato do pensamento social que permeia as relações atuais no Brasil. Se era boxe não tinha lugar para cabeçada nem chute. Mas como exigir respeito às regras se no vale tudo da vida social a norma é o golpe violador da regra, o desejo de anistia ou a redução da penalidade? Em carne e osso (embora fraturado) o estilo visto no ringue é o vigente na atualidade. Este é o esporte que o fenômeno ainda inominado difunde.

É o Vale-Tudo, onde o mais forte tritura o mais fraco. É o espetáculo da destruição sem pretensão de reconstruir algo que possa ficar no lugar. É a técnica do gafanhoto que a tudo devora e destrói. O mais estiloso é o que aplica o golpe mais baixo, tem a ignorância como metodologia e a terra arrasada como projeto a ser concluído. É possível dizer ao Wanderlei Silva: “Perdeu Mané! Mas relaxe! Com a difusão de tais modos incivilizados, perdemos todos. E perderemos muito mais se continuarmos por onde estamos indo. Perdoemo-nos! Anistiemo-nos! A anistia apaga tudo, para recomeçarmos do mesmo modo”.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 04/10/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/10/7139644-joao-batista-damasceno-popo-wanderlei-silva-neoliberalismo-e-barbarie.html

 


Filhotes da ditadura, o fim do ciclo

 

O golpe militar proclamador da República propiciou que a classe fardada passasse a se arvorar tutora das instituições republicanas e nelas interviessem quando julgasse conveniente. Em todas as intervenções, tentadas ou consumadas, os militares atuaram no interesse das próprias corporações, na defesa da classe dominante ou de interesses estrangeiros, ainda que sob outras justificativas.

Pela Constituição de 1891 caberia ao STF dizer o direito com independência, mesmo quando os conflitos envolvessem matéria política. Muitas das vezes o STF abdicou do seu dever de dizer o direito sob o fundamento da “objeção do caso político”. Ao judiciário cabe dizer o Direito com base no que for alegado e provado, mesmo que envolva interesses políticos. João Mangabeira, por ocasião da comemoração do centenário do nascimento de Rui Barbosa, disse que o Supremo foi quem mais falhou na República, pois não exerceu os poderes que lhe competiam, deixando o espaço ser ocupado por quem não deveria se imiscuir na ordem interna.

Os militares se pretenderam eminências pardas na República e já no seu nascedouro tentaram um golpe contra o terceiro presidente civil, Rodrigues Alves, em 1904. Os golpistas valeram-se da insuflada Revolta da Vacina. Todo golpe tem o anteparo de alguma inquietação popular provocada, incentivada ou espontânea. Dezenas de mortos e centenas de feridos foi o resultado da tentativa frustrada. A pretexto de pacificar a sociedade, os golpistas foram anistiados.

Em 1922 jovens tenentes atentaram contra o Estado no governo de Epitácio Pessoa. O evento dos 18 do Forte de Copacabana reuniu golpistas de diversas matizes que permaneceram unidos por décadas até a consumação do golpe de 1964. Arthur Bernardes, um presidente nacionalista, governou sob ameaça de golpe e com estado de sítio de 1922 a 1926. O Clube Militar estava ativo na atividade golpista, difundindo documentos falsos. O triunfo da Revolução de 30 implicou anistia a todos e promoção dos golpistas. Getúlio Vargas tomou posse em 03 de novembro de 1930, mas a deposição do presidente Washington Luís fora feita em 24 de outubro. O golpe de 1930 destituiu o presidente em exercício e impediu a posse do presidente eleito.

Em 1937 mais uma falsidade documental contribuiu para o golpe. O Capitão Olímpio Mourão Filho elaborou um documento falso e o levou ao comando das Forças Armadas. Com base nele foi instituído o Estado Novo. Quem apoiou o presidente Vargas no golpe de 1937 o destituiu em 1945. A partir de então o Estado estava sequestrado pelas corporações fardadas.

