sexta-feira, 27 de junho de 2025

Machado de Assis e a criminalização dos juízes

 

A caçada aos imigrantes nos EUA propiciou a prisão da juíza Hannah Dugan, no estado do Wisconsin, acusada de facilitar a fuga de um perseguido pelo serviço de imigração. Juízes estadunidenses criticam o trabalho da imigração, pois a detenção de imigrantes, quando nos tribunais, os leva a recusarem comparecimento em audiências como testemunhas e mesmo quando vítimas. Por todo o mundo os marcos civilizatórios sofrem ataques. A ofensiva aos juízes e a criminalização da jurisdição não fica de fora da sanha neofascista. Até setores autodenominados ‘progressistas’ caem no conto do punitivismo.

No Brasil o poder judiciário se fortaleceu ao longo da República, mesmo com algumas vacilações e falta de entusiasmo institucional. João Mangabeira afirmou que o STF foi “o poder que mais falhou” na República, por não haver cumprido seu papel político-constitucional, apesar da fustigação de Rui Barbosa. Na Primeira República, até mesmo o controle de constitucionalidade das leis era por ele recusado. A ilegalidade nas instituições tanto pode decorrer da exorbitância quanto da omissão. No Império inexistia controle de constitucionalidade das leis, porque a sanção imperial excluía qualquer vício do processo legislativo. O decreto que organizou a justiça federal, quando da Proclamação da República, assegurou ao STF o poder de interpretar as leis e verificar sua conformidade com a Constituição. Mas os ministros, oriundos do Império, não assumiam tal poder. Hoje, há na sociedade quem demonstre estranhamento ao ver o STF exercitando, plenamente, suas competências constitucionais.

No âmbito dos Estados, os juízes, quando não integrantes do quadro das oligarquias, estavam sujeitos à sedução ou à vingança. Dentre os meios utilizados para submeter a magistratura estavam a disponibilidade e a retenção de vencimentos, disse o ministro do STF Victor Nunes Leal, mineiro de Carangola. Mas apesar das ameaças, o juiz gaúcho Alcides Mendonça Lima, em 28 de março de 1896, declarou a inconstitucionalidade de uma lei estadual. Em razão do exercício de sua competência, o Ministério Público recebeu ordens do governador Júlio de Castilhos para processar o juiz. E o fez alegando que “ousou o denunciado afrontar o regime constitucional do Estado e arvorar-se em supremo e original poder moderador”.

O juiz foi condenado pelo tribunal gaúcho. Rui Barbosa emitiu parecer em sua defesa demostrando que um juiz estadual podia reconhecer a inconstitucionalidade de lei estadual que contrariasse a Constituição da República e que não podia ser punido pelo exercício da jurisdição. O STF reformou a decisão e o absolveu, mas atuou timidamente no caso, esquivando-se de apreciar a inconstitucionalidade da lei gaúcha em face da Constituição da República. Um dos votos explicitou a negativa de adentrar ao cerne da questão da validade da lei estadual gaúcha, sob o fundamento de que o recurso se restringia ao julgamento do juiz pela sua atividade.

Machado de Assis, também escreveu sobre o tema. Não se pode pretender que o “Bruxo do Cosme Velho” tivesse familiaridade com o conceito de supremacia da Constituição, oriunda do ‘poder constituinte’, sobre as leis, oriundas do ‘poder constituído’. Sem considerar que de decisão judicial se recorre e não se pode criminalizar a jurisdição, sob pena de esmorecimento do sistema de justiça, escreveu Machado de Assis em A Semana, no dia 05 de abril de 1896: “Faço igual reflexão relativamente ao juiz da comarca do Rio Grande, que, segundo telegramas desta semana, vai ser metido em processo. A causa sabe-se qual é. Não consentiu o juiz em que os jurados votem a descoberto, como dispõe a reforma judiciária do Estado; afirma ele que a Constituição Federal é contrária a semelhante cláusula. Não sou jurista, não posso dizer que sim nem que não. O que vagamente me parece, é que se o estatuto político do Estado difere em alguma parte do da União, é impertinência não cumprir o que os poderes do Estado mandam."

É indiscutível que Machado de Assis é o maior romancista da literatura brasileira. É denso e enigmático. Sua produção literária abrangeu praticamente todos os gêneros, incluindo poesia, romance, crônica, dramaturgia, conto, folhetim, jornalismo e crítica literária. Após sua morte não faltaram impiedosas acusações à sua memória. Os poucos que o criticaram foram esquecidos pelo tempo. Silvio Romero disse ter sido “capacho de todos os governos”. Hemetério José dos Santos disse que, logo que o casamento e a posição social o levaram para outro ambiente, ao lado de gente branca, desprezara a madrasta, por ser negra. E Pedro do Couto dizia que sua obra não tinha filosofia ou psicologia e só lhe restava o mérito de “escrever bem”.

A leviandade dos críticos não lhes permitiu entender a grandeza da obra de Machado de Assis. No último dia 21 comemoramos 186 de seu nascimento. Sua obra precisa ser lida e estudada e seus equívocos pessoais, como a defesa da condenação de um juiz pelo exercício de sua atividade, precisam ser relevados. Se Cristo, considerado filho de Deus, secou uma figueira porque não tinha fruto, sem considerar se era estação frutífera, por que condenar Machado de Assis por uma opinião em tema que não era da sua especialidade? Basta-nos a obra que nos legou. E já é muito. Se tivesse escrito em língua das potências europeias estaria melhor posicionado mundialmente que Shakespeare, Cervantes e muitos outros autores clássicos, e somente disputaria o podium com Dostoievski.

 

Fonte: Publicado originariamente no jornal O DIA, em 28/06/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/06/7082553-joao-batista-damasceno-machado-de-assis-e-a-criminalizacao-dos-juizes.html


sexta-feira, 13 de junho de 2025

Essa polícia é de matar!

Numa monarquia autocrática ou teocrática o poder se legitima como se emanasse do próprio trono ou de Deus. A ideia do poder emanando de Deus chegou a ser teorizada em obra do jurista francês Jean Bodin, de 1576, no nono ano da fundação da Cidade do Rio de Janeiro, após expulsão dos protestantes franceses.

Posteriormente a Bodin outros filósofos escreveram que o poder não emana de deus, mas se constitui por um pacto civilizatório entre os cidadãos. Assim, em 1789, os franceses fizeram uma revolução, cortaram a cabeça do rei e mostraram que seu sangue não era azul, mas vermelho como o de todos. E numa assembleia nacional constituíram um novo modelo de Estado, declarando que todo o poder emana do povo.

Nas monarquias absolutistas tinha-se a concepção de que o rei não erra e que aqueles que agem em seu nome têm a presunção de estarem realizando sua vontade. Daí a presunção de legitimidade de seus atos. Mas nas democracias, onde o poder emana do povo, os agentes públicos não podem pretender privilégios que os sobreponham aos cidadãos.

Embora seja signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, o Estado brasileiro mantém a tipificação do crime de desacato. Tal crime cerceia as liberdades públicas e foi instituído em favor dos agentes públicos contra a cidadania. No Rio de Janeiro o Tribunal de Justiça editou súmula (nº 70) reconhecendo que a palavra do policial é prova suficiente para a condenação. A revisão da súmula não afastou a presunção de veracidade. Portanto, se o policial diz que foi desacatado o cidadão está no sal. O Brasil já foi condenado algumas vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos pela violação ao pacto por ele firmado e ratificado em defesa dos direitos humanos. Mas a condenação recai sobre o Estado e os governantes e agentes políticos que autorizam ou legitimam as violações nada sofrem.

O assassinato do office boy Herus Guimarães Mendes, de 23 anos (é preciso dizer que tem profissão para afastar a legitimação da execução), no Morro Santo Amaro, entre os bairros da Glória e Catete na Zona Sul do Rio de Janeiro, durante uma festa junina, é emblemático e mostra do que é capaz a política de extermínio instituída no Rio de Janeiro. Se na Zona Sul, durante uma festa junina, a polícia é capaz de ferir e matar moradores, imaginemos do que é capaz à noite nas ruas e becos não iluminados da Baixada Fluminense. A supremacia das armas e da truculência acanha e subjuga qualquer resquício de cidadania. E tudo sob o manto protetor da presunção de legitimidade dos atos de autoridade e de seus agentes. É o próprio estado policial em sua mais brutal aparição!

Diante do bestial assassinato de Herus, a PM afastou 10 policiais que participaram da operação e exonerou o coronel André Batista, comandante do Comando de Operações Especiais (COE), bem como o coronel Aristheu Lopes, comandante do Batalhão de Operações Especiais (Bope). Um sargento, possivelmente escalado para bucha, diz ter sido o único a efetuar disparos. A coisa ganha ares estranhos. Se era um tiroteio contra traficantes, por que somente um dos agentes teria disparado sua arma?

