O lutador de jiu-jitsu que imobilizou o congolês Moïse alegou que apenas
reagiu a uma tentativa de agressão. Outro partícipe do fato disse que bateu
repetidas vezes com uma madeira para “extravasar a raiva”. Diversos são os
instrumentos utilizados para a violência, mas as vítimas costumam ter as mesmas
características: pretos e pobres odiados por existir.
O brutal assassinato de Môïse nos chocou, resultando manifestações no
Rio de Janeiro e em outras cidades. Perguntei a um morador do Jacarezinho se
alguma criança chega à adolescência na favela sem presenciar uma cena daquelas.
A resposta foi que se trata de violência cotidiana. Se todos sabemos que
cotidianamente pessoas são brutalmente assassinadas nas favelas e periferia, o
que indignou a classe média no brutal assassinato de Moïse? A resposta possível
é que a violência está liberada contra pretos e pobres, desde que não seja
feita na sala da Casa Grande.
O que indignou as consciências foi a prática da violência na orla, espaço
reservado para o lazer e o bem estar de um setor privilegiado da cidade
dividida. Nas favelas e bairros da periferia, mesmo as chacinas praticadas
pelos agentes do Estado não geram comoção.
A morte de dezenas de pessoas num mesmo dia no ano passado pela Core, no
Jacarezinho, não causou qualquer indignação nos setores que estão alvoroçados
com o bárbaro crime na orla. O Jacarezinho, que o líder comunitário Rumba
Gabriel diz ser o mais antigo quilombo do Rio de Janeiro, voltou a ser ocupado
pelas forças policiais e a violação aos direitos dos moradores não causa
comoção, nem manifestação. Na terça-feira passada, dia 8, Rumba narrou o que é
o cotidiano de moradores de favelas em encontros com os agentes do Estado.
Este é o seu relato: “FAVELAS BOA TARDE! Muito triste o que está
acontecendo no meu Quilombo Jacarezinho. Virou uma terra sem Lei. Os batalhões
ditos especiais da PM, estão fazendo o que querem no nosso território. A
cultura do ódio nascida em alguns gabinetes que prestaram homenagens a
milicianos, agora se encontra por aqui: invasões em domicílios, roubos de
televisões, notebooks, etc, como se o pobre não tivesse condições de ter. Neste
último domingo, uma amiga me pediu ajuda para localizar um policial do Choque
que havia levado a sua chave. Neste mesmo domingo prenderam um amigo que foi à
padaria apenas para comprar pão. Mas ele é negro, logo chamaram-no de
traficante. Sábado passado uma multidão estava presente no Quiosque da Morte na
Barra da Tijuca. Cheguei a sonhar que todo movimento negro viria para o grande
Quilombo Jacaré. Todo mundo falando bonito. Parecia uma disputa de quem falaria
com mais perfeição para que no final fosse aplaudido. Cheguei a dizer que falar
ali era mole. Queria ver falar aqui onde o coro come e ninguém vê. Onde filho
chora e mãe também não vê. Hoje quando acordei, notei que a porta da cozinha
estava aberta. Eles sabem que na minha casa tem câmera. Então, com certeza
foram pelos fundos onde não tem! Esperaram eu sair e quando me dirigia para
fazer compras, covardemente ao perceberem que eu não entrei nos becos onde
poderiam me agredir sem que ninguém visse e coisas piores poderiam acontecer,
esperaram eu passar pela rua principal. Com sangue nos olhos e ódio no coração.
Me deram uma ESCARRADA! Graças a Deus consegui me manter frio e calmo. Aprendi
isso com o meu Cristo guerreiro. Só perguntei o porquê de tanto ódio de mim.
Ele respondeu: - FODA-SE!”.
Rumba tocou na questão. Quando de uma chacina em Irajá, um grupo de
juízes foi ao Conjunto Habitacional Amarelinho, no mesmo bairro, para se
encontrar com moradores e familiares das vítimas. Dentre eles estava o juiz
Siro Darlan. Na verdade, desembargador. Outro grupo, igualmente preocupado com
a violência policial, se reuniu para uma conversa sobre o assunto no Amarelinho
da Cinelândia. Cada grupo se encontrou num Amarelinho, expressando as distintas
concepções de interação: uns com a realidade concreta; outros com as
considerações abstratas sobre o que vitimou aquelas pessoas.
A violência que vitimou Môïse foi praticada por quem a vivencia
cotidianamente na periferia, que a naturaliza e desumaniza o outro. Os que
falam em caminhões na orla, em situações ocasionais, igualmente precisam ouvir
nas favelas e periferias, onde a violência é cotidiana. Quinta-feira passada,
dia 10, o desembargador Siro Darlan compareceu ao Quilombo do Jacarezinho onde
se encontrou com moradores vitimados pela violência cotidiana e do Estado.
Outros Siros são necessários para que a pior das violências não perpetue: a
indiferença.
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 12/02/2022, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2022/02/6336524-joao-batista-damasceno-a-orla-nao-e-lugar-para-violencia.html
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