Em fevereiro de 1954 foi lançado o Manifesto dos Coronéis contra o aumento do salário-mínimo em 100%. Com isso derrubaram o Ministro do Trabalho João Goulart. Não foram punidos. Em agosto de 1954, militares da Aeronáutica a serviço da UDN e vinculados a interesses escusos, levaram o presidente Vargas ao suicídio. Vargas morreu, mas deixou a carta-testamento denunciando os interesses que o destituíram da presidência.

Em 1955, um coronel lotado na ESG discursou na presença do Ministro do Exército, Marechal Lott, dizendo-se contrário à posse de Juscelino Kubitscheck e do vice João Goulart. O presidente Café Filho se licenciou para suposto tratamento de saúde e o presidente da Câmara assumiu, ratificando o posicionamento do golpista coronel Mamede, demitindo o Marechal Lott do comando do Exército. Lott deu um contragolpe preventivo, destituiu o presidente interino, impediu o retorno de Café Filho, e deu posse a JK em 31 de janeiro de 1956. O golpe preventivo foi submetido ao STF e o ministro Nelson Hungria disse que não deferiria habeas corpus contra o Exército porque as espadas dos militares eram verdadeiras e a dele mero adereço de gesso no teto ou pinturas nas paredes. O voto do ministro está acessível no site do STF.

Durante seu mandato JK sofreu duas tentativas de golpe. Aragarças e Jacareacanga, além de ato de indisciplina de oficiais da Aeronáutica. A pretexto da pacificação todos foram anistiados. Manifesto chegou a ser divulgado pelos golpistas no sentido de que as feridas deveriam ser cicatrizadas e não mantidas expostas. Em 1961, ante a renúncia do presidente Jânio Quadros, a elite militar tentou impedir a posse do vice-presidente João Goulart. A posse foi garantida pela Campanha da Legalidade liderada pelo governador gaúcho Leonel Brizola.
Em 01 de abril de 1964 todos os que haviam sido anistiados estavam unidos no golpe-empresarial militar que infelicitou o povo brasileiro por 21 anos. Agora general, Olímpio Mourão Filho, golpista de 1937, foi quem partiu de Juiz de Fora em 31 de março dando início ao golpe, inaugurando um período sombrio de torturas, assassinatos, desaparecimentos, roubos, estupros e outras perversidades, além de cercear um projeto de soberania nacional e vender o futuro do país ao capital internacional.

Com a morte do general-presidente Costa e Silva, o vice Pedro Aleixo foi impedido de assumir. Um golpe interno afastou o general Albuquerque Lima da sucessão, levando o general Médici à presidência. Os gorilas da Linha Dura reinaram, escancarando a ditadura. Em 1977 o general Sylvio Frota, que tinha o então coronel Heleno, agora general condenado pelo STF, como ajudante de ordens, tentou um golpe no general-presidente Geisel. No início dos anos 80 militares colocavam bombas pelo país a fim de causar clamor popular e darem um golpe contra a redemocratização. Mas uma bomba explodiu no colo dos terroristas fardados, durante um show para jovens no Riocentro. Todos os militares que tentaram golpes e foram anistiados estiveram envolvidos em golpes, tentados ou consumados, posteriores. Isto porque os criminosos soltos costumam voltar aos locais dos seus crimes.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 20/09/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/09/7132110-joao-batista-damasceno-filhotes-da-ditadura-o-fim-do-ciclo.html


domingo, 7 de setembro de 2025

Gratificação da política de extermínio


 

Dispõe a Constituição que é assegurado aos funcionários públicos revisão geral anual das suas remunerações, sempre na mesma data e sem distinção de índices. Mas no Rio de Janeiro tal direito encontra óbice na alegação do regime de recuperação fiscal. Inegável a crise no Estado do Rio., sem igual desde que se tornou capital do Brasil, em 1763. As indústrias migraram do estado, não se tornou polo de tecnologia e conhecimento, a cidade do Rio deixou de ser capital e, embora seja a mais bela cidade do mundo, sequer é o primeiro destino turístico. Na Polícia Civil não há verba para implementação das gratificações por mestrado e doutorado, nem assistência à saúde dos servidores policiais.

