sábado, 24 de agosto de 2024

Livreiros de rua, cultura do livro e burocracia estatal


Nascemos indivíduos e nos tornamos cidadãos no processo de socialização, adquirindo a cultura do meio no qual vivemos. Sociedade é um grupo de pessoas que convive com participação econômico-político-social por meio dos valores e sentimentos comuns, denominados cultura. A compreensão da importância dos valores que nos unem é um diferencial em nossa existência. Mas isto nem sempre é percebido por parcela da burocracia do Estado e por aqueles a quem se ordenam a execução do poder de polícia.

Na crônica passada sugeri o nome do cantor Roberto Carlos para a Academia Brasileira de Letras (ABL). Terminei dizendo que “A ABL contribui para a difusão da língua portuguesa na sua forma escrita. Roberto Carlos também o faz. Muitos leem suas letras visando a decorar para cantar. Mais que a ABL e Roberto Carlos somente faz mais pela língua escrita o Livreiro Olivar, o Vavá, que vende livros a R$ 2,00 na entrada do Metrô da Carioca durante a semana e na Praça XV aos sábados”. Para que fui elogiar? Durante a semana fiscais da prefeitura apareceram na barraca do Olivar e ele estava ausente. Tinha atendido ao telefonema de um porteiro de um prédio que o chamara para buscar livros que um escritório jogara no lixo. Deixara uma pessoa tomando conta da banca. Ao voltar, foi informado de que os fiscais da prefeitura passarão de 3 a 5 vezes por dia na banca e que se o titular estiver ausente perderá o direito de mantê-la.

Um livreiro de rua não é um camelô que compra mercadoria fabricada na China ou vinda do Paraguai e que pode permanecer durante todo o dia no mesmo lugar à frente da mercadoria. Um livreiro de rua é um garimpeiro que visita apartamentos de quem esteja vendendo uma biblioteca ou vai a portaria de prédios, por chamada de porteiros, apanhar livros jogados fora. Por vezes raridades são desprezadas por familiares que não comungavam com o sucedido o gosto por livro

Olivar atende a centenas de porteiros no Centro, que lhe ajudam na preservação de raridades postas no lixo. Há 40 anos desempenha tal atividade de relevância cultural para a cidade. Não só o Olivar. Do Leblon a Campo Grande temos mais de 200 livreiros de rua, que vendem milhares de livros por mês a preço acessível a qualquer pessoa. Na banca do Olivar já dividi garimpagem com morador de rua interessado na aquisição de um livro, com ex-governadores de estados diferentes, com embaixadores e não raro com alguns colegas desembargadores do tribunal que componho. Uma banca de livro de rua é um espaço de convivência social. Morador da Zona Sul - e frequentador de alguns espaços privilegiados -, conheço toda a cidade do Rio de Janeiro e a Baixada Fluminense - do Km 32, em Nova Iguaçu, a Magé -, locais onde atuei como juiz por 18 anos, com frequentes inspeções pessoais. Nenhum lugar é socialmente tão plural quanto uma banca de livro de rua.

Monteiro Lobato dizia que “um país se faz com pessoas e livros”. A difusão da cultura por meio da língua escrita tem sido a contribuição destes heróis do livro, sob chuva ou sol. A Bienal do Livro deste ano foi a maior de todos os anos e o stand da Estante Virtual estampou uma fotografia do Olivar e sua banca, como reconhecimento pelo relevante serviço que presta à cultura do livro. Na comemoração dos 450 anos da Cidade do Rio de Janeiro tanto a Globo quanto a Jovem Pan transmitiram imagens do Olivar e sua banca, como expressão do cenário da cidade.

Foi a partir de livros apanhados numa calçada e levados para que crianças pobres pudessem ler na varanda de sua casa, na Vila da Penha, que Evando dos Santos, o pedreiro que nunca frequentou escola e aprendeu a ler sozinho, montou a Biblioteca Comunitária Tobias Barreto, instalada num prédio projetado para ele por Oscar Niemeyer. Evando já virou personagem de romance publicado na Itália, tema de tese de doutorado e enredo de Escola de Samba no Rio de Janeiro. Assim como Evando salva do lixo preciosidades inexistentes até na Biblioteca Nacional, os livreiros de rua prestam relevante serviço à cultura, preservando obras que de outro modo teriam como destino os lixões ou aterros sanitários.

Há alguns anos o Olivar deixou na Barraca 37, do Gaúcho, na Praia do Leme uns livros para doação aos banhistas. A SEOP encrencou pois o alvará não incluía a doação de livro. Daquela proibição resultou a Universidade Livre do Leme e o projeto Filosofia na Praia, tendo à frente o embaixador e ex-ministro da Cultura Jerônimo Moscardo. Aos sábados, de 11h00 ao meio-dia, intelectuais, estudantes e moradores se encontram para abordagem de temas específicos no quiosque da Maria Alice, em frente ao número 974 da Av. Atlântica, e doam livros a quem interessar. Graças ao Olivar, já foram doados mais de 50 mil livros. Em se tratando de livro, a SEOP e outros órgãos com poder de polícia do município deveriam ouvir antes a Secretaria de Cultura ou o Prefeito, sensível à questão cultural na Cidade do Rio de Janeiro.

Impedir que um livreiro de rua saia de sua banca para avaliar bibliotecas disponibilizadas por familiares de falecidos, ou recolher livros em portarias quando refugados por seus proprietários, seria um desserviço à cultura do livro e incentivo ao descarte de obras raras, muitas das quais já adquiri em tais mãos.

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 25/08/2024, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/08/6905206-joao-batista-damasceno-livreiros-de-rua-cultura-do-livro-e-burocracia-estatal.html


sábado, 10 de agosto de 2024

Roberto Carlos na Academia Brasileira de Letras

 

A Academia Brasileira de Letras (ABL) é uma instituição incompreendida. Há os que a louvam exageradamente e até os que questionam a necessidade de sua existência. Em se tratando de uma instituição privada não se pode negar-lhe o direito de existir e de recrutar seus membros pelo critério que lhe convier. O mais frequente questionamento é sobre a derrota de Mário Quintana. Mas o poeta somente disputou uma vez e saiu dizendo: “Todos esses que aí estão atravancando meu caminho, eles passarão... Eu passarinho!”. E passarinhando foi-se!

Carlos Drummond de Andrade jamais postulou. Mesmo convidado e dispensado das visitas protocolares não aceitou. Monteiro Lobato candidatou-se quando jovem e não foi eleito. Mais tarde convidaram-no. Mas condicionou o aceite ao assento na cadeira n.º 37, ocupada por Getúlio Vargas. Para tanto, o presidente precisaria contribuir com a própria morte. Aconteceu o contrário. Monteiro Lobato morreu antes que Getúlio Vargas suicidasse num gesto heroico, prorrogando o golpe empresarial-militar por uma década.

Como em toda paróquia não faltam as fofocas. O imortal Humberto de Campos dedicou-se a ‘falar mal’ nos seus diários, a serem publicados vinte anos após sua morte. Mas cedo faleceu e quando publicado todos de quem havia falado ainda estavam vivos. Quando da morte do imortal Agripino Grieco, que também falava de todo mundo, o imortal Ivan Lins, ao invés de homenagear o morto, só faltou chutar o caixão. Processado foi defendido pelo posterior imortal Evandro Lins e Silva. Quando Bernardo Élis derrotou o presidente Juscelino Kubitscheck, o imortal Josué Montello difundiu fake News sobre o motivo da derrota. Mas quem leu “O Tronco” ou seus contos, sabe do valor literário do imortal goiano e sua importância para entender o regionalismo, o Brasil profundo e o poder dos coronéis em Goiás.

