sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

O transporte de trabalhadores e de animais

Um trem do ramal Guapimirim descarrilou, na tarde desta quinta-feira (20), no bairro de Parque Estrela, em Magé. Segundo a empresa concessionária do serviço ferroviário de transporte de passageiros, Supervia, o incidente foi causado pela alta temperatura registrada na via férrea, que chegou a 71°C, dilatando os trilhos. Em nota a Supervia informou que “não houve feridos no descarrilamento ocorrido por volta das 14h40 desta terça-feira (20/02) com um trem do ramal Guapimirim, que fazia o trajeto Saracuruna x Guapimirim, nas proximidades da estação Parque Estrela. A ocorrência foi causada pela dilatação dos trilhos devido à alta temperatura registrada na via férrea, que chegou a 71°C, provocando a flambagem dos trilhos. Todos os passageiros que estavam a bordo foram retirados com segurança. Equipes da SuperVia estão no local para realizar os reparos necessários e normalizar a circulação."

Em Magé foi instalada a primeira ferrovia do Brasil. Construída pelo Barão de Mauá partia da Praia da Guia de Pacobaíba (hoje Praia de Mauá), com destino a Petrópolis. Foi inaugurada em 30 de abril de 1854. Tal trecho ferroviário é marco da história ferroviária do Brasil e era um meio de transporte intermodal entre o Paço Imperial da Praça XV e os aposentos petropolitanos de D. Pedro II. Saía-se da Praça XV de barco, desembarcava-se na estação de Mauá onde se entrava no trem e terminava-se a viagem no alto da Serra de Petrópolis no lombo de burro.

Fui Juiz de Direito em Magé do início de 1995 ao ano de 1997, inclusive. Presidi as eleições municipais para prefeito de 1996 daquela cidade. Apesar do pouco tempo que lá trabalhei minha memória registra uma eternidade. Além dos assassinatos de políticos, exercício do mando local como nunca vira em outro lugar e dos quais somente tinha referência tão forte na literatura especializada, desorganização dos serviços públicos e patrimonialismo expresso pela confusão entre o público e o privado, a mim impressionava a qualidade dos serviços de transporte ofertados aos trabalhadores em seus deslocamentos para o ganho do pão de cada dia.

O serviço, naquele tempo, não era prestado pela SuperVia. No Rio de Janeiro o transporte ferroviário de passageiros já foi prestado com diferentes nomes. Desde a inauguração da Estrada de Ferro Barão de Mauá, em 1854, tivemos a Estrada de Ferro D. Pedro II, homenagem ao Imperador, a Estrada de Ferro Central do Brasil, nome dado ante a Proclamação da República, a RFFSA (Rede Ferroviária Federal S/A), a CBTU (Companhia Brasileira de Trens Urbanos) e Flumitrens (Companhia Fluminense de Trens Urbanos).

Atualmente, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, o serviço é prestado pela empresa que administra o Ramal de Guapimirim, SuperVia. Num daqueles anos em que fui juiz em Magé, numa audiência de um caso envolvendo acidente ferroviário, diante das fotografias dos trens transitando com portas abertas, excesso de passageiros, gente pendurada por todos os lados, inclusive do lado de fora da janela, e até no teto da composição, cometi a imprudência de dizer ao advogado da empresa que as fotos constantes dos autos mais pareciam dos trens da Índia. Ele demonstrando sua indignação com a indiscrição do juiz, retrucou: 

- Não sei. Nunca estive na Índia.

A desativação das linhas férreas no Governo JK para estimular o transporte por veículos automotores e a expansão das indústrias de automóveis e caminhões, aliada à urbanização do país, transformou o transporte de passageiros numa barafunda. Naquele período de industrialização a população brasileira que era majoritariamente rural transformou-se em majoritariamente urbana. A inversão sem planejamento e sem a criação de condições para acolher dignamente todos os que migraram dos campos para as cidades propiciou o caos urbano no qual estamos mergulhados: precariedade dos transportes, loteamentos irregulares e sem instalação de serviços públicos adequados, ocupação desordenada do solo urbano com favelização das cidades, além de outras mazelas que se ampliam.

O que aconteceu no caminho de ferro do ramal de Guapimirim não é novidade.

A imagem de estradas de ferro contorcidas após incêndios é exemplo clássico dos livros didáticos de física para demonstrar aos alunos que os corpos expandem com o calor e que contraem com o frio. As estradas de ferro dos trens de alta velocidade na China não se sujeitam a tais acidentes, pois a moderna tecnologia permite que os trilhos expandam para os lados, sem aumentarem suas extensões. Os trilhos engordam, mas não crescem.

