A Grande Seca do Nordeste de 1877 a 1879 foi
o mais tenebroso fenômeno de seca da história do Brasil. Matou cerca de 500 mil
pessoas, provocou fome e migração. A República ao ser proclamada em 1889 não
buscou solucionar nem o problema das pessoas que haviam sido libertadas da
escravidão, nem dos retirantes que migraram para a Corte.
A seca de 1915 igualmente foi terrível e
inspirou obras como o livro ‘O Quinze’, de Rachel de Queiroz. Trata-se de “um
livro com muita coisa escrita” sobre aquele episódio. Para evitar que os
“flagelados da seca” chegassem às cidades em busca de comida, a política
oficial foi a criação de campos de concentração para aprisionamento dos
retirantes em pontos espalhados estrategicamente nas rotas de migração. A
indiferença com o sofrimento do povo não foi inventada durante a pandemia da
covid-19.
Padre Cícero foi ordenado padre em 1870,
mudou-se para o povoado de Juazeiro pertencente ao Crato, e passou a ensinar
latim no Colégio Padre Ibiapina. Padre Ibiapina é tido como a inspiração de
Padre Cícero e da Teologia da Libertação. A opção preferencial pelos pobres
somente mais tarde foi instituída pela Igreja, no Concílio Vaticano II.
Independentemente da dimensão religiosa do
trabalho de Padre Cícero, ele foi uma pessoa que apoiou os miseráveis que
passavam com suas trouxas de roupas e pertences fugindo da fome e da miséria
que os assolavam. Padre Cícero exercitou a opção preferencial pelos pobres e os
visitava, ouvia e aconselhava. Mas seu trabalho não se limitava a tais apoios
imateriais. Sua obra consistiu também em prover moradia digna, organizar o
povoado e contribuir para o trabalho produtivo.
A hierarquia eclesiástica se indispôs com
Padre Cícero e ele foi excomungado. Somente em 2001 foi aberta no Vaticano a
possibilidade de sua reabilitação e em 2015 recebeu perdão. Semana passada o
Papa Francisco retirou os óbices para que seja iniciado seu processo de
beatificação e canonização. Padre Cícero teve envolvimento direto na política
partidária no Ceará e chegou a liderar os coronéis numa guerra contra o
governador. Quando da emancipação de Juazeiro em 1911, foi o seu primeiro
prefeito. Mais tarde foi eleito deputado federal, mas não chegou a assumir o
mandato. O fato conhecido como ‘Pacto dos Coronéis’ é exemplificativo do
coronelismo brasileiro na Primeira República. Padre Cícero morreu em 1934.
Quando na década de 1910 do século XX o
Brasil iniciou as pesquisas para exploração mineral. O médico e jornalista
baiano Floro Bartolomeu da Costa se aproximou de Padre Cícero para explorar as
terras sob domínio do padre. Floro Bartolomeu pretendia garimpar cobre, mas à
sombra da consagração popular de Padre Cícero acabou se tornando líder
político.
Tal como ocorre com toda organização de
pessoas humildes, a cidade de Juazeiro era estigmatizada pelo poder federal. A
República, proclamada na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, depois de um
golpe militar, não fora instituída para o povo. Mas para os fazendeiros
apoiados pelo Exército. A República, proclamada em 1889, foi uma vingança dos
fazendeiros contra a Abolição da Escravatura, no ano anterior.
Floro Bartolomeu se aproveitava do prestígio
do Padre Cícero, mas combatia o preconceito contra os sertanejos junto à imprensa
e instituições do poder federal, para quem Juazeiro seria um antro de cangaço e
fanatismo. O episódio de Canudos, de 1896 e 1897, era constantemente relembrado
e fundamentava discursos para novo massacre.
Toda instituição tem os seus ícones. Aqueles
que lhe dão riqueza, poder e honra são tratados como filhos diletos. E aqueles
que desafiam os seus cânones são perseguidos, humilhados e até eliminados. Na
Igreja não poderia ser diferente. Por isso se diz que há a ‘Igreja dos Padres’
com seus ritos, luxos e honrarias e a “Igreja do Povo’ com suas crendices e
manifestações simplórias. As instituições resistem ao que é popular.
Mas quando a cultura popular se sobrepõe as
instituições buscam domesticá-la, trazê-la para dentro de si, culpar os
dirigentes de outras épocas e lhes atribuir a responsabilização pelo que agora
chamam legítimo. Lampião, líder do cangaço, foi orientado a perseguir a Coluna
Tenentista de Luiz Carlos Prestes. Mas foi demovido por Padre Cícero. O
Exército também tenta domesticar a memória de Prestes, mas encontra coerente
oposição de sua filha, Anita Leocádia Prestes, filha de Olga Benário Prestes.
Embora Floro Bartolomeu tenha aproveitado o
prestígio de Padre Cícero em suas campanhas eleitorais, não foi o padre quem se
aproveitou e enriqueceu com a fé do povo. Tampouco lhes retirou a comida da
boca em troca de banquete divino. Inspirado em Padre Ibiapina, Padre Cícero
tinha uma teologia fundada na opção preferencial pelos pobres. Não era uma
teologia da extorsão, nem da prosperidade. Mas do amparo e cuidado.
Publicado originariamente
no jornal O DIA, em 27/08/2022, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2022/08/6472600-joao-batista-damasceno-padre-cicero-e-a-politica.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário