No último dia 7, o Código Penal completou 81 anos. No capítulo dos crimes contra a honra trata de calúnia, difamação e injúria. Calúnia é a falsa imputação de crime a uma pessoa. Difamação é a imputação falsa de fato, não criminoso, ofensivo à honra da vítima, e injúria é a ofensa à honra de uma pessoa. Mesmo o código editado durante o Estado Novo dispõe, em seu Art. 142, que não constituem injúria ou difamação punível a opinião desfavorável da crítica literária, artística ou científica. Trata-se, portanto, de conduta lícita.
Apesar da expressa disposição de lei sobre a
licitude da crítica literária, artística ou científica, artistas vivem sendo
processados por suas obras. O Código Penal Italiano editado pelos fascistas
dizia que a arte não seria criminalizada. Mas não faltaram juízes, arrogando-se
o papel de críticos de arte, definindo se determinadas obras tinham valor
artístico ou não, a fim de isentar ou punir os artistas. Previamente os juízes
definiam se estavam diante de uma obra de arte ou não e, desprezando o valor
artístico de algumas, puniam os autores. Os ‘críticos de arte togados’
isentavam de pena apenas aqueles cujas obras reconheciam como dignas de valor
artístico.
A Constituição da República de 1988 dispõe
que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, cientifica e de
comunicação, independentemente de censura ou licença. Inexiste, e não pode
existir, um Departamento de Censura, como existia, na Polícia Federal, durante
a ditadura empresarial-militar. Mas não faltam recursos ao poder judiciário
requerendo censura, sob o fundamento da defesa de direitos de quem se sente
incomodado com obra de arte ou literária.
Uma charge do cartunista Nando Motta, no
presente momento, é objeto de uma ação movida contra o artista pelo empresário
Luciano Hang. A charge alvo da censura compara o dono da Havan a personagens de
filmes de terror, por seu comportamento durante a pandemia da covid-19. Nando
Motta é um chargista que integra o coletivo Jornalistas pela Democracia e como
artista conectado com a realidade retrata criticamente, em seus traços, as
ocorrências do cotidiano. Arte é uma forma especial de manifestação do
pensamento e dos sentimentos. Desenhos para agradar aos poderosos não são arte,
mas publicidade.
A reação ao processo do empresário contra o
artista veio de forma coletiva e através do mesmo processo, qual seja, a arte.
Tal como ocorreu com o chargista Aroeira, em 2020, quando foi enquadrado na Lei
de Segurança Nacional por uma charge que associava o presidente Jair Bolsonaro
a uma suástica, símbolo do nazismo, diversos artistas continuaram a publicar
charges inspiradas na obra original. Assim, uma charge que ensejou processo
contra um artista passou a ser motivo para charges de outros artistas, que tomaram
a obra processada como motivo para as suas expressões.
Inspirados na charge original, objeto da
censura, artistas diversos fizeram mais de 70 reproduções, num movimento que
ficou conhecido como “charge continuada”. A participação de diversos artistas
renomados, como Laerte, Miguel Paiva, Nico e o próprio Aroeira é uma reação da
sociedade que não aceita o retorno ao tempo no qual as obras artísticas,
literárias e científicas eram censuradas por órgãos policiais cuja existência
foi proibida pela Constituição Cidadã de 1988, ainda que hoje tentem utilizar o
Poder Judiciário contra as liberdades.
As liberdades estão em risco no Brasil. Por
uma frase, o jornalista João Paulo Cuenca foi alvo de grupo que lhe moveu ações
em localidades diversas do país, dificultando sua defesa. O mesmo já acontecera
com a jornalista Elvira Lobato, da Folha de S. Paulo, e com o jornalista
Cláudio Humberto e o jornal O DIA. Até parlamentares, por seus posicionamentos
ideológicos, têm sido alvo de ações por meio de indevido recurso ao Judiciário.
O Judiciário tem sido usado para fim que não o da garantia das liberdades.
Lawfare, assédio judicial e demandas opressivas têm sido comuns. Isto ensejou
que o deputado Paulo Ramos propusesse projeto de lei, já aprovado na Câmara dos
Deputados, possibilitando a reunião de ações quando propostas em lugares
distintos para dificultar a defesa do demandado.
O ano se encerra. Um novo ano se iniciará e
todas estas ocorrências poderão permanecer se não tivermos comportamentos
diversos dos que tivemos até hoje. Não basta que mude o ano. Precisamos mudar
as atitudes. Que o ano de 2022 nos propicie as mudanças de comportamentos
necessárias para que vivamos num Brasil justo, humano, solidário e livre.
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 04/01/2022. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2021/12/6304898-joao-batista-damasceno-censura-liberdade-de-expressao-e-poder-judiciario.html
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