A violência policial é tema que me levou a iniciar escrever neste jornal em 2007. Em 16/02/2019, em artigo intitulado “A Boa Polícia” , tratei de uma incursão da PM no Morro do Fallet que causou 15 mortes. Um erro de publicação atribuiu as mortes ao Bope. Mas o então comandante do BPChq, tenente-coronel André Batista, reivindicou a operação. Ele já havia comandado o 9° BPM de Rocha Miranda. Trata-se de policial da elite da tropa, com currículo premiado. Foi o negociador do sequestro do ônibus 174, onde morreram a professora Geisa Gonçalves e o assaltante Sandro Barbosa. Além disto, é coautor do livro Elite da Tropa em parceria com o ex-capitão Rodrigo Pimentel, reformado da PM por surdez, e com o literato Luiz Eduardo Soares. O personagem André Matias no filme Tropa de Elite, teria sido inspirado em André Batista. Foi subsecretário do literato Luiz Eduardo Soares em Nova Iguaçu, na gestão do então prefeito Lindbergh Farias.

A polícia violenta, mas incorruptível, retratada no filme Tropa de Elite 1, decorre da concepção de uma “boa polícia” da qual falam o literato Luiz Eduardo Soares, da Uerj, e os formuladores do curso de Segurança Pública, da UFF. Em suas formulações, a “boa polícia” há de ser incorruptível, mas pode ser violenta, pois corrupção é uma opção; é um desvio pessoal. Mas a violência é um desígnio inevitável da atuação policial.

Terminei aquele artigo dizendo que nos resta apelar para o Tribunal Penal Internacional, para que a cadeia de comando da política de extermínio e aqueles que para ela concorrem, por não exercitarem o regular controle externo da atividade policial, sejam julgados por eventuais crimes contra a humanidade, assim considerados os massacres, a desumanização, os extermínios e as execuções. O texto me propiciou um irado telefonema do então governador e bloqueio nas redes sociais, o que me tira o sono até hoje.

Em 08/05/2021 voltei ao tema em artigo intitulado “Polícia fluminense matou mais 27”, analisando a incursão da Core no Jacarezinho, na mais letal operação policial da história do Rio de Janeiro, salientando dúvida, fundada em precedentes, sobre efetivo confronto e exercício de legítima defesa.

Punir alguns policiais e manter a política de extermínio é a receita para legitimar a continuidade das execuções dos indesejáveis. Mas às vezes os matadores erram na execução e até a mídia reclama.


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 14/06/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/06/7074735-joao-batista-damasceno-essa-policia-e-de-matar.html


segunda-feira, 2 de junho de 2025

FILOSOFA NA PRAIA, COPACABANA E CHOQUE DE ORDEM


O prefeito Eduardo Paes editou um decreto no último dia 15 que causou mais reboliço na Praia de Copacabana que causariam correrias e gritos de que está havendo arrastão. Já presenciei uma cena dessas. Um segurança desconfiou de uns meninos que cruzavam por mim no calçadão e ao andar em direção a eles cada qual correu num sentido. Apareceram pessoas de todos os lados correndo atrás dos garotos sem saberem o porquê empreendiam a caçada. Outros meninos aproveitaram para fugir, antes que fossem confundidos com os que eram perseguidos. Banhistas igualmente se apressaram em sair da areia. Mães com suas bolsas, cangas, toalhas e filhos colocados debaixo do braço também corriam para deixar a praia, fugindo da violência imaginária. Continuei minha caminhada pois vira que nada tinha acontecido que justificasse aquela agitação. Fui até o fim do calçadão. Ao retornar pude ver que o alvoroço se ampliara. Havia carros de polícia com sirenes e giroflex ligados, guarda-vidas com seus quadriciclos rodando pela areia em alta velocidade tal como se estivessem num rally pelo deserto, guardas municipais empunhando seus cassetetes tais como D. Pedro I com sua espada proclamando a independência, crianças e adolescentes magrelos com os olhos arregalados detidos dentro das viaturas e uma multidão de curiosos no entorno contando suas versões. Todo mundo era um pouco cinegrafista, fotógrafo e repórter naquela cena. O furdunço começara do nada e ninguém sabia explicar o que tinha acontecido, mas não faltavam versões imaginárias. Eu que tinha visto o começo da história, testemunhei como um grande incêndio pode começar com uma simples fagulha.

Mas voltemos ao decreto do prefeito! Trata-se de um ato regulamentar que dispõe sobre a proibição de atividades que contrariem o ordenamento urbano e público na orla marítima da Cidade do Rio de Janeiro. Copacabana é a praia mais famosa do mundo e o bairro que, talvez, tenha a maior diversidade, inclusive de classes sociais. Pretender ordenar as múltiplas interações e relações estabelecidas em Copacabana deve ser mais dificultoso que a pretensão de impor moralidade em alguns estabelecimentos da Rua Prado Júnior, no mesmo bairro, com a ostentação de uma imagem de São Jorge. Mas se não é possível ordenar a vida social pelos meios normativos e repressivos é necessário que as instituições se imponham como referencial de ordem e redutoras das incertezas do futuro.

O decreto não tem novidade alguma. Tão somente trata da necessidade de preservar o ordenamento urbano, a segurança, o sossego público e a adequada utilização dos espaços públicos na orla da cidade, bem como visa a reforçar o combate a práticas que representem abusos, desordem ou usos indevidos da orla que interfiram na mobilidade, limpeza urbana, meio ambiente e qualidade de vida dos cidadãos. É só isto. E não poderia ser diferente. Um decreto apenas regulamenta direitos, deveres e interesses dispostos em lei. Não pode dispor de forma diferente da norma superior. A hierarquia das normas impede que uma norma inferior contrarie a superior. Uma lei é editada por dois poderes: o Legislativo e o Executivo. Um decreto é ato normativo que visa a explicitar um comando para o cumprimento daquela. O problema ficou no campo da interpretação. No decreto faltou explicitação de alguns temas e poderia oportunizar discricionaridades ou até mesmo arbitrariedades. E daí o pânico dos trabalhadores dos quiosques.

No dia 27 o prefeito editou novo decreto, com redação esclarecedora, revogando expressamente o anterior. Mas valeu o alerta. De vez em quando é preciso relembrar que a vida coletiva demanda restrição a interesses privados em proveito dos interesses coletivos ou sociais. Se cada qual quisesse conduzir seu carro no sentido que o nariz lhe aponta, nenhum de nós sairia do lugar. A imobilidade seria total.

Copacabana é um bairro ímpar. Mas por vezes é impossível andar no calçadão dada a quantidade de tapetes, toalhas e cangas espalhadas com mercadorias expostas, por trabalhadores ambulantes que não deambulam. Na ciclovia às vezes é pior. Mães com carrinhos de bebê reborn, cachorros conduzidos por seus tutores, ciclomotores, bicicletas elétricas e patinetes infernizam a vida de quem deseja pedalar. Quem mora na orla tem a necessidade de janelas antirruído, em razão dos carros tunados com alto-falantes amplificados nos domingos e feriados e outros sons que se socializam sem a demanda dos demais ouvintes. Na pista fechada para uso dos pedestres se locomovem os ciclistas. Alguns quiosques se pretendiam casas de espetáculo ou salões de festa, sem preocupação com o sossego da vizinhança. Só isto!

A cada quinze dias no quiosque da Maria Alice, o Espaço A, em frente ao número 974 da Avenida Atlântica, das 11h00 ao meio-dia, um tema é exposto por um filósofo, cientista social ou escritor e debatido entre os presentes. O decreto originário chegou a perturbar alguns que frequentam a atividade cultural. Mas a ela não se destinava. Assim, hoje, teremos conferência do professor Carlos Frederico Gurgel, sobre “A consolação da filosofia”, de Severino Boécio, escrita por volta do ano 524. Trata-se da mais importante obra filosófica do Ocidente até o início da Renascença.

Estive com o Secretário Municipal de Ordem Pública, Brenno Carnevale, rimo-nos do alvoroço imotivado e lembramos que o decreto do prefeito funcionou tal como o sino da igreja que toca não para os fiéis, que sabem a hora da missa, mas para lembrar, àqueles que andam faltando, que o templo ainda existe. O decreto apenas rememorou que as atividades em público se subordinam ao interesse público.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 31/05/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/05/7065666-joao-batista-damasceno-filosofa-na-praia-copacabana-e-choque-de-ordem.html


Monteiro Lobato, Bacharelismo e o povo brasileiro

terça-feira, 27 de maio de 2025

SAÚDE MENTAL DOS POLICIAIS: O SILENCIOSO PROBLEMA DA SEGURANÇA PÚBLICA

 SAÚDE MENTAL DOS POLICIAIS: O SILENCIOSO PROBLEMA DA SEGURANÇA PÚBLICA[1]

 A questão da saúde mental dos policiais: o silencioso problema da segurança pública é questão que deve ser objeto de todos quantos queiramos uma sociedade pautada por padrões de bem-estar.

Não poderemos falar em tranquilidade e bem-estar se aqueles que velam pela nossa segurança não gozarem, previamente, de tal estado.

A questão da saúde dos profissionais da área de segurança é preocupante. E não me refiro tão somente aos cuidados médicos em face de doenças físicas ou acidentes. Mas sobretudo às doenças neuropsíquicas decorrentes das condições de trabalho. E para produzir um doente psíquico ou um suicida nada melhor que condições inadequadas de trabalho. E é somente isto o que abordarei.

Durante muito tempo estudei a questão da violência e dos grupos de extermínio na Baixada Fluminense, onde fui juiz por 18 anos, anteriormente chamados de Esquadrão da Morte, Mão Branca, Justiceiros e outros nomes que eram dados ao mesmo fenômeno. Mas aprofundando a questão e indo às suas origens pude constatar que o problema estava num tipo de política de segurança fundada na violação aos direitos humanos, de cidadãos e dos próprios agentes do Estado designados para sua execução.

E a origem remota foi um grupo de homens autorizados pelo General Amaury Kruel, que dirigiu o Departamento Federal de Segurança Pública de 1957 a 1959 nesta cidade, a combater - à margem da legalidade - os crimes dos outros.

Todos os que se embrenharam na execução das ilegalidades acabaram adoecidos ou descartados pelo poder a que serviram. Mas muitos dos que não prestaram tais serviços igualmente adoeceram por preterições em suas carreiras ou pelas inadequadas condições de trabalho.

Ainda hoje no Rio de Janeiro a bravura, com risco da própria vida e dos cidadãos, é motivo para a rápida ascensão funcional em preterição aos que empregam a inteligência.

A inadequada condição de trabalho do agente de segurança decorre não somente da sua colocação em situação de risco de vida, mas também em situação de afastamento de uma vida saudável ou de uma vida com abundância.

Condições de trabalho adequadas e a promoção do bem-estar são essenciais para um ambiente laboral saudável.

Bem-estar no trabalho refere-se à preocupação com a saúde mental e emocional dos trabalhadores, incluindo: 

1.       Um ambiente de trabalho que valorize a atividade desenvolvida, a carreira, a saúde mental e física dos trabalhadores policiais;

2.       Prevenção de riscos psicossociais, por meio de identificação de possibilidade de danos decorrentes do estresse ou das exposições impróprias que possam afetar a saúde mental;

3.       A oferta de apoio psicológico e programas de bem-estar que contribuam para a saúde dos trabalhadores policiais;

4.       Treinamentos sobre saúde mental e gestão do estresse que possam ajudar a lidar com os desafios do trabalho; 

5.       Promoção do equilíbrio entre vida pessoal e profissional.

Fui por algumas vezes titular em varas de interdição de incapazes, adoecidos por problemas psíquicos. E lidei com pessoas com problemas neurais (físicos), doenças mentais (transtornos mentais) e com transtorno da personalidade antissocial (psicopatia ou sociopatia).

A sociopatia foi o que mais me impressionou em minha atividade profissional, como juiz de interdição. A sociopatia é um transtorno de personalidade caracterizado por um padrão persistente de desrespeito e violação dos direitos dos outros. É frequentemente associado a comportamentos antissociais, falta de empatia, falta de remorso e dificuldade em seguir as regras sociais. 

Uma política de segurança que estimula a operacionalidade em desfavor da inteligência é propicia ao adoecimento dos agentes do Estado, proporcionando-lhes um quadro caracterizado por:

1.       Falta de empatia: Dificuldade em entender e compartilhar os sentimentos dos outros. 

2.       Falta de remorso: Não se sentir culpado ou arrependido por ações prejudiciais a terceiros.

3.       Manipulação: Utilizar estratégias para controlar e influenciar os outros. 

4.       Comportamento antissocial: Desrespeito por normas sociais e leis. 

5.       Ausência de culpa: Não se sentir culpado ou responsável por suas ações. 

6.       Narcisismo e egocentrismo: Foco excessivo em si mesmo e em suas próprias necessidades. 

7.       Desinibição e ousadia: Falta de medo ou preocupação com as consequências de suas ações.

Quaisquer dessas características acima podem decorrer de um ambiente inadequado para o trabalho. E precisamos evitar que os agentes do aparato de segurança do Estado sejam adoecidos nos seus ambientes de trabalho.

Além deste adoecimento, um caso grave em relação à saúde dos agentes de segurança é o suicídio, lamentavelmente crescente nas fileiras das diversas corporações estatais (policiais militares, policiais civis, bombeiros militares, policiais penais e guardas municipais).

O número de casos de suicídio tem crescido em todo o mundo, em razão da crise do mundo do trabalho, mas nos países periféricos muito mais. E dentre profissionais da área de segurança muito mais ainda.  Segundo a OMS, o ato de tirar a própria vida “é um problema complexo, para o qual não existe uma só causa nem uma só razão”, resultado de uma “complexa interação de fatores biológicos, genéticos, psicológicos, sociais, culturais e ambientais”.

Se o trabalho nem sempre é fonte de prazer e realização pessoal, não pode ser um ambiente que se transforme em fator de risco à saúde psicofísica que possa causar danos psicológicos, sociais e físicos ao próprio trabalhador ou à sociedade.

Nossa jurisprudência sedimentou-se no sentido de que não é improvável a ideação suicida por parte do trabalhador em razão das variadas formas de pressão psicológica que sofre no ambiente laboral, havendo casos em que se pode se caracterizar como evento equiparado a infortúnio trabalhista.

As normas legais consideram como acidente de trabalho não apenas aquele ocorrido no local e horário de trabalho que cause lesão, mas também diversos outros eventos, alheios ao local e ao horário de serviço, desde que com estes relacionados. Assim, os eventos danosos vinculados ao trabalho são equiparados a acidente de trabalho ou doença ocupacional.

Por isso é preciso estabelecer o correto enquadramento da sociopatia, causadora de insegurança, como doença propiciada pelas condições do trabalho policial.

Não há dúvida que os transtornos mentais adquiridos em ambiente de trabalho nocivo podem levar aos males acima descritos, em prejuízo dos próprios trabalhadores do campo da segurança pública e da sociedade.

O Estado tem o encargo de promover a proteção à saúde psicofísica do trabalhador policial. O descumprimento dos deveres gerais ou específicos de proteção, prevenção e segurança em relação aos trabalhadores que se colocam sob suas ordens e comandos gera a responsabilidade pelos danos que causarem a si próprios ou a terceiros.

Cuidar da saúde do trabalhador policial, em todas as suas esferas, há de ser uma obrigação do Estado e uma preocupação de toda a sociedade, a fim de poder exigir a segurança que almeja.

Assim, parabenizo a OAB/RJ, na pessoa de sua presidenta, Dra. Ana Basílio, pela instalação dessa Comissão Especial da Segurança dos Direitos dos Policiais Civis e Militares da OAB/RJ, presidida pelo Dr. Orlando Zaccone, que é o primeiro passo na preocupação social com a saúde do trabalhador policial.

 

João Batista Damasceno, desembargador no TJRJ e professor de Sociologia Jurídica da UERJ.



[1] Manifestação durante a instalação da Comissão Especial da Segurança dos Direitos dos Policiais Civis e Militares da OAB/RJ, no dia 27/05/2025 na sede da OAB/RJ.

sábado, 17 de maio de 2025

A imortalidade de Miriam Leitão



Não formularei juízo de valor sobre a eleição de Miriam Leitão para a Academia Brasileira de Letras (ABL). Miriam, jornalista das empresas Globo, foi eleita para a cadeira 7 da ABL no dia 30 do mês passado, ocupando a vaga deixada por Cacá Diegues. Recebeu 20 votos. Seu concorrente Cristovam Buarque, ex-reitor da UNB, ex-presidente do Conselho dos Reitores das Universidades Brasileiras (CRUB), ex-governador do DF, ex-senador e ex-ministro da Educação recebeu 14 votos. A eleição chegou a ser justificada pelo aumento da representatividade feminina na instituição, que agora conta com cinco acadêmicas. A genial poeta Cecília Meireles foi a primeira mulher a ser premiada pela ABL. Mas nela não ingressou; era cigana.

Foi ampliado o poder da bancada de jornalistas da Globo na instituição presidida por Merval Pereira. Miriam é mineira, da cidade de Caratinga, MG, a mesma de Ziraldo, Agnaldo Timóteo e do acadêmico Ruy Castro. É filha de um pastor protestante que, na direção de uma escola, possibilitou outra educação que não a dos padres da cidade, embora igualmente confessional. Até 1759, quando expulsos por Marquês de Pombal, os Jesuítas cuidavam da educação no Brasil. No século XX as diferentes igrejas passaram a disputar o poder educacional. Assim, tanto a Igreja Católica quanto as instituições protestantes criaram escolas para formar fiéis. E o reverendo protestante pai da Miriam o fez, brilhantemente.

Se a eleição na ABL foi orientada por critério identitário, alguma coisa está fora do lugar. Não sei o que Machado de Assis acharia disso. O identitarismo como critério precisa ser repensado. Vários grupos demandam representação e são legitimados, mas outros sequer são cogitados. Embora todas as instituições tenham em seus quadros integrantes de pequena estatura, nenhuma se dispõe a ampliar seus quadros com a oferta de vagas a pessoas de pequena estatura física, notadamente os anões. Reporto-me aos anões por dois motivos: o primeiro é literário porque, em se tratando da ABL, é preciso lembrar que os anões povoam a literatura nórdica e germânica; e o segundo é cordial, numa referência ao meu amigo André Pestaninha, assassinado em 2016 nesta cidade do Rio de Janeiro sem que até hoje a polícia tenha esclarecido o crime.

