Consumado o golpe empresarial-militar de 1964 os juízes no Brasil receberam pressão de setores da imprensa e do próprio Judiciário que os conclamavam a interpretar as leis de acordo com a vontade do regime. Mas juízes têm as garantias formais da inamovibilidade, vitaliciedade e irredutibilidade de seus vencimentos a fim de que possam exercer suas funções com independência, sem subordinação a interesses internos ou externos.
A independência judicial, com liberdade de interpretar as leis e aplicá-las adequadamente, bem como formular juízos sobre provas produzidas, não é um privilégio deferido aos juízes. Ser independente é um dever funcional dos juízes. É um atributo para o cargo. Sem independência funcional a magistratura perde a sua razão de existir, pois se mostraria incapaz de garantia dos direitos daqueles que são oprimidos, seja pelo poder econômico ou pelo poder político.
No primeiro ano do regime
empresarial-militar a independência judicial foi testada por aqueles que não
queriam cumprir suas decisões. O presidente do STF ameaçou entregar as chaves à
sentinela de plantão se ordem de habeas corpus não fosse cumprida. Em 1967 foi
editada uma nova Constituição. Mesmo com a feição do regime que se instituíra,
era um marco que deveria ser obedecido por aqueles que a editaram, mas que
insistiam em atuar à sua margem.
A fim de fugir aos marcos legais, em
dezembro de 1968 foi editado o Ato Institucional nº 5 (AI-5) que suprimiu o
direito ao habeas corpus, instituiu o arbítrio e possibilitou a cassação de
juízes que não fossem colaboracionistas. Já nos primeiros dias do mês de
janeiro de 1969 três ministros do STF foram cassados: Victor Nunes Leal, Hermes
de Lima e Evandro Lins e Silva. Os ministros foram afastados por seus apegos à
legalidade constitucional e por suas formas de atuação independente.
Preparando processo para a abertura política
e devolução do poder dos juízes de dizer do Direito, mas sob controle do
regime, o general-presidente Ernesto Geisel fechou o Congresso em abril de 1977
e reformou, por decreto, a Constituição, notadamente no que se referia ao Poder
Judiciário. Mas não foi só. No último dia do seu mandato, em 14/03/1979, editou
a Lei Complementar 35, pela qual ampliou o poder disciplinar sobre a atuação
dos juízes.
Vivemos tempos sombrios. A magistratura está
sob ataque de formas diversas. Fogos de artifício sobre o STF, ataques
midiáticos, representações, tentativas de impeachment de ministros do STF em
decorrência do exercício de suas funções etc. Por diversos modos tenta-se minar
a independência judicial. O que está em questão são as prerrogativas da
magistratura. O acossamento a uns pode ser um sinal aos demais magistrados que
insistam no exercício do dever de independência funcional. O enfraquecimento da
magistratura independente e comprometida com a realização substancial da
justiça implica no próprio enfraquecimento da democracia e dos direitos
próprios de uma sociedade cidadã.
O mundo passa por momento no qual já não se
disfarçam a subtração de direitos e a apropriação do que é público. As riquezas
se concentram, a fome e a miséria se alastram. As reformas que se fazem já não
o são para garantir os direitos fundamentais do mundo do trabalho, mas para
reduzi-los em proveito de uma ordem que não haverá de semear senão a desordem.
Muitos dos ataques que se fazem à
magistratura e aos magistrados têm sido resultado do desempenho de suas
funções. Aqueles que passarem sem arranhões pela tormenta que nos atinge
certamente serão perguntados no futuro se foram omissos ou se estavam cumpliciados
com os algozes das liberdades e dos direitos ou se apenas tiveram sorte de não
serem atingidos.
Publicado
originariamente no jornal O DIA em 25/09/2021. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2021/09/6242080-joao-batista-damasceno-juizes-democracia-e-cidadania-em-tempos-sombrios.html
Texto excelente.
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