A falta de investimento em tudo o que beneficia os componentes do mundo do trabalho é a causa de tais desastres. Felizmente desta vez foi comunicado que não houve mortos. Ao longo de mais de 30 anos como magistrado na justiça fluminense já julguei milhares de causas envolvendo acidentes no transporte rodoviário e ferroviário de pessoas. Julguei poucas causas envolvendo transporte de carga viva, valores ou mercadorias. Numa destas, o caso versava sobre a falta de cuidado no transporte de uns cavalos de raça. Um deles morreu e a imputação foi de que a transportadora não teve o cuidado de parar o caminhão de duas em duas horas, alimentar e hidratar os animais e esperar que repousassem para evitar o estresse da viagem. O fato ficou comprovado e condenei a transportadora. E nunca esqueci que os cuidados para transporte de mercadorias, valores e carga viva são muito maiores que aqueles demandados para transporte de gente. Afinal, quem anda em transporte público é pobre e a estes está reservado tão somente o reino dos céus. O gozo no reino da terra é para outros.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 22/02/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/02/7008833-joao-batista-damasceno-o-transporte-de-trabalhadores-e-de-animais.html


sábado, 8 de fevereiro de 2025

O preço dos alimentos e o neoliberalismo

 


A economia brasileira tem se fundado na exportação de commodities, ou seja, matéria-prima produzida em larga escala, negociada mundialmente, em estado bruto ou pouco industrializada e estocável em grande quantidade. São matérias-primas básicas, não processadas industrialmente, servindo para a produção de produtos mais complexos e de maior valor agregado. O que agrega valor à matéria prima é o trabalho humano. Se exportamos matéria prima, possibilitamos a criação de empregos nos países destinatários e deixamos de criar em nosso país.

Ao longo de sua história a economia brasileira esteve voltada para suprir as potências mundiais de matérias primas. Nosso gentílico, qualidade pela qual somos conhecidos, decorre da atividade dos exploradores de pau brasil que o levavam para a Holanda, onde era triturado para produzir tinta. Brasileiro é a profissão de quem extraía, transportava ou vendia pau brasil. Deveríamos ser brasilienses ou brasilianos. O sufixo eiro designa profissão e não local de nascimento: carpinteiro, pedreiro, açougueiro, verdureiro, cozinheiro etc. Fomos designados pela atividade econômica originária e não pelo local no qual nascemos.

Depois do pau brasil veio o ciclo da cana, produzindo-se açúcar para adoçar a vida dos europeus, em seguida a descoberta do ouro nas minas do interior do Brasil deu origem aos mineiros, e depois veio o ciclo do café. Hoje exportamos soja, café em grão, carne bovina e minério de ferro em estado bruto. A exportação de commodities não favorece o desenvolvimento.

Getúlio Vargas buscou a industrialização do Brasil criando a estrutura básica para o desenvolvimento autônomo, tentando retirá-lo da periferia do sistema internacional, porque dependente dos países centrais do capitalismo estaremos consagrados à subordinação. Vargas criou a base industrial: a Companhia Siderúrgica Nacional, a Petrobrás e deu o pontapé inicial para a criação da Eletrobrás instalada em 1962 pelo Presidente João Goulart. Mas adveio o Golpe Empresarial-militar de 1964 e o Brasil tomou novo rumo.

A redemocratização do Brasil e a Constituição de 1988 deram esperanças de retomada de rumos. Mas a classe dominante brasileira, aliada ao capital internacional, e os lacaios da burocracia estatal e da classe política fisiológica desnaturaram a Constituição Cidadã e pouco resta do seu texto original. Da sua edição em 05/10/1988 até 20/12/2024 foram 135 emendas constitucionais, algumas de duvidosa constitucionalidade.

Tratando dos fundamentos da República, seus fundamentos e princípios para a regência das relações internacionais previa a Constituição: a soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho; o pluralismo político; a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza, da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais; a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; independência nacional; a prevalência dos direitos humanos; a função social da propriedade; a defesa do consumidor; a defesa do meio ambiente; a busca do pleno emprego, além da erradicação do analfabetismo; a universalização do atendimento escolar; a melhoria da qualidade do ensino; a formação para o trabalho e a promoção humanística, científica e tecnológica do País.

