“Remoções são realizadas à margem da lei, pois a ordem jurídica não as
autoriza, aproveitando-se da cegueira ou miopia dos órgãos encarregados de
garantir o império da justiça. Ainda que realocações sejam autorizadas
legalmente em casos necessários, não devem afastar a pessoa de suas
referências, da possibilidade de convívio com seus familiares e dos grupos com
os quais se relacione. Mas ao povo, toca-se. Nem gado, hoje, é tocado. Quando
necessário, é transportado com maior cuidado que o dispensado a trabalhadores.
Gado se guarda e se protege, pois tem valor econômico.
“Se há dinheiro para a Copa do Mundo, para obras faraônicas e para
empréstimos a fundo perdido a certos empresários, há de ter também para
assegurar direitos constitucionais, dentre os quais o de moradia.”
A ocupação da
Catedral Metropolitana pelos despejados da Favela da Telerj, em decorrência de
liminar deferida pelo Judiciário, expõe o calcanhar de Aquiles da política
habitacional em nosso estado. O desalijo sem prévio cadastramento dificulta a
implementação de política assistencial ou social. Despejados com truculência
foram para a porta da prefeitura, onde permaneceram aguardando providências em
seu proveito. Ao contrário de ajuda e solidariedade, receberam ameaças. Mães foram
ameaçadas de perder a guarda dos filhos porque estavam em convívio familiar
fora dos lares que não mais têm; sofreram a perturbação do sono noturno por
sirenes da Guarda Municipal; crianças e mulheres grávidas foram retiradas da
passarela do metrô, onde se protegiam da chuva durante a madrugada. Ao fim,
foram de novo expulsos da porta da prefeitura com violência conjunta da Guarda
Municipal e da Polícia Militar. Desrespeitou-se o preceito de que locais
públicos são próprios para ir, vir e ficar. Abrigando-se da truculência
estatal, foram para o único lugar onde, dizem, não sofreram violência: o pátio
privado da Catedral; impróprio refúgio, mas necessário diante do que
vivenciavam.
Os governantes
estão tranquilos com a atual situação. Tratam-na como se fosse uma questão de
fé a ser resolvida pela Arquidiocese. A questão é político-social e compete ao
poder público, que apenas oferece a truculência do seu aparato repressivo,
felizmente recusada pelo cardeal-arcebispo Dom Orani. Não é de hoje que
governantes despidos de concepção adequada de suas funções consideram que
problema social é caso de polícia.
Monteiro Lobato,
no artigo ‘Velha Praga’, em 1914, escreveu se referindo ao povo: “Não há
recurso legal contra ele. A única pena possível, barata, fácil e já
estabelecida como praxe, é ‘tocá-lo’. Curioso este preceito: ‘ao caboclo,
toca-se.’ Toca-se, como se toca um cachorro importuno, ou uma galinha que
vareja pela sala.”
Remoções são
realizadas à margem da lei, pois a ordem jurídica não as autoriza, aproveitando-se
da cegueira ou miopia dos órgãos encarregados de garantir o império da justiça.
Ainda que realocações sejam autorizadas legalmente em casos necessários, não
devem afastar a pessoa de suas referências, da possibilidade de convívio com
seus familiares e dos grupos com os quais se relacione. Mas ao povo, toca-se.
Nem gado, hoje, é tocado. Quando necessário, é transportado com maior cuidado
que o dispensado a trabalhadores. Gado se guarda e se protege, pois tem valor
econômico.
Se há dinheiro
para a Copa do Mundo, para obras faraônicas e para empréstimos a fundo perdido
a certos empresários, há de ter também para assegurar direitos constitucionais,
dentre os quais o de moradia.
Publicaado originariamente no
jornal O DIA, em 04/05/2014, pag. 14.
Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-05-03/joao-batista-damasceno.html
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