Quem não
conhecia o deputado Glauber Braga, até o dia no qual o ex-juiz Sergio Moro foi
prestar depoimento numa comissão na Câmara dos Deputados, se espantou com um
jovem parlamentar desassombrado que, sem cerimônia, chamou o então ministro de
“juiz ladrão”. Inteligentemente, sem fazer qualquer referência a crime contra o
patrimônio, o deputado fez uma comparação com o árbitro de futebol que,
dolosamente, favorece a vitória de um dos times do qual, em momento posterior
ao campeonato, se torna técnico.
O deputado
protagonizou mais um papel compatível com quem tem responsabilidade com a
civilidade e com o Estado de Direito. Embora seja de campo político diverso da
ex-deputada Flordelis, votou contra a sua cassação. As bancadas “da bala”, “do
boi” e “da bíblia” abandonaram a deputada e votaram pela sua cassação.
Diante da
polêmica instaurada, o deputado foi às redes explicitar o seu posicionamento e
disse: “Flordelis matou? Não sei. O júri vai avaliar. Sabia da controvérsia,
mas achei que seria incoerência minha cassar mandato antes de julgamento e
dizer que defendo agenda antipunitivista”. E disse mais: “O argumento que será
utilizado é que neste caso a avaliação era sobre quebra de decoro. Não vi os
elementos comprovados (a dúvida já é motivo pra não votar Sim)”.
Sem temor das
consequências do seu coerente voto, o deputado disse que se votasse pela
cassação da deputada teria gerado “menos desgaste”, mas ponderou que não se
sentiria bem com isso. “Me sentiria covarde por estar caminhando contra as
minhas convicções”, declarou.
Assim como o
deputado, eu tenho me espantado com as condenações antes dos julgamentos. A
prática tem relembrado a frase da rainha louca do Castelo de Cartas no conto
‘Alice no País das Maravilhas’, de Lewis Carroll: “Cortem a cabeça! Primeiro a
sentença, depois o julgamento”.
A mídia acusa,
julga, condena e executa. E as instituições que deveriam garantir os direitos
individuais contra a sanha da multidão ratificam o veredito midiático. É
espantosa a prática de publicidade opressiva na mídia brasileira. Os erros
cometidos no caso da Escola Base não nos ensinaram muita coisa.
No último dia
11 de agosto comemoramos o Dia do Advogado e dos Magistrados. Foi também o 10º
aniversário do assassinato da juíza Patrícia Acioli, com 21 tiros disparados
por policiais militares, com armas e munição do Estado. Até hoje os oficiais
condenados por participarem do atentado à Justiça estão nos quadros da Polícia
Militar do Estado do Rio de Janeiro, recebendo regularmente seus salários.
Vivemos um
paradoxo. Qualquer cidadão que queira ser candidato a cargo eletivo precisa ter
a “ficha limpa”. Uma condenação civil em ação civil pública, em segunda
instância, mesmo que não seja desabonadora, pode gerar a inelegibilidade. Um
ex-presidente foi impedido de concorrer a uma eleição e permaneceu 580 dias
encarcerado sem sentença transitada em julgado. Um deputado, membro de poder,
pode ser cassado por mera alegação de falta de decoro parlamentar, seja lá o
que isto for, independentemente da existência de condenação em qualquer
instância.
Um magistrado
pode ser afastado por mera notícia de jornal, sem fonte explicitada, dependendo
do humor dos órgãos disciplinares do judiciário. Mas oficiais do aparato armado
do Estado somente perdem o cargo em decorrência de sentença transitada em
julgado, mesmo que matem uma juíza que lhes dificulte a escalada criminosa
contra a vida da população vulnerável. E ainda há quem clame por mais
intervenção militar!
A deputada
Flordelis foi parte daquele grupo que fazia arminha e pedia intervenção nos
direitos. Foi elevada às alturas pelo redemoinho da tormenta que passou pelo
país. Se culpada, cabe ao júri popular apreciar. A destituição de um membro de
poder de suas funções, sem prova plena de ilicitude, é um atentado ao Estado de
Direito e à democracia.
Publicado
originariamente em 17/08/2021 no jornal O DIA. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2021/08/6214001-joao-batista-damasceno-um-deputado-desassombrado.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário