Eu conheço profundamente a Baixada
Fluminense. Conheço quase todos os bairros e com certeza todas as principais vias de
locomoção, de Magé a Itaguaí, incluindo parte da Zona Oeste e Vila Militar na
Cidade do Rio de Janeiro.
Atuei dezenas de anos na Baixada
Fluminense, onde fui juiz por quase 18 anos do início de 1995 ao final de 2012.
De 2006 a 2008 fui juiz da Zona Eleitoral cujo cartório ficava há poucos metros
do lugar dos assassinatos narrados na matéria cujo link se encontra abaixo.
Sempre soube que os 'matadores' têm
salários pagos por empresários, cargos comissionados em prefeituras ou
contratos de trabalho com órgãos públicos. Os 'matadores', na verdade, são
agentes paraestatais; é a mais perversa PPP/Parceria-Público-Privada. Se não
recebem diretamente de órgãos públicos recebem de empresários que contratam com
o poder público. Arma, munição e veículos custam dinheiro e alguém paga. Neste
momento estão assanhados. Mas, sempre tiveram atuação desde que foram instituídos os primeiros grupos com autorização para matar. Depois de institucionalizaram e ganharam novas formas e nomes.
Ao assumir a titularidade da Zona
Eleitoral da Cerâmica (bairro da execução descrita na matéria abaixo), em 2006,
perguntei ao chefe do cartório se tínhamos funcionários ou bens cedidos da prefeitura ou de empresários, colocados à disposição da justiça
eleitoral. Ainda que fosse para o serviço seria inadequado para uma justiça encarregada de realizar o pleito eleitoral municipal. Sempre achei estranho que juízes, encarregados de julgar atos do poder público ou de empresários. Mas, alguns se locomovem em veículos lhes cedido para uso pessoal. Tinha e ainda os tem. Disse ao chefe de cartório que se tivéssemos iríamos devolver. A resposta foi
negativa. Não tínhamos!
Recebi posteriormente uma informação de
que 'matadores' estavam atuando com um veículo Gol branco da prefeitura e que estariam
promovendo execuções nas madrugadas com o veículo oficial.
Até 2007, quando a polícia promoveu as
execuções do Alemão e Coréia, à luz do dia e com filmagem, as execuções e
chacinas eram feitas à noite. As chacinas do Alemão e Coréia são um divisor de
águas. Em razão do acompanhamento das investigações a Comissão de Direitos
Humanos da OAB/RJ, composta dentre outros pelo advogado, juiz de direito aposentado pelo AI-1 e defensor dos direitos
humanos, integrante da Associação Juízes para a
Democracia/AJD, João Luiz Duboc Pinaud, foi destituída. Parte da diretoria da
OAB/RJ vivia um momento de namoro com o governo do Estado do Rio de Janeiro,
visando ao pleito eleitoral de 2008.
A ciência de que 'matadores' estavam
atuando com veículo oficial me impressionou. Não era fato submetido à
minha competência funcional. Limitei-me às comunicações que poderia fazer.
Posteriormente o juiz Wanderley Rêgoi pediu-me que
cedesse para a Zona Eleitoral que titularizava a funcionária municipal que
trabalhava comigo. Disse que não tinha bens ou pessoas cedidas pela
municipalidade ou por empresários. Ele me disse que tinha sim e que se eu não
quisesse ceder que não o fizesse. Mas, que eu tinha. Em seguida me deu o nome
da funcionária e sua matrícula. Pedi prazo para apurar.
Chamei o chefe do cartório ao meu
gabinete. Voltei a indagar se tínhamos bens ou funcionários da prefeitura à
disposição da Zona Eleitoral. Ele voltou a afirmar que não tínhamos. Pedi que
lavrasse uma certidão da inexistência. Ele o fez. Em seguida narrei o que sabia
e perguntei pela funcionária. Ele ficou amarelo.
Cientificado de que eu sabia da
funcionária, seu nome e matrícula ele disse que a deixara em casa, sem
trabalhar, pois se eu tomasse ciência dela eu a devolveria para a prefeitura.
