Todas as notas de um jurado que sambou o samba de uma das
escolas que ele avaliava foram invalidadas. Para a Liga das Escolas de Samba o
principal requisito exigido de um julgador é a imparcialidade. No Brasil
estávamos nos acostumando com práticas corruptivas no funcionamento
institucional a ponto de não percebermos vicioso o ajuste de magistrado com
membros do MP sobre testemunhas a arrolar, avisos sobre prazos e organização de
operações policiais.
A
violação abusiva de comunicação telefônica e divulgação por quem tinha o dever
de manter sigilo profissional, se a interceptação tivesse sido legal, foi
exemplo emblemático de que a lei não é para todos, porque não houve
responsabilização.
O
desrespeito à Constituição e ao ordenamento jurídico por quem tinha o dever de
lhe ser fiel e a ausência de consequência pelas violações aos direitos
fundamentais abriu a porteira para que os senhores da truculência se sentissem
autorizados ao pleno desrespeito ao Estado de Direito e à democracia. A Liga
das Escolas de Samba deu uma lição que deveria valer em todo o ano e em todas
as instituições: vale o que está escrito. A Constituição também deveria valer
pelo que nela contém.
Ulisses
Guimarães, na promulgação da Constituição em 05 de outubro de 1988, disse que:
“A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a
reforma. Quanto a ela, discordar sim! Divergir, sim! Descumprir, nunca!
Afrontá-la, jamais! Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o
caminho maldito: Rasgar a Constituição, trancar as portas do parlamento,
garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o
cemitério! Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o
estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua
honra. Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que
ela desgrace homens e nações, principalmente na América Latina”. Ulisses guiou
o povo para a liberdade e, tal como Moisés, seu corpo não foi encontrado.
Durante
a ditadura empresarial-militar o presidente nacional da OAB foi chamado de
interlocutor da sociedade civil com o governo. Tal interlocução atestava o
divórcio entre a sociedade civil e o Estado que deveria ser a expressão dela.
Neste cenário sombrio, enquanto o palhaço convoca golpe os donos do circo
contabilizam os lucros, tal como fizeram em tempos passados nos quais financiaram
grupos de repressão.
Neste
carnaval, não tivemos apenas uma lição sobre imparcialidade. Tivemos também
enredos exaltando a fraternidade e a cultura enquanto agentes do Estado exaltam
a truculência, a ignorância e a ditadura. A campeã no Rio com o enredo
"Viradouro de alma lavada" tratou do grupo das Ganhadeiras de Itapuã,
quinta geração de mulheres que lavavam roupa na Lagoa do Abaeté e faziam outros
serviços em Salvador em busca da compra de sua alforria.
A
Unidos da Tijuca homenageou Evando Santos, o pedreiro que montou o Centro
Cultural e Biblioteca Comunitária Tobias Barreto, no Largo do Bicão, e, com
doações, ajudou a criar bibliotecas comunitárias pelo Brasil. Num dos carros
alegóricos estava Francisco Olivar Vavá, um livreiro de rua que fica na saída
do Metrô da Carioca, e aos sábados na Praça 15, ajudando na difusão da cultura
do livro.
O
carnaval serviu para documentar o divórcio entre a sociedade e as instituições,
a distância entre a beleza da cultura popular e a ignorância truculenta que nos
governa, bem como o conflito inconciliável entre o mundo do trabalho e o mundo
do capital.
Publicado originariamente no jornal O DIA, na edição de 29/02/2020, pag. 8. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2020/02/5875053-joao-batista-damasceno--os-palhacos-e-os-donos-do-circo.html
Ressalva: Império da Tijuca é a escola de samba que homenageou o "homem livro" e de quebra o nosso amigo Olivar.
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