O
Ministério Público fluminense solicitou peritos paulistas para esclarecer a
mais letal operação da Core, órgão da Polícia Civil, que resultou em 28 mortes
no Jacarezinho. Os órgãos de perícia no Rio de Janeiro são subordinados à
polícia. Em São Paulo a Superintendência da Polícia Técnico-Científica é órgão
autônomo e independente. O Estado de São Paulo designou profissionais de
balística, biologia, bioquímica, física e química para analisar as roupas e
corpos das vítimas e foram produzidos de 95 laudos.
Os laudos
permitiram o pedido de arquivamento de quatro dos 12 inquéritos instaurados.
Mas um deles reforçou as suspeitas do Ministério Público de que houve execução
de pessoa que estava encurralada e desarmada.
A Corte
Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil no caso das chacinas da
favela Nova Brasília, de 1994 e 1995, e recomendou que sejam independentes os
órgãos de perícia técnica. Eu atuei perante a Corte Interamericana no caso
julgado e busquei explicar como funcionam os órgãos de perícia no Brasil. Citei
a falta de independência e narrei até mesmo o caso de um promotor do júri em
Nova Iguaçu que era sócio do comandante local da PM numa distribuidora de
bebidas.
O promotor
que pediu auxílio dos peritos paulistas fundamentou sua solicitação na falta de
independência dos órgãos fluminenses de perícia. Desponta no horizonte membros
do MP preocupados com a política de extermínio de pretos e pobres no Rio de
Janeiro, diversamente de períodos passados em que membros da instituição se
associavam a policiais.
O promotor
do caso aponta que um laudo complementar do local do crime, produzido pela
perícia fluminense, foi mal feito e visava apenas a tentar desconstituir a
opinião do Ministério Público que via indícios de homicídio. Tratou-se, segundo
o promotor, de um inquérito defensivo, para defender os autores do crime. Para
apurar o que de fato aconteceu é importante que a perícia seja independente,
disse o promotor.
O Rio de
Janeiro é um dos oito estados onde a perícia ainda é subordinada à própria
polícia. É uma anomalia institucional ver o órgão subordinado e controlado
investigando o órgão superior e controlador. No Rio de Janeiro, o perito de
local da Delegacia de Homicídios é lotado na delegacia, subordinado ao
delegado. Somente no Rio de Janeiro e no Ceará acontece esta subordinação do
perito ao delegado.
No Estado
de Santa Catarina, em 2005, foi estruturado o Instituto Geral de Perícias (IGP),
com autonomia funcional e administrativa, vinculado diretamente à Secretaria de
Segurança Pública e composto pelo Instituto de Análises Forenses (IAF), pelo
Instituto de Criminalística (IC), pelo Instituto de Identificação Civil e
Criminal (II) e pelo Instituto Médico-Legal (IML), com Academia de Perícia
(Acape) e Corregedoria próprias. A estrutura organizacional e modelo de gestão
foram constituídas de diretorias autônomas, não subordinadas à polícia. No ano
passado, o Instituto Geral de Perícias (IGP) foi transformado em Polícia
Científica. Assim, ao lado da Polícia Militar e Polícia Civil aquela unidade da
federação tem uma polícia destinada a perícias.
A perícia
forense é fundamental para a elucidação de uma ocorrência. Os falsos laudos
impedem o devido processo legal. O problema é histórico. O ex-médico-legista,
Harry Shibata, cujo nome consta diversas vezes no relatório dos mortos e
desaparecidos políticos a partir de 1964, é acusado de assinar falsos laudos
necroscópicos de presos políticos assassinados pela ditadura
empresarial-militar. Em sessão da Comissão da Verdade no Rio de Janeiro, Lígia
Jobim, filha do embaixador José Jobim, discutiu com o perito fluminense Roberto
Blanco, porque o laudo elaborado por ele foi usado para reforçar a falsa versão
de suicídio pelo diplomata. Em tempos passados uma perita fluminense levantou a
suspeita de que um laudo elaborado por uma perita de voz a serviço do
Ministério Público poderia conter falsidade.
Sem
autonomia administrativa e independência funcional os laudos periciais podem
ser produzidos dissociados da realidade. Isto é ruim para um processo
específico, mas o pior efeito é retirar a credibilidade e legitimidade do
sistema. Uma Comissão da Verdade dos Autos de Resistência no Rio de Janeiro
pode apontar os problemas relacionados à perícia técnica e o mal funcionamento
das instituições do sistema de Justiça, bem como lançar luzes sobre o caminho a
trilhar.
Publicado
originariamente no jornal O DIA, em 26/002/2022, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2022/02/6347212-joao-batista-damasceno-policia-pericia-e-laudos-falsos.html
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