O assassinato da
juíza Patrícia Lourival Acioli é a ponta do iceberg do poder paralelo
construído pela política de segurança no Estado do Rio de Janeiro. O perigo de
se criar cachorros bravos e deixá-los soltos para atacar os indesejáveis aos
seus donos é que depois não mais distinguem a quem estão autorizados morder.
A Juíza Patrícia Acioli se destacava no exercício da magistratura por sua
coragem e desconsiderações pessoais na hora de decidir. Os embusteiros do
poder, despidos de poder real, costumam maltratar os fracos e se acovardam
diante de quem consideram fortes e poderosos. Ela, com seu sorriso doce, não
deixava transparecer sua enorme coragem na afirmação da ordem jurídica, fosse
na defesa dos injustiçados ou na
condenação dos culpados, pouco importando suas posições sociais.
Em 1997 ela prolatou decisão na qual determinava prazo para que o Governador
Marcelo Alencar reformasse ou desativasse instalações de internação de
adolescentes na Ilha do Governador, onde se entulhavam menores em conflito com
a lei. Atendendo aos interesses do governo o então presidente do tribunal,
fundado em dispositivo de discutível constitucionalidade, suspendeu a decisão
da juíza e a afastou do Juizado da Infância e Juventude para o qual estava
designada. Juntos, tomamos posse na entrância especial, último patamar da
carreira na primeira instância no Rio de Janeiro, no dia 01 de junho de 1999.
O poder nem sempre fala. Mas emite sinais. A retirada da escolta da Juíza
Patrícia Acioli pela direção do tribunal pode ter sido sinal suficiente para os
interessados na sua morte de que ela não contava com apoio institucional para o
trabalho que desempenhava no Tribunal do Júri de São Gonçalo, competente para
processamento e julgamento de grupos de extermínio e milicianos. E pode ter
encorajado a audácia de outros.
O Tribunal de Justiça, durante a presidência do Desembargador Antônio Carlos
Amorim, constituiu a Guarda Judiciária, que posteriormente foi desativada e
seus 287 agentes e inspetores se encontram desviados de função. A segurança
institucional no Poder Judiciário fluminense foi entregue à Polícia Militar,
cujos agentes não se encontram subordinados hierarquicamente ou
disciplinarmente ao judiciário, mas aos seus comandos.
Em data recente relatei em coluna no jornal O Dia a decisão do comandante do
13º BPM que absolveu disciplinarmente policiais militares, apesar da filmagem
pelo sistema de monitoramento, que espancaram mulher que procurara entrar no
fórum durante um plantão noturno e a impediram que tivesse atendimento. Nenhuma
providência teria sido tomada contra eles não fosse a ciência pessoal do fato
pelo juiz plantonista ao então presidente do tribunal, Desembargador Luiz
Zveiter, que tomou a decisão possível de retorno deles à corporação.
A entrega da segurança judiciária à Polícia Militar, em contraposição aos
princípios que orientaram a criação da Guarda Judiciária, pode não se
apresentar a mais apropriada forma de autonomia funcional. Mas pavimenta o
caminho para as relações pessoais entre os exercentes de funções nos distintos
poderes.
A segurança no Tribunal de Justiça está entregue à Polícia Militar e um dos
mais importantes órgãos do tribunal é a Diretoria Geral de Segurança
Institucional (DGSEI), cuja atividade não pode se limitar ao recolhimento de
computadores de juízes que quiserem trabalhar além do horário de expediente na
parte externa do Fórum, como ocorreu na presidência do Desembargador Murta
Ribeiro. Mais que a segurança pessoal e patrimonial, o trabalho de tal
diretoria há de compreender serviços de inteligência ou conexão com os órgãos
de inteligência do Estado para evitar fatos desta natureza.
Desembargadores relatam que presenciaram a Juíza Patrícia Acioli solicitar
pessoalmente segurança ao presidente do tribunal. Em data recente ofícios de
outro juiz, endereçado e reiterado, ao atual presidente do tribunal solicitando
segurança sequer mereceu resposta. A DGSEI diz já haver apreciado a questão,
sem revelar o conteúdo de sua manifestação, e remetido á presidência. A
presidência do tribunal não respondeu ao juiz. A segurança dos exercentes de
poder de Estado há de ser tratada como segurança do Estado, em proveito da
sociedade.
A morte de qualquer pessoa diminui a humanidade. Os vínculos de solidariedade
social que constroem a civilização desautorizaram o assassinato de qualquer
pessoa. Mas, o assassinato de um magistrado traz o simbolismo de que as
próprias instituições não estão em condições de regular funcionamento. Quando o
juiz tem medo, ninguém
pode dormir tranqüilo.
A desorganização dos serviços públicos foi meio utilizado pelos coronéis para
instituir poder pessoal no Brasil rural de outrora. A destruição das
prerrogativas da magistratura e desconsideração à sua importância para a
sociedade democrática é meio de destruir os direitos que caracterizam uma
sociedade cidadã.
A concepção de uma justiça norteada por metas quantitativas tem equiparado a
atividade de julgar com a produção em série das fábricas de parafusos ou de
sabonetes, sem consideração às peculiaridades de cada caso. Neste contexto um
juiz deixa de ser tratado como magistrado, membro do Estado encarregado da
missão de dizer o Direito, e passa a ser tratado como gestor, nome moderno de
capataz, porque subserviente a interesses dominantes, nem sempre republicanos.
O momento se apresenta propício para a magistratura reafirmar o Estado de
Direito e, agindo com a sobriedade institucional que dela se espera, reafirmar
os valores próprios da sociedade democrática; a defesa da independência do
Poder Judiciário não só perante os demais poderes como também perante grupos de
qualquer natureza, internos ou externos à magistratura; a busca da
democratização da magistratura, tanto no ingresso quanto nas condições de
exercício funcional; o fortalecimento das prerrogativas dos juízes em proveito
da cidadania, considerando-se a justiça como autêntico serviço público que,
respondendo ao princípio da transparência, permita aos cidadãos o controle de
seu funcionamento.
Mas, fundamental será que a magistratura busque, a partir deste episódio, a
promoção e a defesa dos princípios da democracia pluralista e a difusão da
cultura jurídica democrática e dos valores que caracterizam uma sociedade como
republicana.
João Batista Damasceno
Publicado
originariamente no blog Vi o mundo, 13 de agosto de 2011 e posteriormente em http://www.oabrj.org.br/artigo/2663-juizes-com-medo-sociedade-intranquila--joao-batista-damasceno
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