A imortal Nélida Piñon dizia que a ABL, que presidiu, não era uma academia de escritores. Mas da elite de cada área do conhecimento humano. A palavra elite é mal apropriada no uso cotidiano. Elite são os melhores de cada grupo. Não é sinônimo de classe dominante. Atletas brasileiros que nos trazem as medalhas das Olimpíadas são a elite de cada modalidade desportiva. Este é conceito de elite, sem consideração a classe social ou patrimônio material.

A ABL sempre foi pluralista. Dentre seus fundadores estava Coelho Neto, filho de um português com uma indígena, e um negro, o abolicionista José do Patrocínio, filho de um padre com uma adolescente escravizada originária de Gana. Os imortais Humberto de Campos e Carlos Heitor Cony e o literato Antonio Carlos Villaça dizem que teve até um filho do fundador e primeiro presidente, Machado de Assis. Em se tratando de uma miniatura do Brasil é crível a existência de nepotismo, mas a estória precisa ser confirmada.

De tudo já tivemos na ABL: gênero, raça, etnia, convicções políticas, estilos literários, médicos, magistrados, militares, compositores, cantores, artistas, presidentes da República etc. Mas nunca tivemos um capixaba. E não por falta de talento no Espírito Santo, pois o cronista Rubem Braga era de Cachoeiro do Itapemirim. A esperança é o cantor Roberto Carlos. Não sei se tem livro publicado. Mas isto não é problema. Não será o primeiro a colocar capa dura numas folhas impressas e chamar de livro. E para dar volume pode fazer como o imortal Lauro Müller, imprimindo em papel encorpado. Até ajudo a escrever. Para publicar, pediremos ao Zé Mário da Topbooks, que publicou o livro “Antônio Torres, uma Antologia”, com organização e estudo introdutório de Raul de Sá Barbosa. Ah! O Antônio Torres publicado pelo Zé Mário e que desancava com a ABL era o mineiro que nasceu no século XIX e não o baiano que atualmente tem assento na cadeira n.º 8.

Sou mineiro e não posso reclamar. Minas Gerais jamais deixou de ter assento na ABL. Hoje temos Ailton Krenak, Edmar Bacha, Eduardo Giannetti, Geraldo Carneiro, Ruy Castro e Zuenir Ventura. Nem vou falar dos falecidos imortais, dentre os quais Guimarães Rosa. Este somente não é unanimidade entre nós por causa da dissidência do Nelson Rodrigues, que de sua obra falava mal e ainda atribuía a terceiros o que escrevia.

A ABL, desde sua fundação em 1897, já atribuiu a imortalidade a duzentas e setenta pessoas, incluindo os quarenta atuais acadêmicos. Não há vaga. Algumas cadeiras têm maior rodízio. As cadeiras n.º 09 e 13 já foram assentadas por nove imortais. As cadeiras n.º 7 e 11 por dez. Pela cadeira n.º 4 apenas quatro assentaram. Mas o menor rodízio não significa garantia de longevidade. A cadeira n.º 6, já assentada por seis acadêmicos, atualmente pelo imortal Cícero Sandroni, foi ocupada pelo imortal Barbosa Lima Sobrinho por 63 anos, o mais longo mandato já registrado.

A ABL contribui para a difusão da língua portuguesa na sua forma escrita. Roberto Carlos também o faz. Muitos leem suas letras visando a decorar para cantar. Mais que a ABL e Roberto Carlos somente faz mais pela língua escrita o Livreiro Olivar, o Vavá, que vende livros a R$ 2,00 na entrada do Metrô da Carioca durante a semana e na Praça XV aos sábados. Roberto Carlos na ABL, já! Ou melhor, daqui a algum tempo quando surgir vaga! Além da moqueca e das praias de Guarapari queremos um capixaba como imortal.

 

Fonte: publicado originariamente no jornal O DIA, em 10/08/2024, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/08/6896644-joao-batista-damasceno-roberto-carlos-na-academia-brasileira-de-letras.html

  


sexta-feira, 2 de agosto de 2024

UMA REFLEXÃO SOBRE A VENEZUELA, Boaventura de Sousa Santos

 

"Mais tarde ou mais cedo o Brasil tem de decidir-se de que lado está no novo horizonte geopolítico e geoestratégico mundial em curso"

 

O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, participa de um evento perto de uma imagem do falecido presidente da Venezuela Hugo Chávez em Caracas, Venezuela, 4 de fevereiro de 2024.

O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, participa de um evento perto de uma imagem do falecido presidente da Venezuela Hugo Chávez em Caracas, Venezuela, 4 de fevereiro de 2024 (Foto: REUTERS/Leonardo Fernandez Viloria/File Phot).

Não sou, nem nunca fui, um chavista ferrenho. Hugo Chavez foi um benévolo meteorito político que abalou o sub-continente latino-americano e o mundo na primeira década do século XXI. Em 2013, logo após a morte de Hugo Chavez, escrevi um texto intitulado “Hugo Chavez: o legado e os desafios”. Identificava alguns sinais de autoritarismo e de burocratização e terminava o texto com a seguinte frase: “Sem ingerência externa, estou seguro de que a Venezuela saberia encontrar uma solução não violenta e democrática. Infelizmente, o que está no terreno é usar todos os meios para virar os pobres contra o chavismo, a base social da revolução bolivariana e os que mais beneficiaram com ela. E, concomitantemente com isso, provocar uma ruptura nas Forças Armadas e um consequente golpe militar que deponha Maduro. A política externa da Europa (se de tal se pode falar) podia ser uma força moderadora se, entretanto, não tivesse perdido a alma”. Tenho de reconhecer que o meu temor não se concretizou até hoje, embora não tenham faltado tentativas para que ele se concretizasse. Penso que o momento actual configura mais uma dessas tentativas. Daí a importância de reflectir sobre o clamor nos media ocidentais sobre a possibilidade de fraude nas recentes eleições na Venezuela e o consenso à direita e à esquerda sobre a necessidade de auditar os resultados. É grande a minha perplexidade e obriga-me a uma reflexão.

1. O sistema eleitoral venezuelano tem sido unanimemente considerado um dos mais seguros e protegidos contra a fraude. Exige quatro momentos de identificação: inscrição nos cadernos eleitorais, voto electrónico, extracção de voto de papel, impressão digital do votante. Os números têm de coincidir. Claro que nenhum sistema eleitoral é totalmente imune à fraude, mas quando comparamos com os sistemas eleitorais de outros países (nomeadamente o dos EUA ou o português), o sistema venezuelano é mais seguro. Porque é tão evidente para tanta gente que pode ter havido fraude?

2. A oposição vinha anunciando que só reconheceria os resultados se ganhasse as eleições. Neste domínio, estava a seguir uma prática que se vai generalizando entre as forças de extrema-direita que concorrem a eleições (casos de Trump em 2020, Bolsonaro em 2022, Milei em 2023). Isto devia exigir alguma precaução por parte das forças democráticas, não vá a sua insistência na auditoria servir de muleta a forças políticas que, supostamente em nome da democracia, a querem destruir.

3. Fora da Venezuela, as forças mais vociferantes na defesa da democracia venezuelana são forças políticas de extrema-direita que nos seus próprios países advogaram ou praticaram golpes de Estado e fraudes eleitorais. No Brasil, com a colaboração activa dos EUA, Jair Bolsonaro, e as forças político-militares que o apoiavam, foram os protagonistas da mais clamorosa fraude eleitoral da última década. Conseguiram inabilitar e meter na prisão durante mais de 500 dias o candidato que certamente ganharia as eleições, Lula da Silva; manipularam facilmente os media e os tribunais; e a eleição de 2018 foi dada como válida internacionalmente sem nenhuma reserva. Isto mostra que o clamor mediático-político sobre a possibilidade de fraude e a necessidade de verificação dos resultados não assenta, ao contrário do que parece, num entranhado amor à democracia, mas antes noutras razões, que aponto adiante.

4. A dualidade de critérios vai muito para além das forças de extrema-direita e do primitivismo das suas considerações. Os países europeus, que se orgulham de ser impecáveis democracias, foram quase unânimes em reconhecer como presidente legítimo da Venezuela um senhor que se tinha proclamado presidente numa praça de Caracas. Refiro-me a Juan Guaidó, em 23 de Janeiro de 2019. Como se explica que, neste caso, não tenha havido qualquer precaução em verificar os processos democráticos? É sobretudo chocante quando comparamos esta aparente negligência com o zelo de agora, a respeito de uma eleição que contou com mais de novecentos observadores vindos de quase cem países? Aliás, num aparte que aumenta a perplexidade, dá que pensar que só nalguns países seja tão crucialmente importante recorrer a observadores externos para credibilizar processos eleitorais. Se a possibilidade de fraude existe sempre, a exigência de observadores devia ser universal e tutelada pela ONU.

5. Não discuto as razões que levaram à inabilitação da Maria Corina Machado (é sabido que participou em várias tentativas de golpe contra o governo bolivariano e que chegou a pedir a intervenção militar estrangeira), mas não deixa de causar perplexidade o modo como foi escolhido o seu substituto, o ex-diplomata Edmundo Gonzalez Urrutia. Há algo de inquietantemente caricatural na oposição venezuelana. Primeiro, foi Juan Guaidó; agora foi um senhor que parecia ter saído de um lar de idosos para uma actividade tempo livre que, por acaso, era uma candidatura presidencial. Se refiro isto, é apenas porque as mãos de Edmundo Gonzalez podem estar eventualmente manchadas de sangue. Entre 1981 e 1983 Edmundo Gonzalez era o primeiro secretário da Embaixada da Venezuela em El Salvador, cujo embaixador era Leopoldo Castillo, conhecido como Matacuras (mata padres). Realizava-se nessa altura o Plano Condor de contra-insurgência impulsionado por Ronald Reagan que naquele país visava impedir o avanço das forças revolucionárias da Frente Farabundo Martí para la Liberación Nacional (FMLN). Este plano incluiu a execução da Operação Centauro que envolveu o exército e esquadrões da morte e visava assassinar revolucionários e, nomeadamente, os membros das comunidades religiosas congregadas à volta da teologia da libertação. Foram assassinadas 13194 pessoas, entre as quais Don Oscar Romero, hoje Santo da Igreja Católica, quatro freiras Maryknoll, e cinco padres. Segundo dados da CIA desclassificados em 2009, Leopoldo Castillo surge como corresponsável da coordenação e execução da Operação Centauro. Edmundo Gonzalez era o primeiro secretário da Embaixada da Venezuela. Os crimes cometidos são crimes de lesa humanidade e como tais imprescritíveis.

Porquê todo o clamor sobre a possível fraude eleitoral?

A resposta breve a esta questão é a seguinte: a Venezuela é o único país da América Latina onde dois recursos fundamentais não são controlados pelos EUA: as Forças Armadas e os recursos naturais (a maior reserva de petróleo, terras raras, ouro, ferro, etc.). Ao longo do século XX, os EUA intervieram repetidamente nas eleições da Venezuela com o objectivo de garantir o seu acesso aos recursos naturais. Sempre o fizeram com a ajuda de um número muito pequeno de famílias oligárquicas, algumas das quais controlam a riqueza do país desde o século XVI e dos tempos das encomiendas. Maria Corina Machado pertence a uma dessas famílias. O seu programa eleitoral é muito semelhante ao de Javier Milei e já se comprometeu em entrevista que, se fosse presidente, mudaria a Embaixada da Venezuela de Tel Aviv para Jerusalém. É um programa de extrema-direita que tem sido apoiado pelos EUA e, ultimamente, pelo oligarca dos oligarcas, Elon Musk.

