sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

O transporte de trabalhadores e de animais

Um trem do ramal Guapimirim descarrilou, na tarde desta quinta-feira (20), no bairro de Parque Estrela, em Magé. Segundo a empresa concessionária do serviço ferroviário de transporte de passageiros, Supervia, o incidente foi causado pela alta temperatura registrada na via férrea, que chegou a 71°C, dilatando os trilhos. Em nota a Supervia informou que “não houve feridos no descarrilamento ocorrido por volta das 14h40 desta terça-feira (20/02) com um trem do ramal Guapimirim, que fazia o trajeto Saracuruna x Guapimirim, nas proximidades da estação Parque Estrela. A ocorrência foi causada pela dilatação dos trilhos devido à alta temperatura registrada na via férrea, que chegou a 71°C, provocando a flambagem dos trilhos. Todos os passageiros que estavam a bordo foram retirados com segurança. Equipes da SuperVia estão no local para realizar os reparos necessários e normalizar a circulação."

Em Magé foi instalada a primeira ferrovia do Brasil. Construída pelo Barão de Mauá partia da Praia da Guia de Pacobaíba (hoje Praia de Mauá), com destino a Petrópolis. Foi inaugurada em 30 de abril de 1854. Tal trecho ferroviário é marco da história ferroviária do Brasil e era um meio de transporte intermodal entre o Paço Imperial da Praça XV e os aposentos petropolitanos de D. Pedro II. Saía-se da Praça XV de barco, desembarcava-se na estação de Mauá onde se entrava no trem e terminava-se a viagem no alto da Serra de Petrópolis no lombo de burro.

Fui Juiz de Direito em Magé do início de 1995 ao ano de 1997, inclusive. Presidi as eleições municipais para prefeito de 1996 daquela cidade. Apesar do pouco tempo que lá trabalhei minha memória registra uma eternidade. Além dos assassinatos de políticos, exercício do mando local como nunca vira em outro lugar e dos quais somente tinha referência tão forte na literatura especializada, desorganização dos serviços públicos e patrimonialismo expresso pela confusão entre o público e o privado, a mim impressionava a qualidade dos serviços de transporte ofertados aos trabalhadores em seus deslocamentos para o ganho do pão de cada dia.

O serviço, naquele tempo, não era prestado pela SuperVia. No Rio de Janeiro o transporte ferroviário de passageiros já foi prestado com diferentes nomes. Desde a inauguração da Estrada de Ferro Barão de Mauá, em 1854, tivemos a Estrada de Ferro D. Pedro II, homenagem ao Imperador, a Estrada de Ferro Central do Brasil, nome dado ante a Proclamação da República, a RFFSA (Rede Ferroviária Federal S/A), a CBTU (Companhia Brasileira de Trens Urbanos) e Flumitrens (Companhia Fluminense de Trens Urbanos).

Atualmente, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, o serviço é prestado pela empresa que administra o Ramal de Guapimirim, SuperVia. Num daqueles anos em que fui juiz em Magé, numa audiência de um caso envolvendo acidente ferroviário, diante das fotografias dos trens transitando com portas abertas, excesso de passageiros, gente pendurada por todos os lados, inclusive do lado de fora da janela, e até no teto da composição, cometi a imprudência de dizer ao advogado da empresa que as fotos constantes dos autos mais pareciam dos trens da Índia. Ele demonstrando sua indignação com a indiscrição do juiz, retrucou: 

- Não sei. Nunca estive na Índia.

A desativação das linhas férreas no Governo JK para estimular o transporte por veículos automotores e a expansão das indústrias de automóveis e caminhões, aliada à urbanização do país, transformou o transporte de passageiros numa barafunda. Naquele período de industrialização a população brasileira que era majoritariamente rural transformou-se em majoritariamente urbana. A inversão sem planejamento e sem a criação de condições para acolher dignamente todos os que migraram dos campos para as cidades propiciou o caos urbano no qual estamos mergulhados: precariedade dos transportes, loteamentos irregulares e sem instalação de serviços públicos adequados, ocupação desordenada do solo urbano com favelização das cidades, além de outras mazelas que se ampliam.

O que aconteceu no caminho de ferro do ramal de Guapimirim não é novidade.

A imagem de estradas de ferro contorcidas após incêndios é exemplo clássico dos livros didáticos de física para demonstrar aos alunos que os corpos expandem com o calor e que contraem com o frio. As estradas de ferro dos trens de alta velocidade na China não se sujeitam a tais acidentes, pois a moderna tecnologia permite que os trilhos expandam para os lados, sem aumentarem suas extensões. Os trilhos engordam, mas não crescem.

A falta de investimento em tudo o que beneficia os componentes do mundo do trabalho é a causa de tais desastres. Felizmente desta vez foi comunicado que não houve mortos. Ao longo de mais de 30 anos como magistrado na justiça fluminense já julguei milhares de causas envolvendo acidentes no transporte rodoviário e ferroviário de pessoas. Julguei poucas causas envolvendo transporte de carga viva, valores ou mercadorias. Numa destas, o caso versava sobre a falta de cuidado no transporte de uns cavalos de raça. Um deles morreu e a imputação foi de que a transportadora não teve o cuidado de parar o caminhão de duas em duas horas, alimentar e hidratar os animais e esperar que repousassem para evitar o estresse da viagem. O fato ficou comprovado e condenei a transportadora. E nunca esqueci que os cuidados para transporte de mercadorias, valores e carga viva são muito maiores que aqueles demandados para transporte de gente. Afinal, quem anda em transporte público é pobre e a estes está reservado tão somente o reino dos céus. O gozo no reino da terra é para outros.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 22/02/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/02/7008833-joao-batista-damasceno-o-transporte-de-trabalhadores-e-de-animais.html


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