O país democrático pensado por Ulisses Guimarães está em seu discurso de promulgação da Constituição de 1988 quando disse que "Traidor da Constituição é traidor da pátria. (...) Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. (...) O Estado prendeu e exilou. A sociedade, com Teotônio Vilela, pela anistia, libertou e repatriou. A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram.”

Os rumos tomados pelo Brasil são diferentes dos pretendidos pelos Constituintes e declarados no discurso de Ulysses Guimarães. As emendas constitucionais são aprovadas sem consideração ao que previa o poder constituinte originário. A Constituição diz que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” Quando o povo o exerce diretamente tal vontade se sobrepõe à vontade dos seus representantes. O povo brasileiro decidiu, em plebiscito, entre presidencialismo e parlamentarismo. E venceu o presidencialismo. Mas navega a todo o vapor uma emenda constitucional para instituir o semipresidencialismo no Brasil.

O objetivo de erradicar a miséria e a fome foi esquecido, salvo por políticas assistenciais. Os estoques reguladores que o Estado criava para ofertar produtos e baixar o preço quando por algum motivo os preços se elevassem, foram extintos. Rege o preço dos alimentos a neoliberal lei do mercado onde a redução da oferta, por qualquer motivo, força a alta dos preços ante a manutenção da procura. Afinal, comer é uma necessidade biológica. E não é de hoje. Sob a gerência do ministro neoliberal Paulo Guedes o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro extinguiu os estoques públicos e em 2022, último ano de seu governo, os alimentos aumentaram 11,64%, mais que o dobro da inflação oficial que foi de 5,79%. Mas não adianta praguejar o malfeito. É preciso fazer diferente, sob pena de perder-se a confiabilidade e tornar o país propenso à crença em boatos e fake News.

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 08/02/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/02/6999838-joao-batista-damasceno-o-preco-dos-alimentos-e-o-neoliberalismo.html

domingo, 26 de janeiro de 2025

PATRIOTAS, ENTREGUISTAS E NACIONALISTAS

Napoleão Bonaparte perguntou a um soldado quantas patas teria um cavalo se o rabo fosse considerado uma pata. A resposta foi que teria cinco patas. Napoleão o corrigiu dizendo que mesmo considerando o rabo do cavalo como uma pata, ele continuaria com quatro patas. Pouco importam as considerações pessoais e juízos de valor afastados da realidade. Esta é objetiva e se nos impõe, embora também sejamos agentes da história. Estamos subordinados às condições que nos rodeiam e condicionados ao modo de vida de nosso tempo, mas também fazemos a história. Para sermos agentes da história havemos de conhecer a realidade a ser transformada, a começar pelos conceitos do que afirmamos. As palavras, por diversas, expressam conceitos distintos. E neste momento em que os patrioteiros discursam e rezam para pneus ou extraterrestres, precisamos distinguir os nacionalistas dos patriotas.

Nação é um conjunto de pessoas vinculadas por valores comuns. Os membros de uma nação não precisam ocupar um território comum, se vinculados pelos valores que os caracterizam. A nação é composta por indivíduos de carne e osso que ao nascer adquirem o status de pessoas e de cidadãos. Diversamente, o conceito de pátria não está relacionado com as pessoas, mas com o vínculo de cada qual ao território onde nasceu ou adotou. Pátria é um termo que indica a terra natal ou adotiva de uma pessoa, que se sente vinculada a um território. Na antiguidade, ante a ausência de sobrenomes, as pessoas eram conhecidas em suas aldeias ou cidades pela sua filiação. Dejan Petkovi, jogador Sérvio que se notabilizou como um dos maiores ídolos da história do Flamengo, tem seu nome relacionado ao seu pai. Petkovi significa, em sua língua, “filho do Pedro”.

Fora da cidade ou aldeia, a pessoa era designada pelo local de seu nascimento. São Paulo, antes de sua conversão, era Saulo de Tarso, cidade romana localizada, hoje, na Grécia. Após a conversão tornou-se Paulo de Tarso, indicando sua origem ou sua pátria.

O primeiro registro histórico da palavra "pátria" está relacionado com o conceito de país, do italiano “paese”, originária da palavra “pagus” que significava aldeia. Esta é a origem comum de outras palavras da língua portuguesa, dentre as quais pagão e paisagem. Pátria é o local onde se vive; é o ambiente ou espaço geográfico onde habitamos e com o qual nos afeiçoamos.

A Canção do Exército, cuja letra é do Tenente-Coronel Alberto Augusto Martins, exalta a pátria, embora desconsidere o povo e seu dever de servi-lo e diz o seguinte: “Nós somos da Pátria a guarda, fiéis soldados, por ela amados. Nas cores de nossa farda rebrilha a glória, fulge a vitória. Em nosso valor se encerra toda a esperança que um povo alcança. Quando altiva for a terra, rebrilha a glória, fulge a vitória. A paz queremos com fervor, a guerra só nos causa dor. Porém, se a Pátria amada for um dia ultrajada lutaremos sem temor. Como é sublime saber amar, com a alma adorar a terra onde se nasce! Amor febril pelo Brasil, no coração nosso que passe.” Amor febril é doença e a exaltação de valores patrióticos leva a comunidade da caserna a defender interesses que não são seus e nem do povo. As instituições criadas pela nação deveriam ser dela servidoras e não tutoras ou guardiãs.

Não falta quem se afirme patriota com condutas antinacionalistas. Nos anos 50 do século XX a defesa dos interesses nacionais ou do povo brasileiro era incompatível com subserviências a interesses estrangeiros. Uma palavra designava aqueles que se associavam a governos ou a interesses estrangeiros: entreguistas. Era incompatível com o conceito de brasilidade e nacionalismo a continência a bandeira dos EUA. Otávio Mangabeira jamais e desvencilhou da imagem do que protagonizou. Em 1946, após o fim da Segunda Guerra Mundial e do Estado Novo no Brasil, num gesto carinhoso muito comum aos baianos da sua época, o então deputado federal pela Bahia, beijou a mão do general norte-americano Dwight Eisenhower, que viria a ser presidente dos EUA posteriormente. Seu partido, expressão da oposição liberal ao Estado Novo, somente chegou ao poder pelo golpe empresarial-militar de 1964.

Havia e há um outro Brasil que não o daqueles que, se autodenominando patriotas, se subordinam a interesses outros que não os do povo que compõe a nação brasileira. Podem ser patriotas ou patrioteiros, mas não são nacionalistas.

Mas há um Brasil que nos orgulha e com o qual precisamos diariamente reafirmar nossos compromissos, que é o composto por seu povo e não pela sua classe dominante. Esse Brasil que vale a pena é o Brasil dos 85 alunos da Escola Estadual Anísio Teixeira, localizada em Marabá, e dos 79 alunos da Escola Albanízia de Oliveira Lima, em Belém, ambas no estado do Pará, que obtiveram notas superiores a 900 pontos na Redação do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), além dos outros 150 alunos que tiraram notas acima de 800 pontos. O Brasil que vale a pena é o de Fernanda Montenegro e de Fernanda Torres, ganhadora do Globo de Ouro e indicada para o Oscar por seu protagonismo no filme “Ainda Estou Aqui” que retrata a história da família de Rubens Paiva, deputado nacionalista torturado, morto nas dependências do Exército e cujo corpo jamais foi entregue à família para sepultamento.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 25/01/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/01/6991513-joao-batista-damasceno-patriotas-entreguistas-e-nacionalistas.html

 

BRASIL, O RETORNO AO FAZENDÃO

 

Campos Sales, quando ministro da justiça do primeiro governo republicano, instituiu o Ministério Público brasileiro. Tratou-se da institucionalização de um corpo permanente de funcionários visando à perseguição dos inimigos políticos. Sucedendo os dois primeiros presidentes militares, Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, subiu à presidência Prudente de Morais, representando a ascensão da oligarquia cafeicultora ao poder nacional.

A entrega do poder às oligarquias rurais na Primeira República foi tão acentuada que o próprio irmão do presidente Prudente de Morais, Manoel de Moraes Barros, dizia o seguinte: “O Biriba [apelido do presidente], manda lá no Brasil. Aqui em Piracicaba quem manda é nós”. Prudente de Morais foi sucedido na presidência por Campos Sales, que governou de 1898 a 1902.

O Brasil era um fazendão, governado pelas oligarquias regionais, com proteção do governo federal. A base da economia nacional era a exportação de café. Campos Sales formatou o Pacto Coronelista, compromisso entre o poder privado decadente e o poder público fortalecido. Era das verbas públicas, não necessariamente por meio de emendas parlamentares, e da garantia do preço mínimo do café que se enriqueciam as oligarquias. As oligarquias eram situacionistas e um coronel chegou a se manifestar, tal como parcela do parlamento atualmente: “O governo mudou. Mas eu não mudo. Continuo governista”.

Por ocasião da votação do projeto anual de lei orçamentária, os parlamentares faziam todo tipo de emenda, constrangendo o governo com matérias e interesses que não se referiam à receita ou despesa pública. Somente com a Revolução de 30 adotamos a exclusividade da lei orçamentária. A Constituição de 1988 diz que a lei orçamentária não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa. Isto não impede as emendas parlamentares destinando verbas a prefeituras capazes de enriquecer os políticos dos grotões.

A falta de um projeto nacional de longo prazo está fazendo o Brasil retroceder a padrões antigos. O Brasil está se desindustrializando e não está se preparando para o futuro. Perdemos a primeira Revolução Industrial, com o surgimento das máquinas a vapor, a segunda, no século XIX, com o surgimento da energia elétrica e estamos perdendo a presente que é a tecnológica. Tal como na Primeira República quando exportávamos café, voltaremos a ser um fazendão exportador de soja, proteína animal e minério em estado bruto.

O boom das commodities (matéria prima sem valor agregado) tem levado governos, até os chamados progressistas, a intensificarem a exploração de bens naturais com vistas à exportação ao invés de investirem em educação e ciência e tecnologia para nos prepararmos para o futuro. Exportamos produtos primários e importamos seus derivados industrializados. Embora o Brasil tenha o maior rebanho bovino do mundo, destinado à exportação, a produção de leite é deficitária e somos importadores. Já não consumimos leite ou seus derivados, mas “bebidas lácteas”, artificialmente saborizados, compostos químicos muitas das vezes nocivos à saúde.

A intensificação da espoliação da natureza demandada por esse modo de exploração do solo e dos recursos hídricos não pode ser feita em nome do desenvolvimento. Estamos regredindo a patamares anteriores à Revolução de 30. A criação bovina utiliza pouca mão de obra e a mecanização da monocultura agrícola gera riqueza para poucos. O aumento do preço dos produtos primários (commodities), que justifica tal política econômica, não favorece o desenvolvimento nacional, nem o crescimento econômico. Ao contrário, gera concentração de renda nas mãos dos poucos exploradores e exportadores, tal como na Primeira República.

Campos Sales promoveu o maior programa de privatização que este país já conheceu até o advento dos governos pós-constituinte de 1988. A Revolta da Vacina, ocorrida em 1904 no governo de Rodrigues Alves, não decorreu apenas da compulsoriedade da vacina. Mas de outros descontentamentos advindos do governo anterior, decorrente de demolição de casas para abertura de avenidas e construção de prédios modernos, no chamado “bota-abaixo”, expulsando a população pobre para as encostas dos morros, além das tensões pelo privilégio dado ao capital investidor em detrimento dos brasileiros.

Governos que repetem os erros do passado não podem ser chamados de progressistas. Se governam defendendo o lucro extraordinário de banqueiros, para além de possíveis diferenças com a direita, se igualam nos resultados, apesar da diversidade de discursos. E não adianta a apresentação de números que demonstrem crescimento econômico se não há como negar as desigualdades econômicas e sociais, decorrentes do modelo exportador de matérias-primas em grande escala.

Igualmente não adianta negar ou encobrir as implicações, impactos, consequências e danos do modelo extrativista exportador. Neste momento, de modo deliberado, multiplicam-se os grandes empreendimentos mineradores ao mesmo tempo que ampliam a fronteira agrária, por meio de monoculturas. Tal como na Primeira República, a política econômica atende aos banqueiros e aos exploradores e exportadores de produtos primários, sem qualquer valor agregado, relegando os brasileiros ao papel de párias no cenário internacional.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 11/01/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/01/6982975-joao-batista-damasceno-brasil-o-retorno-ao-fazendao.html

Casos isolados, mas recorrentes

 

A repercussão do caso do homem jogado de uma ponte por um policial militar em São Paulo aguçou a discussão sobre a violência policial em todo o país. Diversos policiais militares manifestaram preocupação em não serem vistos pela sociedade como matadores fardados, notadamente por não fazerem parte dos grupos premiados e condecorados por similares atuações. No Rio de Janeiro, tivemos não apenas condecorações por “bravura”, mas premiação aos policiais matadores. Foi a “Gratificação Faroeste”. Tratava-se de prêmio em dinheiro aos policiais envolvidos em confronto do qual resultasse morte ou ferimento de pessoas consideradas indesejáveis. Foi implantada no governo Marcello Alencar, eleito em 1996, e tinha como secretário de segurança o general Nilton Cerqueira e Chefe da Polícia Civil o delegado Hélio Luz. O general que fora o Comandante da Polícia Militar do Rio de Janeiro quando da Bomba do Riocentro é, também, apontado como o matador de Carlos Lamarca.

O poder nem sempre fala. Por vezes emite sinais. Diante de denúncias de abusos e mortes cometidas por policiais militares na “Operação Escudo”, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, respondeu com ironia às perguntas formalizadas pelo Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) dizendo: “Nossa intenção é proteger a sociedade. Nós estamos fazendo o que é correto, com muita determinação e profissionalismo (...). Sinceramente, eu tenho muita tranquilidade com relação ao que está sendo feito. E aí o pessoal pode ir na (sic) ONU, na Liga da Justiça, no raio que o parta que eu não estou nem aí”. Assim como a “Gratificação Faroeste” incentivou o aumento da violência policial, as palavras do governador de São Paulo serviram de incentivo aos matadores.

O “Tô nem aí!” do governador paulista para as mortes que se sucediam foi visto por parte da tropa como autorização para as execuções, e assim foi feito. Os casos considerados isolados de violência policial, mas recorrentes, chamam a atenção para outro aspecto da questão. Nem todos os policiais concordam com a política de segurança que coloca suas vidas e integridade em risco. Mesmo as corporações militares, como nenhuma outra com corporativismo acentuado, os policiais não são um bloco monolítico, constituído de uma única peça, capazes de apoiar unissonamente e serem usados como marionetes por políticos que tiram proveito do anseio de sangue de bases eleitorais. Apesar da política de extermínio que se difunde pelo país e do gozo com que alguns policiais a executam, parte da tropa não concorda em ser transformada em executores de pretos e pretos, nem na instrumentalização da corporação para fins espúrios. Dentre os policiais que não concordam em fazer o ‘serviço sujo’ estão os integrantes do Movimento Policiais Antifascismo, que reúne policiais militares, policiais civis e dos Corpos de Bombeiro de todo o país. Além desses policiais integrantes do movimento, muitos outros querem ser tratados como trabalhadores, com os direitos e deveres de todos os agentes públicos, sem que sejam compelidos à atuação contra a sociedade brasileira, notadamente pretos e pobres das favelas e periferias das grandes cidades.

A sinalização dada pelo governador paulista de que não estava nem aí para a truculência policial, é vista por muitas autoridades militares como difusão da certeza de impunidade pelos crimes cometidos, capaz de minar a própria autoridade dos comandantes que não concordam com a transformação de sua instituição em grupo de extermínio. Alguns policiais paulistas manifestaram contrariedade ao desmantelamento do programa de câmeras corporais, alegando que tais câmaras serviam como prova da regularidade de suas atuações e que somente aqueles que atuam à margem da legalidade desejam que suas atividades não sejam registradas.

Estados como o de São Paulo e do Rio de Janeiro gastam mais com segurança do que com educação e saúde juntos. As constantes descontinuidades das políticas de segurança pública geram incertezas para os próprios agentes das forças policiais. Enquanto alguns tentam sempre se adaptar às novas diretrizes, outros sequer se importam com elas, consideradas transitórias, e se mantêm nas velhas diretrizes do desrespeito à vida e à dignidade da pessoa humana.

Muitos policiais estão apreensivos com a elevação do índice de violência do Estado, cuja execução lhes compete, colocando-os contra a própria sociedade. Não são poucos os casos de afastamento de atividade por problemas psiquiátricos, assim como o suicídio de policiais. Parcela dos policiais tem adoecido na medida em que são vistos pela sociedade, pelos vizinhos e até por familiares como matadores fardados. Há uma demanda para que sejam vistos como trabalhadores exercentes de suas atividades com profissionalismo, a fim de que ao final de cada jornada possam voltar para suas casas vivos, sem risco de vida e com o reconhecimento pelos serviços que tenham prestado à sociedade. Mas isto só será possível se os que ordenam a política de confronto forem responsabilizados. E o caminho não é a ONU. É o Tribunal Penal Internacional que julga crimes contra a humanidade, que o governador paulista não citou. Diante do TPI, o governador paulista não diria “Tô nem aí”.


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 28/12/2024, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/12/6972737-joao-batista-damasceno-

casos-isolados-mas-recorrentes.html