sábado, 18 de maio de 2024

Discurso de ódio e política de cancelamento

A política de cancelamento e discurso de ódio que se praticam atualmente na sociedade, notadamente nas redes sociais, atinge sobretudo aos que expressam desejo de pertencimento ou visibilidade ou cujas atividades profissionais demandam interação com o público. Profissionais qualificados podem ser vitimados por cancelamento em razão de fato alheio à sua atividade laborativa. Vivenciamos a perda da função social da cidade, como espaço de socialização e convivência. A cidade tornou-se virtual.

Nem sempre quem promove discurso de ódio sabe o porquê o faz. Mais que o mal-estar da civilização para a qual a cultura nos socializa, vivenciamos o mal-estar nas interações difusas. O ponto de inflexão no Brasil foi registrado nas Jornadas de junho de 2013. Aquelas manifestações que, no Rio de Janeiro, perguntavam pelo corpo de Amarildo não podem ser interpretadas como um movimento organizado da direita, que efetivamente tomou as ruas em momento posterior. Desde quando a direita se ocuparia com o destino de um homem negro, favelado e pobre morto pela política de extermínio que se implantou neste Estado? As manifestações de junho de 2013 expressaram rejeição aos gastos com os grandes eventos nos quais o povo não poderia ingressar. A precariedade nas áreas da saúde, educação, saneamento, moradia e transporte coletivo foi o combustível que fez propagar aquele incêndio. O mal-estar difuso foi agregado a partir do surgimento das mídias sociais, que serviram para convocações de simultâneas ou sucessivas aglomerações durante um mesmo dia. Aqueles que se escondiam nos porões deixados pela ditadura empresarial-militar aproveitaram o momento e saíram de suas cavernas.

A política de cancelamento, discursos de ódio, mentiras, notícias falsas e fofocas preexistem ao atual momento. O que as difere das fake News é a larga e rápida difusão propiciada pelas redes sociais. A política do cancelamento está relacionada à destruição de reputações, tal como o discurso de ódio está relacionado ao linchamento físico, verbal ou noticioso outrora praticado, também, pelas mídias corporativas. As plataformas digitais dão eco ao discurso de ódio e aos cancelamentos e o mal-estar nas relações sociais são campo fértil para tais ocorrências. 

A formação de grupos sociais, física ou virtualmente, a partir de afinidades propicia a agregação, mas também a exclusão de quem não seja considerado apto a tal inserção. O ser humano nasce indivíduo e se torna pessoa. Com a aquisição de determinados atributos pessoais adquire status com os quais se relaciona socialmente. A cultura do cancelamento implica na destruição do status com o qual a pessoa se apresenta socialmente.

Vivemos em praças digitais que nos expõem a tribunais virtuais nas redes sociais, num processo de digitalização das relações e até em processo que se denomina metaverso. Metaverso expressa a confusão entre o real e o virtual, sem grande possibilidade de distinção entre um e outro. Mais que os cancelamentos com índices de rejeição, perdimento de seguidores em plataformas digitais, temos a transmudação da cultura do cancelamento em discursos de ódio com ameaças à integridade física ou à vida de pessoas,
extensivo a amigos e familiares.

O discurso de ódio e a cultura do cancelamento causam danos psicológicos e físicos, na medida em que impõem sofrimentos, dores, angústia e no plano econômico distratos de contratos e desfazimento de relações jurídicas estabelecidas. O cancelamento implica na ação de boicotar uma pessoa dentro de uma comunidade ou grupo social. Cancelar é negar o direito de uma pessoa ao pertencimento a um determinado grupo, deslegitimando-a; é conduta excludente. Busca-se negar o direito de pertencimento. O extremo do cancelamento é a política de extermínio de pretos e pobres na periferia, antes excluídos do conceito de pessoas humanas. O cancelamento virtual é uma forma de justiçamento, tal como o são os linchamentos e execuções sumárias.

Numa sociedade cada vez mais mediada pelas plataformas digitais e pelas redes nelas estabelecidas, os linchamentos morais podem – com facilidade – se transformar em violência física, com risco à própria vida dos cancelados. Um coach, famoso por suas mentiras, nesta semana, promoveu discurso contra jornalistas de uma emissora de televisão, tornando-os alvo de seus seguidores. Os jornalistas estão andando sob escolta. Não se pode confundir a liberdade de expressão com o incitamento a crime. Ainda que o famoso coach não tenha ordenado dano físico aos jornalistas, seu discurso de ódio propiciou tal efeito, pois seus seguidores passaram a ameaçar os jornalistas.

Os perigosos sentimentos coletivos da massa se expressam tal como os gritos do incentivador da barbárie. O discurso de ódio se traduz em excesso na liberdade de expressão, causador de danos e sujeita o incitador à responsabilização. O excesso na manifestação do pensamento é abuso de direito. A responsabilização, além da esfera civil, pode igualmente ser buscada na esfera penal, seja contra quem pratique o dano ou a quem o incitou. Afinal, quem de qualquer forma concorre para o crime incide nas penas a ele cominadas.

 

Publicado originariamente em 18/04/2024, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/05/6847754-joao-batista-damasceno-discurso-de-odio-e-politica-de-cancelamento.html

sábado, 4 de maio de 2024

Almirante Negro João Cândido e a luta pela dignidade da pessoa humana

 

A Constituição de 1988 dispõe que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, constituindo-se num Estado Democrático de Direito que tem por fundamentos, dentre outros, a dignidade da pessoa humana e o pluralismo político. Estes fundamentos da República estão em discussão em momento no qual o Congresso Nacional incluirá o nome do Marinheiro João Cândido Felisberto no Livro dos Heróis da Pátria. João Cândido liderou a Revolta da Chibata em 22 de novembro de 1910, reivindicando o fim dos açoites na marujada, mesmo após 22 anos da abolição da escravatura e 21 da Proclamação da República.

