O
pensamento médio brasileiro é o que vem do sertão. Quem o percebeu foi
Guimarães Rosa. Na metade dos anos 50 do século XX o meio intelectual e
cultural fervilhava com a arquitetura moderna, Oscar Niemeyer, a Bossa Nova, a
indústria automobilística e com um presidente que a tudo isto apoiava e
enunciava um Brasil novo. Era o presidente Bossa Nova Juscelino Kubitscheck.
Mas outro Brasil contrastava com aquele urbano, moderno, ‘civilizado’ e
cheiroso que se apresentava na televisão recentemente introduzida nos lares. O
Brasil arcaico insistiu em seu desejo de permanência e Guimarães Rosa o
descreveu em Grandes Sertões: Veredas, publicado no mesmo ano da posse daquele
presidente. Este Brasil que não era litorâneo, nem cosmopolita já o havia
descrito Euclides da Cunha, Oliveira Vianna e Victor Nunes Leal.
A
migração de parcela da população interiorana para centros urbanos não implicou
mudança de valores. A consciência conservadora migrou dos grotões para a
periferia dos centros urbanos, mas não perdeu sua essência; teimou em sua
permanência associada à religiosidade, agora com novos padrões. Num país
periférico temos uma massa que vive na periferia do que há de bom para alguns.
Seus valores e crenças permanecem nesta parcela da sociedade brasileira, à
margem das novas relações que se estabelecem no mundo globalizado. O
desenvolvimento tecnológico lhe deu novos meios para se conectar, difundindo
fake News, com maior capacidade de divulgação antes limitadas a boatos
paroquianos. Na defesa da pauta de costumes, que é assunto da sociedade e não
do Estado, elege quem enche os bolsos com emendas secretas. O analfabeto
político, mas eloquente, participa do processo com o “galo na testa” e
inimizade com vizinhos e familiares, para mostrar a fidelidade aos seus
“valores”. “Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a
prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que é o político
vigarista, pilantra, o corrupto e lacaio dos exploradores do povo”, nas
palavras de Bertold Brecht.
O
conservadorismo se apropria de meios contemporâneos de tecnologia
indispensáveis para sua permanência e constitui a modernidade conservadora que
reage e se impõe de vez em quando. A Consciência Conservadora no Brasil é
título de livro clássico de Paulo Mercadante, de cuja falta devemos ressentir.
Entender o Brasil profundo, não apenas da periferia, mas também dos grotões, é
fundamental para quem almeja comunicar-se com ele. A Zona Sul do Rio de Janeiro
e os Jardins em São Paulo têm relevância social e concentram significativa
parcela da riqueza nacional, mas a decisão sobre o destino do país não se
limita a estes espaços privilegiados. A “Faria Lima” tem poder de pressão sobre
as opções governamentais e políticas a serem implantadas. Mas há poder de decisão
na periferia e grotões onde um trabalhador precarizado se acha “empreendedor” e
um micro proprietário rural se acredita parte do agrobusiness, sem saber que o
mundo do agronegócio é feito de commodities negociadas nas bolsas de valores
dos países centrais do sistema internacional.
O
Brasil profundo não se intimida com a modernidade e a racionalidade e elege os
seus expoentes, incultos e iletrados, mas representativos dos valores que lhe
são próprios. O voto é apenas uma expressão das relações sociais sedimentadas e
que não se dobram aos valores da civilidade. Parcela da intelligentsia,
autoproclamada vanguarda intelectual, que se considera progressista por
defender pautas politicamente corretas financiadas por instituições
internacionais de fomento, é incapaz de compreender a força deste reacionarismo
enraizado. Seus discursos não contemplam os interesses concretos da massa.
Na
República Velha, na posse da terra o coronel assentava seu domínio. É a
constituição da propriedade fundiária privada o que ainda sustenta o poder nos
grotões, ameaçando comunidades indígenas e quilombolas. Enquanto houver terra
devoluta e riqueza natural a ser expropriada a expansão das fronteiras não
cessará. Sem um programa de reforma agrária, que possibilite o aumento do
número de proprietários e que limite o tamanho das propriedades, os donos do
Brasil se fortalecerão. O latifúndio não é pop. Nos centros urbanos a questão
da moradia está subordinada ao capital imobiliário especulativo.
Para
governar, o Príncipe dos Sociólogos se rendeu e teve que barganhar. O atual
presidente idem. A presidenta Dilma acreditou-se acima dos interesses concretos
da bancada fisiológica e, demasiadamente, confiou na força das instituições e
na sua integridade moral que nada serve no embate dos interesses
inconfessáveis. O conservadorismo ameaça com o semipresidencialismo a fim de
assumir o poder institucionalmente. Trata-se de mais um golpe, pois
desconsidera o valor do plebiscito e da democracia direta. A sociedade
brasileira já foi ouvida sobre a questão e escolheu o presidencialismo. Mas nem
sempre o povo assiste bestializado, como descreveu Aristides Lobo, por ocasião
do golpe militar que proclamou a República. Às vezes o povo reage, tomando
decisões até mesmo contrárias aos seus interesses, cavando a própria sepultura
pensando estar em busca de ouro.
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 13/07/2024, pag. 12. Link; https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/07/6881016-joao-batista-damasceno-conservadorismo-brasileiro-dos-grotoes-ao-meio-urbano.html
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