Em atrito com Bolsonaro, STF tem meios
escassos de controle e limite a seus ministros
Corte tem em impeachment de juiz maior
sanção, mas medida é considerada muito improvável
6.jun.2020 às 14h07
SÃO PAULO
Pressionado
nos últimos anos pela opinião pública e agora sob cerco do bolsonarismo, o STF
(Supremo Tribunal Federal) tem escassos meios previstos em lei
de controlar ou limitar a atividade de seus integrantes.
Instituições
como o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) ou o Congresso praticamente são
alijadas de atividades de supervisão dos trabalhos da corte.
A
única sanção mais ao alcance de outros Poderes, considerada por especialistas
uma bomba atômica a ser usada em hipóteses remotas, é o impeachment de
ministro, que cabe ao Senado avaliar.
Embora
desperte críticas, esse modelo de autonomia e estabilidade quase total é
concebido para evitar a influência política sobre o Judiciário ou retaliações
de outros Poderes por decisões tomadas.
Iniciativas
controversas dos ministros nos últimos anos despertaram discussões sobre os
limites de atuação dos integrantes da corte.
Uma
dos principais foi o inquérito
da fake news, aberto em 2019 por determinação do próprio
presidente do tribunal, Dias Toffoli, que também indicou o relator, Alexandre
de Moraes. Os alvos são suspeitos de fazer ameaças e ofensas a integrantes do
tribunal.
O
presidente Jair Bolsonaro chegou a
afirmar há duas semanas, após operação de busca e apreensão no
âmbito dessa investigação: “Ordens absurdas não se cumprem”.
O tom
beligerante estimulou ainda mais apoiadores que semanalmente
fazem protestos antidemocráticos em Brasília pedindo o
fechamento da corte e do Congresso.
Bolsonaro
e os críticos do tribunal também questionam a excessiva individualização de
ordens de ministros, como a expedida
também por Moraes em abril que barrou a posse de Alexandre
Ramagem, aliado do presidente, na direção-geral da Polícia Federal.
Liminares
também reverteram indicações para ministérios nos governos Dilma Rousseff e Michel
Temer. Se abre margem para questionamentos, essa autonomia gozada
pelos ministros também protege a corte de intervenções desmedidas do Executivo.
Em
democracias menos consolidadas, há vários precedentes de destituição de
integrantes da mais alta corte por pretextos aleatórios do governo da ocasião.
No Brasil, a ditadura militar ordenou a aposentadoria de ministros não
alinhados.
Pedidos
de impeachment no Supremo Tribunal Federal se avolumaram no Congresso nos
últimos anos, mas não houve nenhum caso
de afastamento consumado.
O
professor de direito constitucional Miguel Godoy, da Universidade Federal do
Paraná, diz que o impeachment implica em provar uma falha funcional grave, que
represente um crime de responsabilidade.
Os
pedidos que chegam ao Senado contra os ministros costumam visar, por outro
lado, o teor de decisões tomadas.
“Juiz
não pode ser responsabilizado pela compreensão jurídica que tem. A não ser que
atue de maneira dolosa para fraudar, o que não me parece o caso”, diz ele, a
respeito do inquérito das fake news.
O
professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas) no Rio Ivar Hartmann, que pesquisa o
Supremo, diz que, como o impeachment é visto como algo fora de cogitação, a
corte fica sem outras alternativas de controle, o que contribui para excessos
dos ministros.
“Deveria
haver outros mecanismos além do impeachment para violações de menor grau. Algum
mecanismo de moção, de suspensão, que tenha um efeito simbólico. [Por exemplo:]
remover determinado processo da relatoria e ser sorteado entre outros
ministros. Seria algo de bastante impacto para os ministros, veriam como uma
punição severa.”
Hartmann
diz que o Senado, que também é quem aprova as indicações de novos ministros do
tribunal feitas pelo presidente da República, poderia exercer esse papel.
Existe,
no entanto, um equilíbrio delicado nos interesses intercruzados entre Poderes:
há no tribunal inquéritos e processos que têm como alvos os próprios
congressistas.
O
professor também considera que poderia ter havido um efeito positivo na
chamada “CPI da Lava
Toga”, que senadores novatos tentaram abrir sem sucesso em 2019,
desde que a comissão se prestasse a discutir procedimentos do Judiciário, e não
o teor das decisões.
O
Conselho Nacional de Justiça, criado em 2004 e que supervisiona as atividades
do Judiciário, não tem jurisdição sobre os ministros da mais alta corte do
país.
Em
2001, ato do então presidente da corte, Marco Aurélio
Mello, alimentou debate sobre punição ao ministro.
Ele
concedeu habeas corpus a um militar condenado por tráfico e embasou sua ordem
em argumento que, disse, havia sido respaldado por decisão de uma das turmas da
corte anteriormente, o que não havia acontecido de fato.
A
situação provocou bate-boca em plenário com a então colega Ellen Gracie e foi
discutida pelos 11 ministros em sessão administrativa a portas fechadas.
Pressionado pelos pares, Marco Aurélio acabou admitindo publicamente que havia
errado, e a libertação foi revogada.
Punições
internas por meio do regimento interno do tribunal são improváveis, já que
caberia aos colegas tomar a iniciativa contra um ministro.
Preceitos
desse regulamento, como o que estabelece prazos para a retomada de casos sob
pedidos de vista, não provocam sanções em caso de descumprimento.
Em
2019, estudo da
Fundação Getúlio Vargas analisou três décadas de pedidos de
suspeição (questionamento sobre a isenção de um magistrado em uma causa) e
mostrou que todos foram arquivados no tribunal, a maioria de maneira individual.
O
poder dos ministros em obstruir discussões também é questionado.
Em
2014, o ministro Luiz Fux autorizou de maneira liminar o pagamento de
auxílio-moradia no Judiciário e por anos não liberou a causa para julgamento
dos colegas. Só revogou
suas decisões em 2018 depois de o governo federal aceitar conceder
reajuste salarial à magistratura.
“Não
se sabe quais os critérios de conduta judicial que nós podemos cobrar dos
ministros do Supremo. É um problema antigo no Brasil”, diz o professor do
Insper Diego Werneck
Arguelhes, que pesquisa cortes constitucionais.
Nesse
sentido, ele entende que a fixação de mandatos para os integrantes do tribunal,
como o estabelecido em outros países, é benéfica. Hoje, os ministros são
aposentados compulsoriamente aos 75 anos.
Para o
professor de ciência política da Universidade Federal de Santa Catarina Luciano
Da Ros, que estuda o Judiciário, a única bandeira que une os 11 ministros que
compõem a corte é a preservação de seus poderes individuais, o que obstrui
possíveis iniciativas de aperfeiçoamento.
“Se o
ministro A tomou uma decisão que foi malvista pelos outros, ela é ‘aceita’
pelos demais porque, em um momento subsequente, o ministro B ou C pode ser
aquele a tomar uma decisão malvista pelos colegas. Nesse contexto, dificilmente
existe uma ação disciplinar clara, orientação de rumo.”
Para
os acadêmicos, os questionamentos à corte são desdobramento da superexposição
que seus julgamentos e decisões passaram a ter na última década. A partir do
julgamento do caso do
mensalão, em 2012, o tribunal esteve cada vez mais no centro do
debate político, que incluiu episódios da Operação Lava Jato e a discussão
sobre a prisão de condenados em segunda instância, como o
ex-presidente Lula.
Agora,
as circunstâncias de ataques à corte por manifestantes extremistas podem acabar
tendo até o efeito inverso, de barrar o debate por mudanças em seu modo de
funcionamento.
Para a
professora de direito constitucional Vera Karam de Chueiri, da Universidade
Federal do Paraná, o momento exige cautela em propostas de mudanças.
“Pode-se
fazer as críticas, tecer críticas, mas neste momento elas têm que ser pensadas
nesse contexto maior, de quem quer dinamitar instituições”, diz.
ALGUMAS DAS MEDIDAS CONTROVERSAS DO STF NOS ÚLTIMOS
ANOS
Inquérito
das fake News
Em
março de 2019, o presidente do STF, Dias Toffoli, decidiu por conta própria
instaurar um inquérito para apurar ofensas e ameaças contra ministros da corte.
A medida se baseia em um artigo do regimento interno que trata da ocorrência de
crimes nas dependências do tribunal. Ele indicou o ministro Alexandre de Moraes
para relatar o caso.
Desde
então, o inquérito já serviu, por exemplo, para censurar a revista online
Crusoé, para determinar buscas contra o ex-procurador-geral Rodrigo Janot, que
havia dito que planejou matar um ministro da corte, e, no fim de maio, contra
empresários, blogueiros e outros aliados do presidente Jair Bolsonaro
Decisões
individuais sobre o Executivo
Desde
2016, medidas individuais da corte impediram a posse do ex-presidente Lula na
Casa Civil, da então deputada Cristiane Brasil (PTB-RJ) no ministério de Michel
Temer e, mais recentemente, de Alexandre Ramagem na direção da Polícia Federal.
No
caso do petista, o argumento era de desvio de finalidade. As decisões
despertaram debate sobre os limites da atuação do Judiciário sobre o Executivo
Causas
'seguradas'
O
poder dos ministros em obstruir discussões também tem sido questionado. Em
2014, o ministro Luiz Fux autorizou de maneira liminar o pagamento de
auxílio-moradia no Judiciário e por anos não liberou a causa para julgamento --
só revogou suas decisões depois de o governo federal aceitar conceder reajuste
salarial à magistratura.
Em
2015, houve mobilização de entidades para que o ministro Gilmar Mendes
liberasse voto sobre o financiamento de campanhas eleitorais por empresas, que
ficou pendente por mais de um ano
OBSTRUÇÃO JUDICIAL
O que se em
feito em alguns tribunais é "obstrução judicial", por meio de pedido
de vista ou retardamento na submissão de liminar ou processo ao órgão colegiado
para julgamento.
No STF a
prática da “obstrução judicial” foi escancarada pelo Ministro Nelson Jobim. Vindo
do Parlamento, onde a prática da obstrução é meio de propiciar
conversações, o ministro Jobim a praticou em larga escala no STF, conforme era
denunciado pelo jurista Dalmo de Abreu Dallari.
Embora o
regimento interno do STF/RISTF disponha que o pedido de vista implica devolução
dos autos na segunda sessão subsequente, já tivemos ministros que ficaram anos
com vista ou se retardaram a liberação do processo para julgamento. Tenho
ciência de uma petição protocolada no STF em 2006, somente foi juntada após sua
aposentadoria do relator, ministro Joaquim Benedito Barbosa.
Um debate
necessário é sobre a manutenção do pedido de vista após a segunda sessão ou
inabilitação de quem em tal tempo não se achar apto a julgar, bem como a
ineficácia, ope legis (pro força de lei), da liminar não confirmada ou submetida
na primeira sessão subsequente a que tiver sido deferida.
Assim:
1)
Se o julgador pedir vista e não trouxer o processo na segunda
sessão subsequente, estaria - de pleno direito - inabilitado em participar do
julgamento, por desconhecimento da causa.
2)
Deferida a liminar, antes da oitiva da parte
contrária, o relator deveria colocar a decisão para reapreciação e confirmação
na primeira sessão subsequente, sob pena de perda imediata e, por força de lei,
da eficácia.
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