O cenário é triste. Mas não faltam recursos para certos tipos de gratificações e certas promoções, dentre elas as gratificações para quem atua na Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil do Rio de Janeiro (CORE) e para quem é beneficiado com reconhecimento de bravura. Quem atua na CORE recebe gratificação pela lotação e se lhe reconhecerem bravura ganha promoções e gratificação de 20% sobre o vencimento. Mas há quem receba acréscimo de 40%. Promoção, gratificação por lotação e gratificação permanente por bravura! É uma farra. De novembro do ano passado a julho deste ano, a polícia civil promoveu 563 policiais por bravura. A cada dia foram promovidos por bravura dois policiais, implicando aumento salarial dos agraciados e ocupação das vagas destinadas a promoções por merecimento e antiguidade.

Em tempos passados a política de segurança do Estado do Rio de Janeiro instituiu a ‘gratificação faroeste’. Tratava-se de uma recompensa em dinheiro para o policial que se envolvesse em confronto armado. O resultado não poderia ser pior. Aumentou-se a letalidade e não foram poucas as fraudes. Policiais chegaram a simular confronto para o recebimento do ‘jabá fúnebre’.

A ideia de promoção ou recompensa por bravura é algo estranho a uma política de segurança que vise a proteger vidas e estabelecer relações cordiais entre os agentes do sistema de segurança e a sociedade. A recompensa por bravura surgiu nas instituições militares em tempos de guerra e somente a recebia o combatente que tivesse sido reconhecido por feito excepcional. Pelo ato ordinário, durante uma guerra, nenhum soldado recebe recompensa por bravura, pois combater o adversário é sua missão.

A CORE, que não processa inquéritos dada sua natureza operacional, tem mais que o dobro dos policiais lotados na Delegacia de Homicídios (DH), que investiga todos os homicídios ocorridos na Cidade do Rio de Janeiro.

A gratificação e a promoção por bravura implicam violação aos direitos daqueles que realizam trabalhos ordinários, imprescindíveis para as investigações. A gratificação por bravura é irmã siamesa da ‘gratificação faroeste’ que causou muitos danos à sociedade civil fluminense. E, neste momento está vulgarizada. A ‘gratificação faroeste’ exigia enfrentamento, real ou simulado, normalmente com relato de ação letal. Nas promoções por bravura há relato de inclusões indevidas de apaniguados nos Registros de Ocorrências. Até fato ordinário ocorrido em sede policial tem sido registrado como bravura, pavimentado a folha funcional do agraciado a fim de garantir-lhe promoção e gratificação. Há registro de policial que recebeu seis reconhecimentos de bravura num mesmo dia. Nem o personagem Rambo foi capaz de tal proeza.

Realizou-se na Assembleia Legislativa (ALERJ), no dia 28/08, audiência pública, com a participação do Sindicato dos Delegados de Polícia (Sindelpol-RJ). Mas a cúpula da direção do estado não compareceu para o debate e publicização republicana de suas condutas. Enquanto se desenvolvia a audiência na ALERJ, reuniram-se na Cidade da Polícia com parlamentar cujo histórico registra honraria a miliciano. O objetivo da reunião na Cidade da Polícia foi a comunicação de aumento do valor da gratificação de quem está na CORE fora da atividade de investigação. Além da desorganização do serviço público, tal prática pode vir a implicar na formação de grupos ou quadros eleitorais oriundos de tal tipo de beneficiamento, aumentando a violência no período eleitoral, com risco para a própria democracia.

A promoção e a gratificação por bravura prestigiam quem atua com letalidade, em detrimento de quem investiga com inteligência e legalidade exercitando a atividade fim. O prestígio à operacionalidade na Polícia Civil enfraquece sua função investigativa, atividade que lhe é própria, favorece a ação repressiva e propicia o aumento de letalidade. Enquanto isto os crimes ocorridos não são investigados e aumenta-se a sensação de impunidade.

