Reagindo a vaias,
enquanto discursava no Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em
2023, o ex-ministro do STF, Luís Roberto Barroso enfatizou o seguinte:
"Saio daqui com as energias renovadas pela concordância e discordância
porque essa é a democracia que nós conquistamos. Nós derrotamos a censura, nós
derrotamos a tortura, nós derrotamos o bolsonarismo para permitir a democracia
e a manifestação livre de todas as pessoas". A fala foi mal interpretada e
não faltou quem acreditasse haver referência ao ex-presidente da República
derrotado nas eleições de 2022 e, atualmente, cumprindo pena privativa de
liberdade em regime fechado, em decorrência dos crimes tentados de Golpe de
Estado e Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito.
O evento de 08 de janeiro
de 2023, além de tentativa de golpe, foi o ápice de um processo degenerativo
das relações sociais e institucionais que se acumulava desde a abertura
política lenta, gradual e segura dirigida pelo general-presidente Ernesto Geisel
e da anistia que impediu uma justiça de transição com responsabilização
daqueles que transformaram os quartéis em centros de torturas, mortes e
desaparecimentos dos opositores do regime empresarial-militar. Do trinômio
memória-verdade-justiça temos apenas o esforço por memória e verdade, uma vez
que a justiça foi sepultada pela autoanistia que os algozes das liberdades se
concederam.
A transição para a
democracia não compreendeu os quartéis. Nestes se mantem o adestrando das novas
gerações para acreditarem na legitimidade da truculência da ditadura. Mas a
degeneração institucional e social na qual estamos mergulhados não pode ser debitada
exclusivamente ao ex-presidente golpista. Trata-se de fenômeno mais profundo do
qual o presidiário foi apenas o porta-voz momentâneo. Mesmo com o ícone
defenestrado, o fenômeno incivilizatório se mantém em certos setores da
sociedade e, sobretudo, nas casernas. Falta muita gente na Papuda, notadamente
da elite militar.
O nome do fenômeno que
desagrega as pessoas, inimiza familiares, converte templos religiosos em
centros de doutrinação totalitária despidos de teologia e fé, rejeita a
cultura, ataca as instituições democráticas, desrespeita a justiça, viola o
Estado de Direito, reivindica para as Forças Armadas o papel de Poder
Moderador, pede intervenção estrangeira no país, produz narrativa diversa dos
fatos, abomina livros, desqualifica professores, deslegitima universidades,
ofende gays, discrimina mulheres e negros, nega a ciência, afirma o
terraplanismo, duvida da eficácia das vacinas e não demonstra compaixão ante
doenças pandêmicas ou mortes não é bolsonarismo. O personagem é menor que o
fenômeno. O personagem passará, mas o fenômeno poderá persistir com novos atores,
para o horror daqueles que desejam uma sociedade justa, humana e igualitária.
O fenômeno
incivilizatório que nos remete à barbárie não pode ser substantivado como
bolsonarismo, nem como fascismo. Embora fascismo tenha multiplicidade de
definições, todas estão associadas à historicidade da política europeia de 1919
a 1945. Tanto o fascismo italiano quanto sua vertente alemã, o nazismo, tinham
em comum serem um sistema autoritário de dominação caracterizado pelo monopólio
da representação política por meio de um partido único, de massa,
hierarquicamente organizado e com uma ideologia fundada no culto a um chefe, na
exaltação da coletividade nacional, no desprezo pelos direitos e garantias
individuais e fundamentais próprios do liberalismo, no ideal de colaboração
entre as classes sociais e na organização corporativa da sociedade. No fascismo,
em suas diversas expressões, era clara a tentativa de organização da sociedade
visando a uma socialização política planificada, com expansão imperialista. O
quadro no qual estamos inseridos não tem estas características. Não é
bolsonarismo, porque o personagem é pífio diante do fenômeno. Não é fascismo,
porque não tem suas características. Trata-se de ‘escatologia política’ ou
‘escatologismo político’.
Escatologia é termo
teológico sobre o fim do mundo e sobre o que se acredita possa ser o triste
destino de parte da humanidade. Mas também pode expressar, no campo da
biologia, o estudo científico sobre excrementos. Num ou noutro sentido, o termo
designa degenerescência.
Vivemos tempo
escatológico de exposição pública do que é bizarro, estranho, incomum ou
extravagante. A ignorância ou estultice, que antes envergonhava, hoje é exibida
com orgulho. O desprezo pela civilidade, que antes era escamoteado, hoje é
exposto como troféu. Além dos dois sentidos já conhecidos para escatologia,
podemos dizer que os novos tempos nos permite um terceiro sentido: ‘escatologia
política’.
Assim, ‘escatologia
política’ designa o fenômeno no qual estamos inseridos, com similar natureza a
tudo que expressa decomposição. Cabe-nos transformar o que se apresenta
deteriorado em fertilizante para a construção de um mundo fraterno com padrões
de sociabilidade, humanidade e institucionalidade, tal como o adubo que pode
ser assimilado pelas plantas para a produção de matéria viva.
Publicado originariamente
no jornal O DIA, em 29/11/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/11/7171541-joao-batista-damasceno-escatologia-politica-o-nome-do-fenomeno.html

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