André Pestaninha foi o anão que liderou uma campanha para que houvesse telefones públicos (orelhões) em altura que pudessem usar, assim como as crianças. A TELERJ o atendeu. André Pestaninha nunca aceitou ser qualificado por outro termo e por isso a ele não me refiro com outros vocábulos. Ele dizia que era anão e que queria apenas acessos compatíveis com sua condição, sem privilégios ou palavras que não o ajudavam.

As cidades não têm responsabilidade pelo que fazem seus filhos. Carangola, MG, minha cidade natal, teve juízes de matizes diversas, dentre os quais o ministro Victor Nunes Leal, do STF, e a juíza Denise Frossard, além de outros e outras. Mas se manteve longe do poder eclesiástico e recusou abrir espaço para a instalação do bispado, que certamente influiria nas relações sociais locais. Mas Caratinga, terra da nova imortal, não! Na década de 20 do século XX ganhou o bispado.

Em 1938, Dom João Batista Cavati foi nomeado bispo Diocesano de Caratinga, ficando no cargo até 1956, quando renunciou. O motivo da renúncia não foi esclarecido. Deu nome ao distrito de Caratinga, criado em 1948, que emancipado em 1962 mantém o nome de município de Dom Cavati. Somente em 1987 Dom Cavati faleceu, na sede da Diocese de Caratinga, com grande prestígio dentre seus pares e muita influência nas decisões locais e é lembrado como o Bispo das Vocações Sacerdotais e das Escolas Católicas.

O contraponto ao educador católico na cidade foi o Reverendo Uriel de Almeida Leitão, pai da nova imortal, que em 1943 proferiu entusiasmado discurso no Ginásio Caratinga, falou sobre as finalidades da educação na sociedade e assumiu a instituição como seu Diretor Geral. O Reverendo Uriel se estabeleceu no ramo da educação privada e a cidade viveu o embate entre os ensinos religiosos com fundamentação católica ou protestante.

Com o golpe empresarial-militar de 1964 a primeira lei de diretrizes e bases da educação nacional, formulada por Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, promulgada em 1962, foi desnaturada. Assim, em 1968, entrou em vigência a “Reforma Universitária”. A partir dos anos 1970 foram estimulados os cursos superiores privados. Em 1971, o coronel-ministro Jarbas Passarinho implantou reforma educacional no ensino correspondente aos níveis fundamental e médio. Houve aumento do número de concluintes do ensino médio, demanda por curso superior e a instituição do Reverendo Uriel instalou a Faculdade de Ciências Contábeis de Caratinga. Depois criou os cursos de Serviço Social, Ciência da Computação, Comunicação Social e Direito. Em 2000 as cinco faculdades compuseram as Faculdades Integradas de Caratinga e desde 2004 é o Instituto Doctum de Educação e Tecnologia.

Ganhou a eleição na ABL a filha do Reverendo Uriel, fiadora da Operação Lava Jato, cujo filho foi o escriba da atuação politizada do “principado de Curitiba”. Perdeu a eleição da ABL um professor, um educador, um homem das letras, que tem como referência teórica Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira e Paulo Freire e, tal como estes, tem uma vida dedicada à educação pública, universal, gratuita e laica

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 17/05/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/05/7057385-joao-batista-damasceno-a-imortalidade-de-miriam-leitao.html

 

sexta-feira, 2 de maio de 2025

A cassação do deputado Glauber Braga

É certa a cassação do deputado Glauber Braga pela Câmara dos Deputados. Sempre que os direitos das minorias ou dos indivíduos são entregues aos sentimentos contrariados da maioria, aqueles são sacrificados. Na história há registros emblemáticos do que é capaz a maioria insatisfeita, dentre eles os julgamentos do filósofo grego Sócrates e de Jesus Cristo. Em ambos os casos a maioria enfurecida sacrificou a vida dos inocentes.

O deputado Glauber Braga é acusado de haver expulsado um provocador que há muito tempo o perseguia e que num determinado dia, no âmbito das dependências da Câmara dos Deputados, ofendia sua mãe que se encontrava no leito de morte. Em defesa da honra da mãe, o deputado expulsou o provocador da casa parlamentar que desrespeitava e na saída deu-lhe um chute na bunda. A acusação é de exercício de violência no recinto parlamentar e, portanto, quebra do decoro parlamentar. Mas tal Casa nunca foi tão intransigente com essa questão. Está mais que evidenciado o exercício regular de direito ou a legítima defesa da honra de terceiro. No caso, a honra da mãe do deputado. Ela morreu dias depois do episódio.

Tanto o exercício regular de direito ou a legítima defesa são causas de exclusão da ilicitude da conduta. Aquele que pratica fato previsto como crime, diante de causas excludentes de ilicitude, não comete crime. Comete o fato hipoteticamente definido como crime, mas crime não é porque se trata de conduta lícita. O médico que faz uma incisão cirúrgica num paciente, causando uma cicatriz, não pode ser acusado de lesão corporal. Isto porque a lesão causada está respaldada pelo exercício regular de direito, que é outra excludente de ilicitude da conduta.

Já tivemos ocorrências no âmbito da Câmara dos deputados e do Senado Federal de efetiva gravidade que jamais mereceram qualquer manifestação de censura aos autores. O deputado Arnon de Mello, pai do ex-presidente Fernando Collor de Mello, disparou tiros contra o senador petebista Silvestre Péricles, atingindo e matando o senador José Kairala. Apesar do assassinato, e ainda que tenha sido dentro do Senado Federal, na presença de inúmeras autoridades, Arnon de Melo não teve qualquer punição imposta pela Mesa Diretora. Em data recente, no âmbito do Congresso Nacional, um deputado fazia apologia à tortura e ao Coronel Brilhante Ustra, dirigente de centro de tortura reconhecido por uma de suas vítimas a deputada e atriz Bete Mendes. Igualmente não houve sequer submissão ao Conselho de Ética.

O problema não é o fato, ainda quando seja grave. Mas quem o pratica ou quem foi atingido pelo comportamento anterior do acusado. Cristo não foi crucificado porque curava no sábado ou perdoava prostitutas e publicanos corruptos. Mas porque acusava os sacerdotes de transformarem o templo em casa de comércio. Angariou a antipatia do alto clero, que insuflou o baixo clero e a massa.
No julgamento de Cristo o mais indignado era o Sumo Sacerdote, Caifás. Para disfarçar sua falta de seriedade fez cara sisuda e para convencer o povo a libertar Barrabás e levar Cristo à crucificação, teatralmente, rasgou as próprias vestes. Os discursos indignados dos acusados de improbidade geralmente decorrem de retórica para convencimento, sem racionalidade. Quem tem razão pode fazer a demonstração com o passo a passo do raciocínio. Não precisa de retórica acalorada.

No caso do julgamento de Cristo, o sumo sacerdote, com sua retórica e teatralidade, acirrou o sentimento da maioria contra o acusado. No caso do deputado Glauber Braga, depois da Comissão de Ética foi a vez da Comissão de Constituição e Justiça aprovar o julgamento feito pelo Pleno da Câmara dos Deputados. O baixo clero, oriundo dos grotões, que domina a cena parlamentar, não perdoará quem o acusa de malversação de verbas orçamentárias. Glauber será cassado e por suas virtudes.

A indignação de certos parlamentares com o deputado Glauber Braga é notável. Alguns são capazes de rasgar as próprias vestes para demonstrá-la. Ele vem denunciando as emendas secretas pelas quais seus pares no Congresso Nacional direcionam recursos do orçamento para suas bases eleitorais a fim de serem geridas pelas autoridades locais. Quem conhece o poder local no Brasil sabe o quanto essas verbas são relevantes para realização de festas diversas, muitas das quais superfaturadas. Rodeios, cavalgadas, shows sertanejos, contratação de bandas locais e muitos outros modos de gastos de verbas advindas de emendas do orçamento da União fazem a alegria de cabos eleitorais nos grotões, de quem é contratado e de quem recebe as `rachadinhas´. Isto sem contar as obras públicas, muitas das quais já veem com destinatário certo e onde o procedimento licitatório é mera formalidade para prestação de contas. Além disto, tem também as destinações a entidades declaradas de interesse social, que na verdade são entidades `pilantrópicas´. O ralo pelo qual se esvai o dinheiro público, por meio de emendas parlamentares secretas, é na verdade um bueiro.

A CPI dos Anões do Orçamento demonstrou, nos anos 90 do século XX, como agiam os que manipulavam o orçamento da União. Tal investigação não cessou com a prática. Ao contrário, a divulgou a ensinou a outros o caminho pelo qual poderiam trilhar rumo ao patrimonialismo. O Brasil tem jeito. Mas não será com pulverização de recursos federais para garantia de governabilidade. Pelo menos a sessão Plenária da Câmara dos Deputados que cassará o deputado Glauber Braga será pública, com voto aberto, e assim poderemos saber quem tem interesse no orçamento secreto com destino de verbas em envelopes fechados.

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 03/05/2025, pag. 15. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/05/7049201-joao-batista-damasceno-a-cassacao-do-deputado-glauber-braga.html