Nas monarquias os casamentos eram assunto de Estado. Não raro
príncipes e princesas casavam-se sem se conhecerem e por procuração. Foi assim
com D. Pedro I nos casamentos com D. Leopoldina, arquiduquesa filha do
imperador Francisco I da Áustria, e com D. Amélia de Leuchetenberg. Cumprido o
dever de ter filhos para assegurar a sucessão hereditária dos títulos de
nobreza ou linha de sucessão ao trono, no caso das realezas, as relações
extraconjugais na aristocracia não eram problema. A vida da nobreza era vivida
protocolarmente para a perpetuação dos títulos e poderes. A vida da nobreza e
realeza, na corte, era um ritual.
Norbert Elias, no livro “A Sociedade de Corte” descreve os
rituais da realeza na Corte de Luís XIV: Por volta das 08h00 o rei era acordado
pelo primeiro criado de quarto, que abria as portas para os pajens. Um entrava
para supervisionar os serviços ao rei, outro se dirigia à cozinha para
providenciar o café da manhã e outro ficava na porta para controlar a entrada,
de acordo com o privilégio de acesso.
O acesso ao rei era hierarquizado, num total de seis grupos:
primeiro a esposa, os filhos legítimos, netos, príncipes e princesas de sangue,
o médico e o primeiro cirurgião. O segundo grupo era composto pelos altos
funcionários a serviço do rei. O terceiro grupo era dos senhores da nobreza. O
quarto grupo era composto pelo capelão, pelos ministros, conselheiros de
Estado, oficiais da guarda pessoal e marechais da França. O quinto grupo era
composto por senhores e senhoras da nobreza a quem o rei concedia o favorecimento
da entrada em seus aposentos e que o fidalgo do quarto deixava entrar. O sexto
grupo não entrava pela porta principal do quarto, mas por uma porta traseira e
era composto pelos filhos ilegítimos, suas famílias, os genros e outras pessoas
que não tinham função pública.
Embora na mais baixa hierarquia, pertencer a este grupo
significava um grande privilégio, pois tinham permissão para entrar a qualquer
hora nos aposentos do rei, a não ser que estivesse em Conselho ou tivesse em
algum trabalho especial com seus ministros. Como não havia outro grupo para
entrar, podiam permanecer até que o rei os dispensasse ou saísse para outras
atividades.
O ingresso nos aposentos reais decorria de meticulosa
exatidão organizacional. Cada movimento era determinado pelo cerimonial e
revelava um grau de prestígio e simbologia da divisão de poder. Mesmo a esposa
do rei, incluída no primeiro grupo e, portanto, detentora do maior prestígio do
ponto de vista formal, não poderia permanecer quando o segundo grupo era
autorizado a entrar. O rei podia tudo ou quase tudo. Norbert Elias diz que “A
disposição do quarto de dormir do rei – que não era só de dormir – tem estreita
relação com esse estado de coisas”.
A amante do rei não estava incluída na hierarquia de acesso
aos aposentos reais. Não constava no cerimonial. Oficialmente inexistia.
Portanto, podia ingressar a qualquer hora, pela porta dos fundos. A
impossibilidade de definição e delimitação de seu papel na Corte lhe
proporcionava ilimitadas possibilidades.
Na França o ritual foi estabelecido por Luís XIV e foi
desaparecendo junto ao enfraquecimento do poder monárquico e ampliação do
ideário republicano que culminou na Revolução Francesa, cujo lema era
“Liberdade, Igualdade e Fraternidade”.
Nas monarquias a esposa do rei é nominada de rainha consorte
e marido da rainha é príncipe consorte. Mas não têm poderes políticos ou
militares. O marido da rainha da Inglaterra Elizabeth II, Philip, nas
cerimônias oficiais, não podia sequer andar ao lado da soberana. Em todas as
aparições públicas ele andava um passo atrás dela. Se fosse o contrário, talvez
não faltasse quem visse machismo ou misoginia.
Mesmo sem funções políticas ou militares, nas monarquias os
cônjuges têm atribuições formais. Diversamente nas repúblicas. A igualdade de
todos perante a lei não permite hierarquias sociais ou nas relações com o poder
público. Nas repúblicas, os cônjuges dos chefes de governo não têm funções
estatais a serem desempenhadas. Num Estado de Direito a lei é que atribui e
delimita as atribuições. Se não há lei que atribua funções aos cônjuges dos
chefes de governo não há papel institucional a ser desempenhado.
Os casos nos quais os cônjuges assumiram publicamente função
de Estado para a qual não foram eleitos resultaram em problemas: o protagonismo
escancarado da emblemática Hilary Clinton irritou a sociedade estadunidense a
tal ponto que quase levou Bill Clinton ao impeachment, do qual se livrou por um
empate na votação, mas não foi reeleito; o presidente argentino Carlos Menen
teve que editar um decreto proibindo a entrada da mulher, Zulema Yona, na Casa
Rosada e disto resultou um divórcio escandaloso; Imelda Marcus, esposa do
ditador Ferdinand Marcus, das Filipinas, acabou no exílio junto com o marido.
Mesmo Nelson Mandela teve problema em seu governo em razão da atuação de sua
mulher Winnie Mandela. Pode até ocorrer exercício de poder, por meio de
influência do cônjuge, mas não às escâncaras. Com exceção de Evita Peron, que
foi santificada em vida, todas as demais sobreposições de relações familiares
com assuntos de Estado acabaram em desastre institucional ou político.
Publicado originariamente no
jornal O DIA, em 21/09/2024, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/09/6920906-joao-batista-damasceno-monarquia-e-republica-maridos-esposas-e-amantes.html
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