Em seguida perguntei se tínhamos mais
alguém à disposição. Ele disse que sim: um motorista. Perguntei que carro ele
dirigia e o chefe do cartório me disse que era um Gol branco colocado pela
prefeitura à disposição do cartório eleitoral há muitos anos. Fiquei gelado!
Determinei que certificasse, novamente,
que não tínhamos outro funcionário ou bem, além da funcionária, do motorista e
do carro.
Pedi que ligasse para a funcionária e
para o motorista para que viessem ao meu gabinete.
Quando o veículo chegou, analisei seus
documentos, chassis, números nos vidros, placa e em seguida busquei informação
sobre a placa do Gol branco que estava sendo usando em execuções noturnas. Ufa!
A placa era outra. Respirei aliviado, mesmo sabendo que o outro veículo Gol
continuava a atuar em outras mãos. Mas, não eram os funcionários que trabalhavam
comigo.
Restitui os funcionários e o veículo à
municipalidade, instaurei sindicância contra o chefe do cartório e fiz
comunicação ao TRE/RJ daquela ocorrência. Igualmente comuniquei ao Ministério
Público sobre o crime de falsidade contido na certidão lavrada pelo chefe de
cartório.
Uma juíza me procurou dizendo que um
ex-presidente do TRE/RJ queria conversar comigo sobre o “mal entendido” do
chefe do cartório. Não me dispus a recebê-lo e pedi à 'colega' que não me
trouxesse recados. Sabia quem fora o seu motorista do desembargador (ex-policial) e sua filha,
nomeada para o Cartório de Notas de Suruí pelo Corregedor Geral de Justiça,
quando eu era juiz em Magé em 1996.
Jamais tive ciência de qualquer
providência tomada pelo Ministério Público em razão do crime de falsidade
praticado pelo chefe de cartório da justiça eleitoral.
O TRE/RJ considerou o fato medianamente
relevante e o sancionou, para mim, simbolicamente.
Nas eleições de 2012 eu era juiz
eleitoral no bairro ao lado: Posse, onde 4
policiais militares foram protagonistas da maior chacina da história do local.
Na época, eles estavam à paisana quando saíram de um bar, ao lado da Funerária
São Salvador, com a missão de tirar a vida do maior número de pessoas que
encontrassem pela frente. Trabalhadores diversos tiveram suas vidas
terrivelmente arrancadas por esses agentes do Estado. O resultado foi um total
de 29 mortos, 4 condenações e 1 pergunta:
Até quando? Mas, esta história das 29 mortes, da funerária São Salvador e
do desembargador, ex-presidente do TRE/RJ que queria falar comigo, será objeto
de outra crônica.
Da mesma forma prometo outra crônica
sobre o episódio da destituição da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ que estava apurando as chacinas do Alemão e da Coréia em 2007, por pessoas que hoje
posam de boa gente defensora da dignidade da pessoa humana. Desde que o Capitão
Zamith instalou os seus na Baixada Fluminense, as suas práticas não se
alteraram. Na Baixada Fluminense o AI-5 não foi revogado, nem os órgãos de
repressão desmantelados.
Em data recente uma ilustre
desembargadora federal proferiu voto no qual narrava o custeio da subsistência
de um militar que atuara na “Casa da Morte”, em Petrópolis, por empresário de
transporte em Nova Iguaçu. Isto também vale uma crônica para estabelecimento
dos elos que posso comprovar em decorrência de minha atuação consciente ao
longo do período que – de um lugar privilegiado – via suas movimentações.
Muitos juízes atuam e deixam de atuar
nas comarcas da Baixada Fluminense, passam pelas comarcas, e não conhecem as relações que nelas se
estabelecem. São juízes do que escrevem para eles. Não têm sequer possibilidade
de aquilatar os fatos que lhes narram.
Em cada dia trabalhado na Baixada
Fluminense eu me inspirava no poeta Thiago de Mello: “Faz escuro mas eu canto”.
Sou discípulo de Dom Adriano Hipólito e de Dom Mauro Morelli.
"Faz escuro mas eu canto,
porque a manhã vai chegar!"
P.S1.: A moradora que registrou a execução corre “risco de vida” (expressão usada por Machado de Assis).
P.S2.: A matéria contida no link abaixo expõe o vídeo gravado pela moradora. As cenas são fortes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário