Os que atentaram contra a democracia em 1964
invocam a lei da anistia quando lembrados das atrocidades cometidas
durante o regime empresarial-militar. Mas persiste na sociedade brasileira a
aspiração por memória, verdade e justiça. Todas as instituições que
colaboraram com o arbítrio naquele período devem prestar contas.
Quando da instituição da Comissão Nacional da
Verdade, a Associação Juízes para a Democracia/AJD editou nota apoiando-a.
A reação de alguns magistrados foi escandalosa. Claro! Tratava-se de
descendentes daqueles que violentaram as instituições e que mudaram o rumo
de nossa história até a beira do abismo no qual nos encontramos. Os
‘filhotes da ditadura’ estão em várias instituições jurídicas, mas não
para realizar substancialmente a justiça.
A afronta ao judiciário e redução da força do
Direito foi o caminho trilhado pela tigrada para estabelecimento do
direito da força nos ‘Anos de Chumbo’. No judiciário tivemos magistrados
do porte de Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva,
ministros do STF cassados pela ditadura. Na advocacia tivemos defensores dos
direitos humanos como Modesto da Silve, Sobral Pinto e Heleno Cláudio
Fragoso, todos presos ou sequestrados, unicamente por defenderem as
liberdades. Mas nem todos tinham o mesmo porte.
De Modesto da Silveira ouvi relato de caso de
interrupção de interrogatório na Justiça Militar para que agentes da repressão
pudessem ‘conversar’ com o preso em sala separada contígua à sala de
audiência. Aqueles juízes militares não botaram a mão na massa para
torturar a pessoa que deveria ser julgada com imparcialidade. Mas, admitiram a
interrupção do interrogatório para a ‘conversa reservada com o cão’ e, em
seguida, prosseguirem com o ato judicial.
Não tenho preconceito contra as Forças Armadas.
Afinal, foi a instituição que mais sofreu com o arbítrio. O judiciário
teve algumas centenas de membros afastados, incluindo cinco ministros do
STF (três por explícito ato de força datado de 16/01/1969 e dois por
solidariedade àqueles), mas as Forças Armadas tiveram mais de 20.000
desligamentos. Com a ascensão da ‘Linha Dura’, até os Tenentistas foram
‘cancelados’. Hoje, temos o predomínio dos descendentes da ‘Linha Dura’
ala militar que transformou quarteis em centros de tortura e laboratório
do ‘Terrorismo de Estado’ como o praticado pelo sargento Rosário e pelo
Capitão Machado no Caso Riocentro.
Basta falar em memória, justiça e verdade que os cúmplices da tirania
se ouriçam e se apegam à lei da anistia. A anistia não recolocou a tigrada
em seu lugar, pois não desmantou o aparato repressivo que durante
a Constituinte ameaçava parlamentares e hoje volta a fazê-lo. Hitler,
ao invadir a Tchecoslováquia em 1938 ironizou a força do Direito e,
explicitamente, falou do direito da força, perguntando sobre quem se lembrava
do massacre dos armênios, genocídio praticado pelo Império Turco-Otomano
no início do século do século XX. Não tivessem os aliados dissolvido as
Forças Armadas nazistas, instalado o Tribunal de Nuremberg e editado as
leis humanitárias que se seguiram, hoje, talvez, não lembrássemos do
holocausto nazista e o próprio genocídio dos armênios poderia ter sido
relegado ao esquecimento.
A transição para a democracia no Brasil se
completará quando extinguirmos a justiça militar, cujo funcionamento não
se justifica em tempo de paz; colocarmos os militares e suas pensionistas
no regime comum da previdência social, no qual já estão todos os demais agentes
públicos; alocarmos os recursos do orçamento militar em área de ciência
e tecnologia – nuclear e hidrográfica na Marinha - e engenharia no
Exército; adotarmos predeterminação pela sociedade civil dos gastos militares; suprimirmos
o papel repressivo ao povo pelas Forças Armadas; redefinirmos os
currículos das escolas militares para possibilitar formação para a
civilidade e afastamento da tacanha concepção ideológica da oficialidade;
e promovermos revisão da lei da anistia. Sem estes passos a parcela do
estamento militar beneficiária das ‘boquinhas’ vai continuar acreditando
que guerra contemporânea ainda se faz com invasão física de fronteira e se
achando no direito de tutelar a sociedade e suas instituições com exigência
de sinecuras, às vezes à mão armada.
Publicado originariamente no jornal O DIA, em
17/07/2021. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2021/07/6190559-joao-batista-damasceno-a-vergonha-armada-de-militares-falastroes.html
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