sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Ciclismo, morte e legado dos grandes eventos

Trafegando pela Avenida Pasteur, em Botafogo, à minha frente um ciclista pedalava pela pista de rodagem. A partir do entroncamento com a Rua Repórter Nestor Moreira tal avenida não mais dispõe de ciclovia. O Código de Trânsito Brasileiro reconhece a precedência do ciclista sobre os automóveis, se inexistir ciclovia. Conduzi o carro em baixa velocidade, possibilitando ao ciclista continuar transitando, com prioridade, à minha frente. Uma ultrapassagem somente seria permitida se pudesse fazê-lo com um metro e meio de distância, o que a largura da via não permitia. Ao chegar ao semáforo existente em frente à Policlínica de Botafogo, pensei que o ciclista fosse parar, pois o sinal estava fechado para veículos de qualquer espécie. Mas sem se importar com a norma de trânsito, o ciclista avançou o sinal ameaçando de atropelamento um casal de idosos que se amparava reciprocamente para atravessar a rua na faixa de pedestres.

Nossa realidade está permeada por exigências de comportamentos alheios sem condutas similares às que exigimos de terceiros. É o problema do moralismo. O moralismo é a ética de quem não tem ética. O ciclista transgressor, certamente, exige respeito e cuidado, mas não atuou com a mesma reciprocidade com os idosos que saíam do hospital. Isto ocorreu no domingo passado, dia 17.

Na sexta-feira, dia 15, meu assessor Danny Rogers Coelho Teles fora atropelado por uma bicicleta e morreu. Ele fora meu aluno na faculdade de Direito. Ao fazer seleção para assessor no Tribunal de Justiça ele, que se tornara serventuário da justiça por concurso público, se candidatara à função. Fora bom aluno. Era da turma do fundão da sala, que juntamente com outros eram os mais bagunceiros e participativos das aulas. Num semestre dei aula pela manhã. No semestre seguinte pedi transferência para a noite. Mas deles não me livrei. Eles se inscreveram à noite e continuaram os cursos comigo. E assim estabelecemos uma relação de ensinagem, processo pedagógico no qual quem aprende também ensina e quem ensina aprende. O clima era de seriedade, compromisso com os objetivos dos cursos e muita camaradagem.

Ao ser informado do atropelamento por uma bicicleta e do óbito do meu assessor, duvidei da notícia. Afinal, uma bicicleta não é capaz de causar dano tão acentuado. Mas era verdade. Meu assessor, voltando de encontro com amigos atravessava a Avenida Vieira Souto, em Ipanema, na proximidade da Rua Maria Quitéria e, terminando a travessia, foi atropelado por um ciclista profissional que, em alta velocidade, treinava naquela madrugada. O ciclista igualmente sofreu fraturas, mas sem gravidade. Ambos foram socorridos para o Hospital Miguel Couto. Meu assessor não saiu de lá vivo. O ciclista foi imediatamente transferido para um hospital, desses existentes na Zona Sul do Rio de Janeiro destinados ao atendimento de quem tenha dinheiro que atribua o direito à saúde.

A dinâmica do acidente ainda precisa ser investigada e esclarecida. É certa a materialidade. É certo que uma pessoa morreu em decorrência de um acidente envolvendo um ciclista. Mas antes de questionar sobre o comportamento dos dois envolvidos no evento, é preciso apreciar o comportamento do poder público que autoriza o uso das vias públicas para treinamento por desportistas de alto rendimento.

Sem iluminação, sem motor que faça barulho, com pequeno volume e alta velocidade, uma bicicleta de corrida é imperceptível à noite. Trata-se de inegável irresponsabilidade política e administrativa a decisão do poder público de autorizar tal prática desportiva em via pública. O ciclismo é o esporte, dentre todos os outros, que mais promove fraturas, proporcionalmente ao número de acidentes. Já não bastam as motos, os ciclomotores, os patinetes e as bicicletas elétricas por calçadas, ciclovias e entre os carros? As ruas serão transformadas em velódromo à noite, colocando em risco a vida e a integridade física das pessoas? Na ausência de autódromo na cidade, igualmente serão permitidos os treinos de Fórmula 1 pelas ruas do Rio de Janeiro? Onde estão os legados dos grandes eventos que consumiram centenas de bilhões em recursos do erário para alegria dos cartolas que não nos deixaram ao menos um velódromo?

Dispõe a lei que quem de qualquer forma concorre para um crime incide nas penas a ele cominadas. A responsabilidade civil e a administrativa são regidas pelo mesmo princípio. E mais: A dimensão ética que há de permear as relações sociais e as relações dos cidadãos com o poder público não permite a isenção da responsabilidade das autoridades que contribuíram para o desfecho trágico. Além da responsabilidade civil da Administração pública também estamos diante da responsabilidade dos seus agentes.

É absurdo que uma cidade como o Rio de Janeiro não tenha um velódromo onde os ciclistas profissionais possam treinar. É impensável que desportistas profissionais usem as vias públicas em seus treinos colocando em risco os cidadãos. A cidade do Rio de Janeiro foi cenário de vários eventos que prometiam legados. Além da Copa do Mundo de Futebol de 2014, tivemos os Jogos Panamericanos de 2007, os Jogos Mundiais Militares de 2011 e as Olimpiadas de 2016. Onde está o velódromo que poderia ter poupado a vida de um pai de uma menina de dois anos? Não há via nas quais possam ocorrer treinamentos desportivos sem colocar em risco a vida dos cidadãos cariocas e fluminenses? Cabe ao poder público e aos seus agentes a resposta, a responsabilidade e tomada de providências.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 23/08/2025. Versão digital disponível no link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/08/7116016-joao-batista-damasceno-ciclismo-morte-e-legado-dos-grandes-eventos.html

terça-feira, 12 de agosto de 2025

Placa retirada, homenagem indevida apagada!

 




No dia 28 passado enviei para amigos e fiz postagem nas redes sociai do seguinte texto:

Há 40 anos eu passo pela placa acima na UFRJ, ignominiosa homenagem daquela universidade ao mais truculento dos ditadores do regime empresarial-militar. Médici foi responsável pelo período de torturas, mortes, desaparecimentos, estupros, roubos e muito mais. Lamento não a ter arrancado com um pé de cabra, quando era estudante por lá, e jogado ao mar. Nunca deixei de chamar a atenção dos meus amigos que exerceram cargos de mando naquela IES. Passei por lá e parei para ver se a homenagem da universidade ao sanguinário continuava por lá. Continua! Lamentável! Está entre o CT e o CCMN.

Hoje passei pelo Fundão e parei para ver se a placa continuava por lá. Não mais está! Finalmente foi retirada. Há 40 anos eu me incomodava com aquela indevida homenagem a quem foi politicamente responsável pela prisão, tortura, morte, estupro e desaparecimento de muitos estudantes.

É pouco! Mas alguma coisa foi feita. Não reescreveremos a história. Mas não podemos manter homenagens a quem fez parte de  um passado que não queremos ver repetido.

sábado, 9 de agosto de 2025

A atualidade de Joaquim Silvério dos Reis

Joaquim Silvério dos Reis é a expressão da traição, da delação e do entreguismo. Atuando em razão de seus interesses pessoais delatou os conjurados mineiros e foi premiado com dinheiro, títulos, propriedades imobiliárias, perdão de dívidas e anistia de penalidades. Tinha 23 anos quando delatou seus companheiros, dentre os quais Tiradentes, mas já era coronel da cavalaria da Vila de Borda do Campo, atual município mineiro de Antônio Carlos.

O ouro foi encontrado no interior do Brasil entre 1693 e 1695, tendo sido explorado por paulistas e baianos que contornavam a Serra do Mar. Subtraindo a influência destes, a Coroa portuguesa criou a Capitania das Minas Gerais, concedeu sesmarias e autorizou que fidalgos portugueses expulsassem da região os que nela viviam e haviam descoberto as riquezas que exploravam. Disto decorreu a Guerra dos Emboabas entre 1707 e 1709. Chacinados os possuidores originários, a partir de 1711, Portugal instituiu a cobrança da finta, que uns pagavam pelo arrendamento das terras, que eram do rei, e outros simplesmente por viverem na região. Era o caso dos “povos de nação”, que pagavam pelo direito de viver na colônia portuguesa. Dentre estes estavam os judeus sefarditas ascendentes de Tiradentes.

Depois de instituída a Intendência das Minas, subordinada diretamente a Lisboa, foi exigido o pagamento do “quinto” ou quinta parte de toda a riqueza produzida nas terras do rei. Era uma espécie de arrendamento. Não tinha a natureza de imposto como o conhecemos. Escasseado o ouro, a Fazenda Real exigiu o pagamento anual de 100 arrobas de ouro, equivalente a 1.500Kg. Para atingir tal montante, todos tinham que contribuir. Era uma espécie de vaquinha ou exigência pública de pix. Não atingido o valor, a Fazenda Real promovia a “derrama”, ou seja, confisco de casa em casa até completar a quantia requisitada.

As derramas eram feitas num clima de pavor e violência. A população vivia revoltada, mas com o quase esgotamento das minas e com a situação precária de Vila Rica (atual Ouro Preto) os inconfidentes, entre eles, o tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrada, o desembargador Cláudio Manuel da Costa, os poetas Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto e o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, encabeçaram o levante contra a derrama prevista para 1789.


O clima era tenso. Desde 1788, sob as ordens da rainha Dona Maria I, A Louca, o governador, Visconde de Barbacena, confrontava a elite mineira assentada no controle do poder local e articulada com a intelectualidade fluminense. A mãe de D. João VI, avó de D. Pedro I e bisavó de D. Pedro II reinava com o apoio de uma aristocracia parasitária, depois do afastamento do Marquês de Pombal, primeiro-ministro de seu pai, D. José I, morto em 1777. A intensificação do controle sobre o comércio, as cobranças das dívidas dos contratos atrasados e a ameaça de mais uma derrama incendiavam os ânimos, propiciando as conjurações mineira e fluminense. Esta em 1794, sob a direção da Sociedade Literária do Rio de Janeiro, e aquela em 1789.

Diversamente de Joaquim Silvério dos Reis, que se pontuava como desleal, entreguista e vassalo do colonialismo, Tiradentes era contra a exploração colonial mediante taxações abusivas e cobrança desmedida de impostos e finta. Mas lutava sobretudo pela autonomia política, independência em relação à metrópole, liberdade de atuação, igualdade na tributação e solidariedade entre os nacionais.

Antes de Joaquim Silvério dos Reis a história registra a existência de outro entreguista antipatriota: Calabar. Quando da expulsão dos holandeses do nordeste brasileiro ficou ao lado dos holandeses e contra a retomada da região invadida. Chico Buarque escreveu peça sobre o personagem e relativizou sua traição. É possível relativizar o posicionamento de Calabar, a partir da análise dos seus interesses. Mas foi um traidor da sua pátria, como sempre existiu por cá e em todos os tempos.

Joaquim Silvério dos Reis era coronel remunerado pelos interesses da Coroa portuguesa, mas o que visava ia além do seu soldo. Tiradentes e seus companheiros pretendiam impedir a saída das riquezas que passavam por Portugal, mas se direcionavam ao país pirata europeu de língua inglesa. Tiradentes foi fiel aos interesses da nação a que pertencia. Não foi inconfidente, mas conjurado. A história demonstra que aqueles que atuaram em favor da ordem internacional e contra os interesses da nação brasiliana eram os traidores do seu próprio povo.

Se a história se repete o é como farsa. Se há traição aos interesses nacionais, sobreposição dos interesses particulares aos interesses do povo brasileiro e entreguismo das riquezas nacionais ao estrangeiro, a figura de Joaquim Silvério dos Reis se torna atual, ainda que representada por outros personagens. Seja Calabar, Joaquim Silvério dos Reis ou outro qualquer em qualquer tempo, quem se coloque contra os interesses do povo brasileiro em favor de interesses estrangeiros é entreguista, traidor da pátria e do povo merece aversão. Tiradentes é referência para os que almejam um país soberano, justo e solidário. Foi traído, mas não traiu jamais. Não se submeteu à exploração estrangeira, nem mesmo para poupar sua vida. Não pediu clemência, nem anistia. Não chantageou quem quer que fosse para livrar a própria pele. Ao contrário, disse: “Mil vidas eu tivesse, mil vidas eu daria pela libertação da minha pátria”. Esta é a diferença entre um pária e um patriota.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 09/08/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/08/7106880-joao-batista-damasceno-a-atualidade-de-joaquim-silverio-dos-reis.html