Por não controlar os dois recursos que referi, os EUA têm usado as duas estratégias ao seu dispor (para além das interferências eleitorais e apoio à oposição): participação em golpes de Estado, que podem ou não incluir tentativas de assassinato dos líderes a abater; e sanções económicas. Neste momento, a Venezuela está a ser punida com 930 sanções que têm vindo a ser impostas há quase duas décadas. As sanções causaram o empobrecimento abrupto da Venezuela e foram responsáveis por milhares de mortos devido à falta de medicamentos essenciais para salvar a vida (por exemplo, durante um período, a insulina). Este empobrecimento abrupto levou à suspensão de muitas das políticas redistributivas do Governo e, em última instância, à emigração. Mais de sete milhões de pessoas.

Sem dúvida que um país com tantos milhões de cidadãos obrigados a emigrar não pode estar bem. E compreende-se que muitos desses emigrantes vejam na derrota de Nicolas Maduro o fim das sanções e a esperança de voltar. Neste contexto, duas reflexões se impõem. A primeira é que Maduro liberalizou a economia nos últimos anos, adoptando algumas medidas que dificilmente se podem considerar socialistas ou sequer de esquerda. Muitos negócios estão a ser celebrados com grandes empresas norte-americanas e europeias, na área petrolífera e não só. Hoje a economia venezuelana é uma das que mais cresce na América Latina, mas obviamente isto ocorre depois de um empobrecimento brutal. Até onde este novo modelo económico (de inspiração chinesa?) pode ter êxito é uma questão em aberto.

A segunda reflexão é que, se olharmos para o panorama internacional das migrações e refugiados, a Venezuela é o único caso em que a atenção midiática se centra no país donde saem os deslocados. Em todos os outros casos a atenção é centrada nos países de “acolhimento” (que inclui muitas vezes a deportação). Mais uma vez, a razão parece ser esta: a política de desestabilização e de demonização do governo bolivariano e a criação de um consenso para fazer accionar a terceira arma dos EUA: o infame regime change (mudança de regime). Penso, aliás, que a perturbação social actualmente em curso visa criar uma Revolução Maidan dez anos depois. Refiro-me à agitação social na Ucrânia em 2014 que levou à fuga do presidente eleito democraticamente, Victor Yanukovych, e, pouco tempo depois, à eleição de Volodymyr Zelensky. A razão pela qual uma “revolução colorida” dificilmente terá lugar na Venezuela é o facto de os EUA não contarem com militares venezuelanos treinados na Escola das Américas, onde tantos golpes de Estado foram forjados. As Forças Armadas venezuelanas já reconheceram os resultados eleitorais.

Mas certamente haverá mais tentativas no futuro, tanto mais que a Venezuela conta com três aliados de peso: China, Rússia e Irão, três inimigos dos EUA. Os dois primeiros são membros originais dos BRICS e o terceiro juntar-se-lhes-á proximamente. Isto significa que, embora a fachada discursiva seja sobre fraude eleitoral e democracia, o que está em causa é a turbulência geopolítica que a vitória de Maduro provoca. Isto devia fazer pensar os líderes dos países latino-americanos e muito especialmente o Brasil. Mais tarde ou mais cedo o Brasil tem de decidir-se de que lado está no novo horizonte geopolítico e geoestratégico mundial em curso. Compreendo as cautelas, pois, afinal, ainda há pouco, os EUA interferiram de maneira brutal na política interna do Brasil. Mas, por outro lado, só defendendo a soberania dos outros países é que o Brasil, ou qualquer outro país, poderá defender eficazmente a sua própria soberania quando a tempestade imperial chegar. Em todo o caso, é melhor actuar coletivamente do que individualmente. Faz falta um maior ativismo da Comunidade de Estados Latino-Americanos y Caribenhos (CELAC), agora que a União de Nações Latino-Americanas (UNASUR) desapareceu.

 

31 de JULHO de 2024.

 

Boaventura de Sousa Santos GOSE (Coimbra, 15 de novembro de 1940) é um Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de CoimbraDistinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick. É também diretor Emérito do Centro de Estudos Sociais e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa. Foi fundador e diretor do Centro de documentação 25 de Abril entre 1985 e 2011.