A CORE atua fora das atribuições institucionais da Polícia Civil. A Polícia Militar tem a função de evitar ostensivamente a ocorrência dos crimes. A Polícia Civil tem a função de apurar as ocorrências criminosas e seus possíveis autores. Por isso a Polícia Civil não usa farda e sua atuação há de ser com a discrição indispensável às investigações.

Se a remuneração por lotação em órgão operacional, mesmo sem operacionalidade, e se as gratificações e promoções por bravura estiverem vinculadas à eleição vindoura de 2026, quem as promove poderá ser responsabilizado por abuso de poder político, caso esteja incidindo em favorecimento com fins eleitorais. A gratificação por lotação na CORE, a farra das bravuras e as promoções delas decorrentes hão de merecer atenção dos órgãos de controle, notadamente do Ministério Público Eleitoral. É questão de preservação da democracia e justiça com os demais trabalhadores policiais preteridos.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 08/09/2025, pag. 12.

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Adeus ao amigo Sílvio Tendler!

 Adeus ao amigo Sílvio Tendler!

                                            João Batista Damasceno



As fotos registram dois dos muitos encontros que tive com meu amigo Sílvio Tendler. Todos recheados de ironia, sarcasmo e seriedade. Mas nenhum com sisudez.

O pássaro no meu ombro, na foto à esquerda, é Renè. O nome francês é porque o Silvio não sabia o sexo do animal. Daí que poderia manter o nome quando descobrissem ou ele declarasse ser do sexo masculino, feminino, interssex ou neutro. Sem embarcar no identitarismo, Sílvio ria da situação. Passei longos momentos conversando com Sílvio, com a participação do Renè. Renè participava das conversas e repetia o som que emitíamos ao fim de cada frase. Renè assobiava A Internacional (quando queria). Na maioria das vezes emitia uns sons que não sabíamos o que significava, mas o incluíamos na conversa. E era muito divertido. A foto é de 02 de março de 2024. Numa das internações hospitalares do Sílvio, Renè – sentindo sua falta – saiu pela janela para procurá-lo e nunca mais voltou.

A outra foto registra a exibição e debate do documentário do Sílvio “Os Advogados Contra A Ditadura”. Nela estão o Silvio, a inigualável Eny Moreira, Modesto da Silveira e eu. Sem os três eu me sinto órfão mais uma vez.

Com o Sílvio eu me divertia fazendo coisas sérias. Numa delas foi numa reunião do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), onde ambos éramos Conselheiros Titulares, e uma corja indecente queria punir um idoso que – durante a pandemia – se descuidara e trocara de roupa diante da câmera. O ancião supunha ter desligado a câmera, quando o havia feito tão somente do microfone. Os moralistas, sem ética, queriam compor uma comissão para investigação da conduta do velhinho. Opus-me que os próprios acusadores formassem a Comissão Torquemada para investigação da nudez inadvertida. Retiraram um deles da Comissão Savonarola e incluíram o Sílvio. O Sílvio era o único opositor da formação da comissão e da punição do descuidado ancião.

Ao fim da reunião, satisfeito com a inclusão do Sílvio na Comissão de Investigação por Ato Atentatório à Moralidade dos e das Vestais da ABI, sugeri que a apresentação do Relatório da Comissão de Investigação fosse precedida da apresentação do filme “Toda Nudez Será Castigada”. O Sílvio se escancarou de rir e um escroto, que hoje ocupa cargo de Conselheiro da Presidência da República, nos recriminou, dizendo que aquela comissão era coisa séria.