O mote para a revolta foram as 250 chibatadas no Marinheiro Marcelino. O Almirante José Carlos de Carvalho, única autoridade admitida subir a bordo, assim relatou: "Mandaram vir a minha presença, Sr. Presidente, uma praça que tinha sido castigada ante-hontem. Examinei essa praça e trouxe-a commigo para terra para ser recolhida ao Hospital da Marinha. Presidente, as costas desse companheiro assemelham-se a uma tainha lanhada para ser salgada".

Proclamada a República em 15/11/1889, fora, no dia seguinte, editado o Decreto 03, extinguindo os castigos corporais na Marinha. O decreto não foi acolhido pela oficialidade. Em 12/04/1890, o Marechal Deodoro da Fonseca editou o Decreto 328, criando a "Companhia Correcional". Restabeleceu-se o retorno da chibatada aos marinheiros. Ainda em 1890, em 28 de junho, o presidente editou decreto de cunho racista proibindo a entrada de imigrantes africanos e asiáticos no Brasil.

Não se pode tratar João Cândido à luz da indisciplina e da quebra da hierarquia, quando fez prevalecer a sensatez em prol dos direitos humanos. No mesmo período, a oficialidade vivia em polvorosas revoltas e muitos dos oficiais que quebraram a hierarquia hoje são considerados heróis pela Marinha Brasileira. Em 23/11/1891, tivemos a Revolta da Armada, pró-monárquica. Em 13/12/1891 tivemos o Levante Deodorista na belonave 1º de Março. Em 05/09/1893, o couraçado Aquidabã iniciou a Revolta da Armada, também de índole monarquista.

Eu poderia citar dezenas de sublevações militares ao longo da República, comandadas por oficiais, que implicaram quebra da hierarquia e da disciplina. Da Primeira República basta lembrarmos do Movimento Tenentista de 1922 e da Revolução de 1932. Da metade do século XX para cá tivemos a tentativa de proibição da posse de Juscelino Kubistchek, os levantes durante seu mandado, a oposição à posse de João Goulart em 1960, o golpe de 01 de abril de 1964, a tentativa de deposição do general-presidente Ernesto Geisel pelo seu ministro do Exército Silvio Frota até o Caso Riocentro, além de muitos outros atos, como transformação de quartéis em centros de tortura, assassinatos, desaparecimentos etc.

O assassinato de Euclides da Cunha em agosto de 1909 inflamara os ânimos da campanha eleitoral de 1910. De um lado estava Rui Barbosa com sua campanha civilista e de outro o Marechal Hermes da Fonseca, sobrinho do Marechal Deodoro da Fonseca. Rui Barbosa falava de direitos civis, por isso sua campanha era civilista. A ela se contrapunha o discurso do uso da força, encampada por militares e pelas milícias da subsistente Guarda Nacional. As paixões eleitorais interpretavam as campanhas civilista e militarista como se fossem de civis contra militares.

Hermes da Fonseca tomou posse em 15 de novembro. Em 22 de novembro, enquanto recebia delegações estrangeiras num jantar na Tijuca, cerca de 2.400 marinheiros se rebelaram, chefiados por João Cândido. Não queriam mais ser açoitados. Para o pasmo da oficialidade racista, o Almirante Negro manobrava a frota com precisão e elegância. Foi o que escreveu o jurista Evaristo de Moraes em seu livro 'Reminiscências de um Rábula Criminalista':

"Quando, no começo do governo do Marechal Hermes, explodiu a revolta chefiada por João Cândido, admirei, como todas as pessoas libertas de preconceitos, a habilidade técnica do improvisado 'almirante', fazendo evoluir os navios, a sua capacidade disciplinadora, evitando a alcoolização dos companheiros, e a generosidade de que deu sobeja prova, não atirando cruelmente contra a capital da República".

O Encouraçado Minas Gerais, comandado por João Cândido, era o maior navio de guerra do mundo. Ao chegar ao Rio de Janeiro, no início de abril de 1910, trazendo o corpo do embaixador brasileiro nos EUA, Joaquim Nabuco, não foi do nobre falecido que a imprensa falou. O embaixador Gilberto Amado se entusiasmou com a chegada do navio, mais que com o corpo do seu colega falecido. E a música adaptada em homenagem ao encouraçado é o hino do Estado de Minas Gerais, o único Estado da federação que não tem hino oficial. "Óh Minas Gerais! Óh Minas Gerais! Quem te conhece não esquece jamais! Óh Minas Gerais!".

Tentou-se liquidar com João Cândido e sua memória. Em 05/12/2006, o jornal O DIA revelou que a fotografia estampada na capa do livro 'João Cândido, O Almirante Negro', publicado pelo Museu da Imagem e do Som, em 1999, era de outro marinheiro; de André Avelino. O erro era mantido em outras obras. João Cândido, descendente de pessoas que tinham sido escravizadas, é a parte do Brasil real que insiste em viver sem açoites. E viverá!

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 05/05/2024, pag. 12. Link:  https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/05/6839385-almirante-negro-joao-candido-e-a-luta-pela-dignidade-da-pessoa-humana.html