domingo, 9 de março de 2025

Os pobres e o cumprimento dos alvarás de soltura

Quando será posto em liberdade um preso após ser reconhecida a ilegalidade de sua prisão e decretada judicialmente sua soltura? Eis o dilema das famílias! Familiares, por vezes, aguardam dias na porta de uma instalação prisional a soltura de quem sai sem meios até para custear o transporte de volta para casa. Dispõe a Constituição, como direito fundamental, que é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral; que às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação; que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa; que são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos; que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; que o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal; que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente; que a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada; que o preso será informado de seus direitos, dentre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado, bem como que o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial. Além destes direitos há outro importante: “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória”. Para assegurar tais direitos a Constituição impõe aos magistrados: “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária”. Trata-se de uma garantia da cidadania e um dever de os magistrados relaxar a prisão ilegal.

No Estado do Rio de Janeiro, a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária/SEAP, tem até “Guardião”, um aparelho para intercepção de conversações telefônicas. Mas negligencia meios para imediato cumprimento das decisões judiciais. Vivemos tempos estranhos. Ao longo das últimas semanas li e assisti a manifestações de autoridades e agentes do sistema de segurança propondo a desobediência às determinações judiciais, notadamente das decisões contidas na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental/ADPF 635, onde o Supremo Tribunal Federal (STF) analisará a adoção de um plano para redução de mortes nas operações policiais. Na ação, o Partido Socialista Brasileiro (PSB) afirma que a política de segurança pública em nosso Estado, “em vez de buscar prevenir mortes e conflitos armados, incentiva a letalidade da atuação dos órgãos policiais”.

O aparato repressivo é profundamente eficiente. O orçamento da área de segurança é, por vezes, superior ao orçamento das áreas de saúde e educação juntas. Ainda que tais despesas obedecessem aos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade e moralidade, falta publicidade (transparência) e eficiência. Administrar é gerir a escassez. Portanto, a opção pela despesa e a execução orçamentária precisa levar em consideração o benefício a se obter com o gasto correspondente.

O sistema é eficiente para criminalizar, mas não para desfazer ou reparar injustiças. Quando estudante ouvia uma frase latina que dizia: “in dubio pro reo”, ou seja, na dúvida, decide-se a favor do réu. Tal princípio haveria de orientar a área tributária (em dúvida pró-contribuinte) e a própria relação cidadão-Estado (em dúvida pró-cidadão). Afinal, numa república democrática todo o poder emana do povo. O Estado é constituído pelos cidadãos. Diversamente, nos estados autocráticos, próprios das ditaduras ou como já foram os Estados justificados pela Teoria do Poder Divino dos Reis, a cidadania decorria da benesse do Estado aos súditos.

As relações sociais são permeadas por conflitos de interesses. Inexiste direito ou liberdade na natureza, onde os conflitos são resolvidos pela lei do mais forte. As leis e os princípios decorrem da cultura e da civilidade. Portanto, a existência de conflito entre quem decide e quem deveria dar cumprimento à decisão é imprópria. Quando ocorre entre poderes do Estado é expressão de desarmonia ou violação da independência entre eles. Quando ocorre entre quem tem o dever de decidir e quem deveria cumprir a decisão é desobediência, motim, insubordinação, rebelião, sublevação, insurgência ou outra qualquer anomalia institucional demonstrativa da incivilidade. Quando o juiz decide pela liberdade de um preso não pode a SEAP, seu “policial classificador”, nem o Oficial de Justiça, postergar por dias o cumprimento da ordem judicial. Nós os juízes, eu inclusive, decidimos, mas nem sempre temos como acompanhar o efetivo cumprimento de nossas decisões.

Nem sempre o que decidimos é imediatamente cumprido. Estando no 32º ano de efetivo serviço jurisdicional na magistratura fluminense, já o vivenciei por milhares de vezes. Em se tratando de polícia, seja ela civil, militar ou penal (penitenciária), seu controle externo compete ao Ministério Público. Já vi estampado em jornais o pronto cumprimento de mandados de prisão e de busca e apreensão por mim expedidos. Igualmente, pela mídia, já tomei ciência de imediato cumprimento de alvarás de soltura, de presos com elevado poder aquisitivo. Falta-me ciência, pela mídia, do tempo transcorrido entre a decisão de soltura de um pobre e sua efetivação. Passarei a exercer este controle. Não adianta ordenar. É preciso aferir se o que foi ordenado foi cumprido.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 08/02/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/03/7016131-joao-batista-damasceno-os-pobres-e-o-cumprimento-dos-alvaras-de-soltura.html