Nas reuniões que fizeram, para apurar a nudez, o Silvio preparou um parecer que começava relatando o julgamento d`As Bruxas de Salém e outras atrocidades registradas na história, bem como relembrou a história de cada um dos algozes do ancião. Todos se calaram, a comissão encerrou seus trabalhos, não fez qualquer relatório e o assunto jamais voltou a ser comentado nas reuniões da ABI. Em consequência o velhinho que se descuidara e trocara de roupa com exibição online deixou de viver sob a espada de Dâmocles que o sujeitava a situação vexatória. Tratou-se de uma comissão criada, instalada e esquecida, sem ato de encerramento dos seus trabalhos. Era coisa de gente moralista, com a ética própria dos moralistas, ou seja, de gente desocupada que não tinha outra coisa a fazer senão promover o mal-estar a terceiros. Os escrotos são maus e desejam a infelicidade alheia. Este é o sentido do termo.

Não faltaram trapalhadas. Na exibição do filme, também do Sílvio, “Ousar Viver! Histórias da Maria”, no antigo Estação Botafogo, em 11 de março passado, às 18h00, o Sílvio me mandou áudio da porta do cinema: “Estou te esperando! Estou te esperando! Já estou aqui no cinema”. Fui prá lá. Estava nas proximidades e cheguei em minutos. A exibição começaria às 20h00.

Foram muitos os encontros, conversas e provocações com o Sílvio. Todas com muito humor. Nossos últimos desencontros e mensagens foram no início de julho. Num ele reclamou que eu não estava num restaurante que ele esperava me encontrar. Noutro, ele me chamou para ir à sua casa. Mas eu acabara de chegar em casa cansado e fiquei de ir outro dia. Entrei em férias, viajei em julho, retomei às atividades no Tribunal e na universidade em agosto, quando ele já estava internado, e não fui ao seu encontro.

Sílvio não era tímido quando queria reclamar a visita dos amigos. Numa das suas internações eu lhe mandei mensagem perguntando como estava. Ele não disse do seu estado. Disse onde estava e o número do quarto. Fui imediatamente vê-lo. Ao entrar no quarto ele caiu na gargalhada e disse: “Você entendeu que o que eu queria era visita". Rimos juntos.

Rirei toda vez que lembrar das conversas que tivemos. Algumas impublicáveis!

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Ciclismo, morte e legado dos grandes eventos

Trafegando pela Avenida Pasteur, em Botafogo, à minha frente um ciclista pedalava pela pista de rodagem. A partir do entroncamento com a Rua Repórter Nestor Moreira tal avenida não mais dispõe de ciclovia. O Código de Trânsito Brasileiro reconhece a precedência do ciclista sobre os automóveis, se inexistir ciclovia. Conduzi o carro em baixa velocidade, possibilitando ao ciclista continuar transitando, com prioridade, à minha frente. Uma ultrapassagem somente seria permitida se pudesse fazê-lo com um metro e meio de distância, o que a largura da via não permitia. Ao chegar ao semáforo existente em frente à Policlínica de Botafogo, pensei que o ciclista fosse parar, pois o sinal estava fechado para veículos de qualquer espécie. Mas sem se importar com a norma de trânsito, o ciclista avançou o sinal ameaçando de atropelamento um casal de idosos que se amparava reciprocamente para atravessar a rua na faixa de pedestres.

Nossa realidade está permeada por exigências de comportamentos alheios sem condutas similares às que exigimos de terceiros. É o problema do moralismo. O moralismo é a ética de quem não tem ética. O ciclista transgressor, certamente, exige respeito e cuidado, mas não atuou com a mesma reciprocidade com os idosos que saíam do hospital. Isto ocorreu no domingo passado, dia 17.

Na sexta-feira, dia 15, meu assessor Danny Rogers Coelho Teles fora atropelado por uma bicicleta e morreu. Ele fora meu aluno na faculdade de Direito. Ao fazer seleção para assessor no Tribunal de Justiça ele, que se tornara serventuário da justiça por concurso público, se candidatara à função. Fora bom aluno. Era da turma do fundão da sala, que juntamente com outros eram os mais bagunceiros e participativos das aulas. Num semestre dei aula pela manhã. No semestre seguinte pedi transferência para a noite. Mas deles não me livrei. Eles se inscreveram à noite e continuaram os cursos comigo. E assim estabelecemos uma relação de ensinagem, processo pedagógico no qual quem aprende também ensina e quem ensina aprende. O clima era de seriedade, compromisso com os objetivos dos cursos e muita camaradagem.

Ao ser informado do atropelamento por uma bicicleta e do óbito do meu assessor, duvidei da notícia. Afinal, uma bicicleta não é capaz de causar dano tão acentuado. Mas era verdade. Meu assessor, voltando de encontro com amigos atravessava a Avenida Vieira Souto, em Ipanema, na proximidade da Rua Maria Quitéria e, terminando a travessia, foi atropelado por um ciclista profissional que, em alta velocidade, treinava naquela madrugada. O ciclista igualmente sofreu fraturas, mas sem gravidade. Ambos foram socorridos para o Hospital Miguel Couto. Meu assessor não saiu de lá vivo. O ciclista foi imediatamente transferido para um hospital, desses existentes na Zona Sul do Rio de Janeiro destinados ao atendimento de quem tenha dinheiro que atribua o direito à saúde.

A dinâmica do acidente ainda precisa ser investigada e esclarecida. É certa a materialidade. É certo que uma pessoa morreu em decorrência de um acidente envolvendo um ciclista. Mas antes de questionar sobre o comportamento dos dois envolvidos no evento, é preciso apreciar o comportamento do poder público que autoriza o uso das vias públicas para treinamento por desportistas de alto rendimento.

Sem iluminação, sem motor que faça barulho, com pequeno volume e alta velocidade, uma bicicleta de corrida é imperceptível à noite. Trata-se de inegável irresponsabilidade política e administrativa a decisão do poder público de autorizar tal prática desportiva em via pública. O ciclismo é o esporte, dentre todos os outros, que mais promove fraturas, proporcionalmente ao número de acidentes. Já não bastam as motos, os ciclomotores, os patinetes e as bicicletas elétricas por calçadas, ciclovias e entre os carros? As ruas serão transformadas em velódromo à noite, colocando em risco a vida e a integridade física das pessoas? Na ausência de autódromo na cidade, igualmente serão permitidos os treinos de Fórmula 1 pelas ruas do Rio de Janeiro? Onde estão os legados dos grandes eventos que consumiram centenas de bilhões em recursos do erário para alegria dos cartolas que não nos deixaram ao menos um velódromo?

Dispõe a lei que quem de qualquer forma concorre para um crime incide nas penas a ele cominadas. A responsabilidade civil e a administrativa são regidas pelo mesmo princípio. E mais: A dimensão ética que há de permear as relações sociais e as relações dos cidadãos com o poder público não permite a isenção da responsabilidade das autoridades que contribuíram para o desfecho trágico. Além da responsabilidade civil da Administração pública também estamos diante da responsabilidade dos seus agentes.

É absurdo que uma cidade como o Rio de Janeiro não tenha um velódromo onde os ciclistas profissionais possam treinar. É impensável que desportistas profissionais usem as vias públicas em seus treinos colocando em risco os cidadãos. A cidade do Rio de Janeiro foi cenário de vários eventos que prometiam legados. Além da Copa do Mundo de Futebol de 2014, tivemos os Jogos Panamericanos de 2007, os Jogos Mundiais Militares de 2011 e as Olimpiadas de 2016. Onde está o velódromo que poderia ter poupado a vida de um pai de uma menina de dois anos? Não há via nas quais possam ocorrer treinamentos desportivos sem colocar em risco a vida dos cidadãos cariocas e fluminenses? Cabe ao poder público e aos seus agentes a resposta, a responsabilidade e tomada de providências.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 23/08/2025. Versão digital disponível no link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/08/7116016-joao-batista-damasceno-ciclismo-morte-e-legado-dos-grandes-eventos.html